Minha participação no evento Cine Sesc – Cine Debate, do SESC Rondônia, ocorrido no dia 13/08/2020, para prosear, juntamente com Júnior Lopes e Ivan Souza, sobre os processos criativos do filme/documentário “Rondônia: um estado de delícias culinárias”.
Este texto é uma tentativa de respostas à algumas perguntas que fiz a respeito da crítica do jornalista carioca Mauro Ferreira, publicada hoje no G1, sobre o novo álbum da cantora Fernanda Takai intitulado “Será que você vai acreditar?”, cujo lançamento aconteceu ontem (10/07/2020) nas principais plataformas digitais, como o Spotify e o Youtube.
Não ficarei aqui discorrendo detalhadamente sobre cada música, numa tentativa de interpretá-las, pois muitos textos desse tipo já foram escritos por jornalistas nos últimos dois dias.
O que me incomodou na crítica do Mauro Ferreira não é a nota dada por ele ao álbum (* * * 1/2), mas sim o fato do seu texto me parecer ser mais uma tentativa, dentre muitas, de imposição de regras ingênuas e mercadológicas à produção artística contemporânea (ou pós-moderna).
Como artista periférico e professor de uma universidade periférica, de Rondônia, com a maior parte da minha formação artístico-acadêmica ocorrendo em cidades e universidades fora do eixo Rio-São Paulo, sempre senti na pele o desdém e a descrença pelo meu trabalho. E, de certa forma, isso parece ser um espinho em minha trajetória profissional, haja vista todas as dificuldades que passei para alcançar os lugares que ocupo e os papéis sociais que exerço.
Muito bem, como professor-artista, na área de teatro, tento orientar os meus alunos-artistas para trilharem um caminho liberto das caixas e amarras estético-estilísticas e de gêneros. Ou seja, para que criem suas artes dos modos e formas que quiserem – desde que se debrucem em realizar o trabalho com sensatez e da maneira mais ética e responsável socialmente. Na Universidade Federal de Ouro Preto, quando cursei Direção Teatral, fui educado desse jeito; o que pode produzir um certo medo pelo fato de o educando não saber muito bem para onde ir ou como começar. Todavia, isso é libertador.
Ao sair da universidade e começar a navegar pelos difíceis mares do mundo profissional, comecei a me defrontar com os vomitadores de regras, inclusive nas instituições do sudeste em que eu tentei ingressar no mestrado e no doutorado. E onde fui eu conseguir ser livre e realizar a pesquisa que eu queria? Justamente num lugar completamente fora do eixo, mas de uma beleza incrível e com uma população acolhedora e aconchegante: Florianópolis. Lá na longínqua (isso, obviamente, dependendo de onde se olha) e maravilhosa Universidade do Estado de Santa Catarina. Quantas saudades!
Até aqui parece que estou girando atrás do meu próprio rabo, mas os atentos leitores entenderão onde eu quero chegar.
Periférico que sou, desde a adolescência, sempre tive as minhas quedas pelas produções artísticas e manifestações culturais que não pretendiam ser “as melhores, as maiores, as mais bonitas, as mais visitadas, as mais tocadas nas rádios, as que mais atraíam público aos teatros e as que davam mais audiência para os programas de televisão”. Sendo assim, os meus gostos começaram a tornar-se esquisitos, inclusive musicalmente. Logo, apaixonei-me, por exemplo, pelo Pato Fu e pela Fernanda Takai. Isso, em 1992, quando no Brasil a axé music, o pagode, o funk e a música sertaneja começavam a ocupar cada vez mais espaço na mídia. Eu, um rapaz gordo, pobre, nerd, tímido, usando óculos vermelhos doados pela prefeitura, de voz fina e afeminado – e que sofria todo tipo de bulling – era considerado estranho. Pelos meus gostos e práticas comecei a ser rejeitado.
Há 28 anos ouço Pato Fu e Fernanda Takai. E outras muitas bandas e cantores taxados pelos críticos apenas como fofos ou excêntricos. Aprendi a reconhecer os rifes da guitarra de John Ulhoa, a discernir os graves do baixo do Ricardo Koctus, a não misturar os ritmos ensandecidos da bateria furiosa de Xande Tamietti (e, mais tarde, de Glauco Mendes), a não confundir a voz de Fernanda Takai com a de Adriana Calcanhotto (que, aliás, também adoro), etc. Os estilos de cada membro que já passou por essa banda independente, e que ainda continua a tocar e cantar com ela, bem como com a banda da carreira solo de Fernanda Takai, eu sou capaz de reconhecer. E, como fã, leitor fervoroso de críticas e resenhas, artista, já entendi que tanto a banda quanto a cantora não podem (e não devem) ser encaixados em determinados gêneros musicais. Correndo aqui o risco de reduzir a sua vasta produção musical, que vai da criação de trilha sonora para espetáculo de bonecos (do Giramundo) até canções compostas e/ou regravadas para filmes e novelas, poder-se-ia dizer que o ecletismo e o hibridismo (duas das muitas características da arte contemporânea) são ferramentas de trabalho para Fernanda Takai e o Pato Fu.
Detendo-me mais agora à crítica do jornalista Mauro Ferreira, eis o comentário que escrevi lá na matéria publicada no G1:
Crítica por deveras tendenciosa! Não basta ser jornalista para escrever sobre arte. A sensação que tenho, enquanto artista, é que escritos desse tipo soam como ditadura de regras. As escolhas dos artistas devem, antes de qualquer coisa, serem respeitadas. Goste o crítico ou não!
E o que mais me incomodou nos escritos desse jornalista? Vejamos alguns trechos da crítica estúpida e mordaz de Mauro Ferreira:
O álbum de Takai resulta mais relevante quando a cantora expõe questões, melancolias e dilemas surgidos nesse momento turbulento atravessado pela humanidade. (…) as duas ótimas primeiras músicas do álbum – Terra plana (outra canção de John Ulhoa) e Não esqueça, título inédito em disco do cancioneiro do compositor gaúcho Nico Nicolaiewsky (1957 – 2014) – sinalizaram álbum alinhado com os dias de hoje (…). Nesse sentido, em que pese a aura “música de brinquedo” da faixa, a recriação fofa de One day in your life (Sam Brown III e Renée Armand, 1975), sucesso na voz do cantor Michael Jackson (1958 – 2009), se alinha com o tom do disco. (…) A questão é que nem todas as faixas do álbumSerá que você vai acreditar? se afinam com o espírito do disco. É inacreditável que, quase ao fim do álbum, apareça festiva faixa bilíngue, em português-japonês, de clima dance-pop-disco, Love song, gravada por Takai com Maki Nomiya, cantora japonesa revelada como integrante do duo Pizzicato Five (1985 – 2001). (…) E o que ninguém talvez vá dizer é que, nesse mosaico delicado de sentimentos, a regravação de Love is a losing game (Amy Winehouse, 2006), em clima de bossa eletrônica, funciona como lance errado de Takai em jogo de azar. Takai pode ter acertado ao baixar os tons de One day in your life, mas dilui toda a intensidade da balada de Amy Winehouse (1983 – 2011), cujo repertório perde a veemência se for cantado por intérpretes sem vozes incandescentes. (…) É também curioso notar que Takai se sai melhor nas músicas inéditas. (…) Tivesse resistido mais à tentação de abordar sucessos alheios, a cantora talvez estivesse apresentando um grande álbum solo (…). (Negritos meus).
O crítico, que parece ter visão limitada sobre música e sentimentos, pois “suele” desconhecer as poéticas da arte e da vida, tenta reduzir a relevância do álbum apenas às “melancolias e dilemas” criados pela pandemia de coronavírus. Como se, neste período – difícil, é claro! – tudo se resumisse a melancolias e dilemas. É como se ninguém se divertisse ficando em casa; ou como se ninguém pudesse amar, à distância, aquela que está do outro lado do oceano, festejando alegremente com a amiga um encontro musical português-japonês. Sim, cara pálida, é crível que coisas maravilhosas aconteçam em momentos de guerra, porque somos humanos, seres paradoxalmente complexos e esquisitos.
Mauro Ferreira, Será que você vai acreditar? soa como um “metaalbum”, em que dois ou três álbuns diferentes rodopiam dentro de um único eixo. Isso quer dizer que esse trabalho não é só pop-rock, ou rock, ou mpb, ou bossa nova, ou música eletrônica; é mais um trabalho, dentre muitos da cantora, em que os gêneros são chacoalhados no seu (e do John Ulhoa também) divertidíssimo “liquidificador estilístico” (o conceito é meu, tirado do meu primeiro livro). E pasme, até trilha sonora de espetáculo teatral (Who are you?) tem nesse álbum. Duvido que o senhor sabia disso! Ou se sabia, não se lembrava, talvez por não ter conseguido digerir o enlouquecedor espetáculo Alice no País das Maravilhas do Giramundo Teatro de Bonecos, cuja paisagem sonora é executada, ao vivo, pelo Pato Fu.
Sobre o que apontou como sendo uma “recriação fofa”, parece-me mais uma incapacidade sua de achar as palavras ou categorias adequadas para a versão que o casal John Ulhoa e Fernanda Takai fizeram para a canção de Michael Jackson.
Quanto a dizer que Takai “dilui toda a intensidade da balada de Amy Winehouse, cujo repertório perde a veemência se for cantado por intérpretes sem vozes incandescentes” (idem), é o mesmo que dizer que para cantar as canções dessa talentosíssima cantora inglesa, somente as cantoras com timbres e extensões vocais parecidas à dela o podem fazer. Mais uma ingenuidade do seu cérebro-caixinha!
Essa passagem da crítica do Mauro me fez lembrar de um momento em que eu resolvi inscrever o espetáculo teatral Inimigos do Povo, dirigido por mim,no edital “A Ponte” do Itaú Cultural, de São Paulo. A proposta da Trupe dos Conspiradores, bem como todas as outras dos alunos e professores do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, foi rejeitada pela comissão de análise. Até aí tudo bem, pois não ser aprovado em um edital cultural é algo muito comum para qualquer grupo de teatro. O problema é descobrir que esse espetáculo não foi selecionado porque nós da Amazônia não podemos montar Ibsen, ou Shakespeare, ou Brecht; visto que estamos fadados a falar somente sobre a floresta, sobre nossa fauna, nossos mitos e nossas mazelas. Porém, um grupo paulistano famoso – ligado à poderosa USP – vir fazer pesquisa de campo numa tribo do Acre para montar o seu espetáculo de temática indígeno-amazônica é algo bastante natural. Os “lá de baixo” (Rio-São Paulo) podem fazer qualquer coisa, haja vista intitularem-se como o centro difusor da arte, do pensamento e do imaginário da nação. Agora, nós “aqui de cima” somos apenas mais uma parte da imensa periferia excluída dos holofotes do eixo.
É importante lembrar que Fernanda Takai é “aqui de cima”, nascida em Serra do Navio, no Amapá. E, apesar de Minas Gerais, onde ela reside desde criança, estar na região sudeste, aos olhos do eixo do mal (expressão muito recorrente no universo do futebol mineiro), esse montanhoso estado bandeia-se mais para cá do que para lá. E eu não me envergonho, em hipótese nenhuma, disso. Recordo-me, com certa incerteza, de um repórter perguntar para Fernanda o por quê de o Pato Fu ter escolhido Belo Horizonte como sede da banda e não São Paulo ou Rio de Janeiro. Segundo tal repórter, esse grupo musical poderia fazer mais sucesso nessas cidades, porque elas são a referência da produção cultural do Brasil. É claro – sem o intuito de generalizações, até porque conheço boas exceções -, que esse pensamento comumente reflete-se no desequilibrado sistema de premiações dos editais, espelha-se nas críticas publicadas, representa-se no mundo das ideias e interfere, inclusive, na distribuição desigual das cotas de transmissão televisiva para os clubes futebolísticos brasileiros. Foi assim que a Rede Globo criou o monstro chamado Flamengo e conseguiu ser uma das grandes causadoras do Golpe de 2016. A criatura voltou-se contra a criadora, vide Bolsonaro na presidência e a negativa desse clube quanto à transmissão dos seus jogos por esse canal.
“Também cai mal o arranjo eletrônico que embota as intenções da canção O que ninguém diz, parceria (já em si pouco sedutora) de Takai com o poeta Climério”. Esse é outro trecho deselegante da crítica de Mauro Ferreira que desvaloriza (para não dizer outra coisa!) a criação artística do poeta piauense Climério Ferreira. O que será que o crítico quis dizer com pouco sedutora? Será que se a parceria de Fernanda Takai fosse com um poeta do eixo ela seria atraente?
Prezado Mauro, quantos cantores e cantoras já regravaram e se “aproveitaram” dos “sucessos alheios” em suas carreiras? Que pensamento mais atrasado é esse de originalidade? Voltamos a viver no século XIX ou nos primórdios do século XX? O que é ser original na pós-modernidade? Uma nova roupagem, ou releitura de um trabalho já existente, não é original porque alguém já o fez? Se fosse assim, nenhum diretor de teatro poderia mais montar Hamlet, porque, ao redor do mundo, esse belíssimo texto shakesperiano já foi usado centenas ou milhares de vezes em trabalhos teatrais. A originalidade na montagem do Hamlet reside justamente nas escolhas, individuais, que cada artista faz para abordar a peça de Shakespeare. Ora, segundo suas palavras, e suas falsas verdades, cantar as músicas de Michael Jackson, de Amy Winehouse ou até mesmo do espírito-santense Paulo Sérgio não é original, porque fulano, beltrano ou ciclano já o fizeram antes ou melhor? Quanta bobagem e crueldade nessas palavras. Falta ao senhor a experiência da criação, dos ensaios, dos shows, das turnês e circulações. Se soubesse o quanto é difícil e árduo o trabalho criativo, “será que o senhor iria acreditar?” nas suas próprias palavras?
Por fim, importa mencionar, que compor um CD todo igual, sempre com o “mesmo espírito”, é tarefa para os sertanejos universitários, os sofrentes, os funkeiros e os religiosos.
Fonte da Imagem: Capa do álbum ‘Será que você vai acreditar?’, de Fernanda Takai — Arte de Renato Larini
Como funciona a plataforma virtual enquanto ferramenta de trocas de experiências artísticas em momento de isolamento social? De que maneira um processo pedagógico de dezenove dias, com apresentações de dezenove web-performances no dia 19 de junho de 2020 (sexta-feira, dia do Cinema Brasileiro, Dia Internacional para Eliminação da Violência Sexual em Conflito e Dia Nacional do Luto), às 19 h (horário de Porto Velho), pode aproximar as distâncias criativas e fazer os web-espectadores esquecerem por alguns minutos as angústias criadas pela pandemia de COVID-19 no Brasil e no mundo?
19Distâncias, evento web-performativo do projeto “Fórum Performance-arte Norte”, competentemente coordenado pelo professor Luiz Lerro, do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), e produzido por Andressa Batista e Betânia Avelar, é uma ação do Paky’Op (Laboratório de Pesquisa em Teatro e Transculturalidade), grupo de pesquisa acadêmica também coordenado por esse professor, que contou com o apoio do Departamento de Artes (DArtes) da UNIR. Ocorrido no Google Meet, um software que conecta salas de reunião ou espaço virtual a videochamadas, a ação, inédita em Rondônia, quiçá no Brasil, aproximou web-performers e professores-artistas de diferentes cidades do país (Porto Velho, Vilhena, Brasília, Ouro Preto, Belo Horizonte, Rio Branco e Belém) à 101 web-espectadores de diferentes regiões do Brasil (Sul, Sudeste, Norte e Nordeste), bem como do exterior (Portugal).
Enquanto espaço virtual, o Google Meet propiciou aos participantes o que Jorge Dubatti, importante filósofo teatral argentino, chama de Experiencia Tecnovivencial. Ou seja, pensando nesse ambiente de mediação tecnológica, experiências artísticas e relacionais entre web-artistas e web-espectadores. Nesse sentido, 19Distâncias contou com apresentações (e não representações!) de 19 web-performances-tecnovivenciais. E como toda tecnologia nos oferece ganhos e perdas, bem como problemas e soluções (ainda mais em se tratando da região Norte do Brasil, onde o sinal de internet é ainda precário), o web-evento obteve, no sentido artístico-pedagógico, um grande êxito.
No dia anterior ao web-evento, no “18Distâncias”, portanto, ocorreu um ensaio técnico/ensaio geral em que se definiu a sequência de apresentações, bem como se fez uma análise estético-poética das web-performances ensaiadas. Algumas dificuldades técnicas foram identificadas, principalmente em relação à variação de frequência do sinal de internet. Tal variação fez com que algumas imagens transmitidas chegassem com atraso em relação ao som, ou que essas imagens perdessem qualidade (pixealizando-se), que certas entradas (ao vivo) de web-performers atrasassem dentro da plataforma (isso comprometeu o fluxo da sequência de apresentações), etc. Mas, a despeito desses pequenos problemas, o ensaio transcorreu muito bem e deixou a todos os participantes esperançosos de um ótimo trabalho no dia seguinte. Agora, antes de entrar na crítica propriamente dita do evento, segue uma observação fundamental e de grande valor profissional: um ensaio técnico é muito importante para a observação de como as diferentes partes dos elementos do produto artístico ensaiado, que até então estavam isoladas, funcionam quando colocadas juntas num mesmo espaço-tempo da criação. Isso quer dizer, amados alunos e artistas envolvidos, o que é ensaiado no último dia que antecede a apresentação é para ser apresentado tal qual foi ensaiado. Grandes mudanças produzem enormes incertezas. E estas induzem ao erro, principalmente quando vários dos envolvidos no projeto têm pouca, ou até mesmo nenhuma experiência artística anterior. Obviamente que pequenas mudanças podem ser necessárias, principalmente em detalhes técnicos que foram apontados pelo coordenador e pelos demais como sendo problemáticos. Agora, mudança radical na estrutura da web-performance – alterando, inclusive, a sua narrativa textual, visual e/ou sonora -, é de matar de infarto qualquer artista que preza pelo mínimo de organização. Feita essa pequena advertência, passemos à alguns depoimentos críticos ao décimo nono dia do intrigante projeto 19Distâncias.
A professora Jussara Trindade, também do Curso de Teatro da UNIR, deu o seguinte depoimento por e-mail:
Eu gostei muito de “19Distâncias”! Foi bom demais ver como o entusiasmo do professor Luiz Lerro contagiou tantos estudantes-artistas de Teatro de Porto Velho, e um público de quase uma centena de pessoas que participaram até o final desta magnífica experiência cênica. Performances diversas, divertidas, tristes, surpreendentes, críticas, inteligentes. Algumas apresentando um alto grau de refinamento técnico; outras mais singelas, quase toscas. Algumas, inacabadas. Todas, porém, indistintamente, compartilhando uma enorme vontade de “dizer algo” por meio do teatro!
Creio que “19Distâncias” inaugurou uma nova forma de fazer teatro nestes tempos de interatividade tecnológica. Uma forma que se coloca, acredito, para além das “tecnologias da informação e da comunicação” apesar de serem, estas, as suas ferramentas óbvias. Uma forma tão curiosa, tão “real” embora “virtual”, que o público pode inclusive competir com o/a performer em sua presença cênica… ou até mesmo tentar sabotar a apresentação!
Já Walterlina Brasil, Diretora do Núcleo de Ciências Humanas (NCH) da UNIR e figura sempre presente nas produções do DArtes, seja como espectadora seja como artista, perguntada no WhatsApp se havia gostado das web-performances de 19Distâncias, escreveu o seguinte:
Em parte. Parte boa: a surpresa, algumas perspectivas de espaço a partir do uso do celular. Em alguns momentos: cansativo, óbvio ou confuso. Quem assiste nem sempre quer ser assustado, pode querer ser envolvido…
Nesse dia-noite inesquecível para muitos, por diversos motivos, como nas citações anteriores elencadas, o Brasil alcançou o escandaloso e vergonhoso número de 48.954 mortes dentre 1.032.913 casos confirmados de coronavírus. A sexta-feira registrou, só no estado de Rondônia, mais 549 infecções e mais 17 mortes. Logo, aqui, os números somados chegaram a 14353 infectados com 391 óbitos. Sobre algumas dessas cifras alarmantes, o web-performer Almício Fernandes, aluno do Curso de Licenciatura em Teatro da UNIR e importante ator rondoniense, em seu inteligente trabalho Normose nos deu alguns detalhes, por meio de uma alucinante dinâmica rítmico-vocal e close-ups oculares esquizofrênicos. Começando pelo número 1, ou seja, pela primeira morte por infecção de coronavírus no país, ele passou pelos dados numéricos mais marcantes, intercalando essas informações com o dito “Novo Normal”. Sobre esse conceito, Maria Aparecida Rhein Schirato, professora do Insper, em entrevista dada ao site dessa instituição, disse isto:
O novo normal, na verdade, seria a proposta de um novo padrão que possa garantir nossa sobrevivência. Faço um paralelo com a experiência que tive de ter vivido uma parte da minha vida em locais com neve. Para viver em um centro urbano com essa condição climática, você tem um kit neve, composto por gorro, cachecol, luva, bota, capote e lenço de papel. Sem esse kit, você está absolutamente desprotegido e corre sérios riscos de ficar doente.Esse kit neve dá um pouco de trabalho. Nos primeiros dias, você estranha muito. A tendência é você ficar mais encolhido por causa do frio, ter um certo mal-estar ao entrar em uma loja aquecida ou ao ter que tirar as luvas ao manusear um cartão bancário.Aos poucos, você se acostuma com o kit. Não por ser agradável, mas por te dar segurança. Rapidamente, neste caso, nós, que vivemos em um país tropical, entramos em um novo normal.O que está sendo proposto, agora, é um kit Covid. Um kit de segurança. Vamos ter que andar com máscara, mais contidos, menos expansivos, como se estivéssemos no frio. Guardando certa distância, talvez com luvas e, de certa forma, nos primeiros dias, vamos achar tudo muito estranho, mas a garantia da segurança de que não vamos ficar doentes e não transmitiremos doenças fará com que assimilemos esse kit de uma forma indolor.Ou seja, entraremos em um novo padrão de normalidade. Reforçando, normalidade é o padrão que me garante sobrevivência dentro de um grupo. Logo vamos nos habituar com esse kit Covid e, certamente, sentiremos falta se não o utilizarmos.
Questões relacionadas à essa nova normalidade, causada pelo COVID-19, perpassaram, além da web-performance de Almício Fernandes, inúmeros trabalhos apresentados em 19Distâncias. Inclusive, quatro artistas envolvidos no evento sofreram na pele, na alma e no coração, as dores físicas e psicológicas desse terrível vírus. Jamile Pereira, também aluna de Teatro da Unir e atriz da Trupe dos Conspiradores, do Teatro Ruante e da Cia Peripécias, infelizmente, nem conseguiu apresentar-se, porque estava com fortes sintomas da doença. Ela, gentilmente, e de forma emocionada, me deu um precioso depoimento, no WhatsApp, sobre essa experiência:
Ficar de fora foi difícil, pois queria muito ter participado e me esforcei pra isso. Essa doença parece que tira o que mais nos deixa feliz. Mas vai passar! Aliás, já está terminando. Ficar isolada e ainda não poder fazer o que gostamos é difícil, mas fiquei feliz em ver os resultados, me deu alegria e esperança.
Vai passar, Jamile! Vai passar! Na próxima apresentação, muitas outras virão, sua web-performance constará da programação. Fica aqui a nossa gratidão e homenagem por todo o seu esforço e comprometimento com o projeto.
Imagem 1: Entre Paredes, processo criativo de Jamile Soares.
Foto: Jamile Soares.
Ainda dentro da temática COVID-19, Ádamo Teixeira, meu companheiro de vida e das artes, discente do Curso de Teatro da Unir e ator da Trupe dos Conspiradores, apresentou sua web-performance “Travesti Covidada” ainda com traços de coronavírus em seu organismo. E eu, crítico-cronista que vos escreve, que ajudei na organização cênica dessa web-performance, também contraí o vírus. O trabalho de Ádamo Teixeira traz em seu bojo imagens relacionadas à doença: máscara, luvas, álcool gel e faca-ameaçadora-cortante. Em sua elegante sala de atendimento, a travesti cigana – ainda sem nome – prepara seus objetos sexuais para brincar com seu hipotético cliente. Web-performando a partir da recém-lançada canção Não Esqueça, interpretada pela cantora amapaense-mineira Fernanda Takai, a travesti contaminada desfila pelo espaço com seu elegante vestido branco (que foi confeccionado pelo próprio ator) e com sua maquiagem intensa, colorida e bem desenhada que, sob o efeito de luz negra, leva o web-espectador a um universo onírico (ou de pesadelo?). A apresentação, que durou apenas 3 minutos – aliás, é importante mencionar que todas as web-performances apresentadas foram curtas, variando de 1 a 5 minutos -, é simples e tem uma narrativa bastante teatral, seguindo a seguinte sequência de ações: sob o efeito de luz negra levantar do sofá cor de rosa-vermelho; sentar-se de perna aberta e mostrar o que há por baixo (hum!); exibir as luvas brilhantes; levantar e aproximar o rosto da lâmpada de luz negra (realçando a maquiagem); acender as luzes vermelhas do cômodo; pegar o álcool gel e limpar o frasco de lubrificante sexual, higienizar o consolo de borracha e chupá-lo, e, por último, ameaçar o seu cliente com a faca-ameaçadora-cortante. Porém, antes de supostamente cortá-lo, devido à sua consciência social, ela limpa o objeto com o caro e difícil de encontrar álcool em gel 70. A web-performance encerra-se juntamente com os últimos versos da canção Não Esqueça, de Nico Nicolayewski:
Não esqueça que a vida é pra viver Lembre sem medo de esquecer Não espere saber como vai ser Saiba que nunca vai saber
Não esqueça que é tudo ilusão Não esqueça de lavar as mãos
Imagens 2 a 13: Travesti Covidada, de Ádamo Teixeira.
Fotos: Luciano Oliveira
Prints: Raíssa Dourado
Sobre Travesti Covidada, a já citada Walterlina Brasil, escreveu o seguinte:
A parte escura com o efeito da pintura facial foi inquietante. Me deu aflição a relação álcool em gel e o falo. Se não tivesse o nome e não tivesse acendido a luz eu não o reconheceria. (…) [Quanto ao] falo, há variações mais modernas… 😇.
Já Júnior Lopes, professor do Curso de Teatro da UNIR, e um dos web-performers a se apresentar em 19Distâncias, disse, por telefone, que a forma intensamente colorida do trabalho do Ádamo se aproxima do que os colombianos chamam de “Estética Narcos”. Sobre essa estética, há vários artigos disponíveis (tanto em português quanto em espanhol) na internet.
Outra web-performance relacionada ao universo do coronavírus é Ponte, de Teoginis Nascimento, também aluna do Curso de Teatro da UNIR e atriz do Grupo Teatral Sentidos. O delicado trabalho dessa web-performer, que talvez tenha sido o de maior duração, constou da colocação de várias cruzes coloridas no espaço performático, enquanto cantava belamente cantigas de cunho religioso, moral e humano. Tais cruzes eram de tecidos e, provavelmente, foram confeccionadas por ela mesma, que ainda é costureira e figurinista. Enquanto cantarolava letras melancólicas – mais ou menos assim: “O mundo tá muito doente! (…) Você me trata mal e eu te trato bem. (…) As coisas são como salada russa e esfihas de carne” -, Teoginis, que perdeu um ente querido recentemente, assassinado de forma bárbara no interior de Rondônia, dispunha suavemente pelo espaço fileiras de cruzes, provocando nos web-espectadores memórias e sensações da violência da morte.
Imagem 14: Ponte, de Téo Nascimento.
Foto: Téo Nascimento
Por sua vez, Taiane Sales, ex-aluna do Curso de Teatro da UNIR, atriz e performer de vários projetos artísticos de Porto Velho, com a web-performance Sagrada Vida, resgatou, de forma lírico-poética, imagens de mulheres-fantasmas como, por exemplo, a Mulher de Branco, Mulher do Algodão, Noiva do Banheiro e Loira do Banheiro. Mas engana-se quem acha que se trata de um trabalho ingênuo, superficial e clichê. Muito pelo contrário, trata-se de um fazer artístico extremamente plástico, com imagens sonoro-visuais fortíssimas, cujas locações (o quintal da sua casa) e paisagens auditivas (cricris de grilos) foram escolhidas por ela com muito zelo. Arrepiou-me a frase “- Você foi escolhido para compartilhar desse momento!”, pois, afinal, somos sobreviventes da guerra do coronavírus que pôs fim à vida do seu amado pai, o Sr. Nélio da Costa Nunes. Mais uma vez, minhas condolências!
Imagens 15 a 17: Sagrada Vida, de Taiane Sales.
Prints: Maísa Mayara
Outra web-performer que abordou o universo do coronavírus foi Paulina Descry, funcionária do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia e estudante do Curso de Ciências Jurídicas da Faculdade Católica de Rondônia. Diferentemente do que apresentou no ensaio técnico/ensaio geral – e isso é um problema, ainda mais em se tratando de uma não-profissional das artes cênicas -, o seu trabalho começou com um pequeno texto verbal, mais especificamente sobre o COVID-19. No ensaio geral, ela não havia pronunciado nenhuma palavra. O jogo apresentado foi apenas imagético. Durante sua apresentação no dia 19, após o texto inicial, Paulina foi mostrando aos web-espectadores pequenas placas de papel, escritas à mão, e lendo as informações nelas constantes: “subnotificação, falta de testes, ‘I daí?’, censura, etc”. Ela fazia uma clara crítica à equivocada política de enfrentamento do presidente Jair Bolsonaro ao novo vírus. De repente, um silêncio inesperado! Logo, entra, nesse espaço sem palavras, o web-performer Júnior Lopes, com seu trabalho O Olho Mágico. Num primeiro momento, o web-espectador pode até ter pensado que se tratava de um jogo ensaiado de simultaneidade, porque o encontro de imagens foi bastante interessante e preciso (fica a sugestão para a próxima apresentação do evento!). Contudo, Júnior Lopes, ademais de ser professor de Teatro da UNIR, é um ator experiente. Em pouco tempo sua imagem dominou o espaço virtual, quase que silenciando por completo a imagem-som da jovem aprendiz de teatro. Então, retomando o que eu escrevi anteriormente, reforço a importância de manter a estrutura do trabalho que foi mostrado no ensaio técnico/ensaio geral para que não ocorra problemas como esse.
Mais uma web-performance que estava tratando sobre a temática coronavírus, foi Transolamento, de Gilmar Soares, aluno do Curso de Teatro da UNIR e criador da importante performance Pelo [Lourinho]. Esta ganhou prêmio em um festival de teatro de Minas Gerais e foi exibida no PerforArtNet, um festival virtual de performances da Colômbia. Pelo que vi no ensaio geral, Transolamento é uma web-performance descolada, alegre e divertida, em que uma transexual, em isolamento social, cria uma boate em casa e dança uma Música Disco (Disco Music) em frente ao seu computador. Num dado momento da sua diversão, ela coloca uma máscara branca sobre o rosto e desenha, com batom, uma boca vermelho. Em seguida, retira do soutien um par de camisinhas e, com elas, faz um par de luvas para proteger as mãos. Por último, com plástico filme, cria um equipamento de proteção para a cabeça, uma espécie de máscara de acrílico. Infelizmente, por problemas de conexão com a internet, a apresentação de Gilmar Soares durou apenas alguns segundos. Por isso, publico, a seguir, uma grande sequência de prints de tela feitos durante o ensaio técnico.
Imagens 18 a 38: Transolamento, de Gilmar Soares.
Outros três trabalhos apresentados abordaram assuntos ligados à pandemia que assola o planeta. São eles: Sufocando, de Stéphanie Matos, Streaptease Pandêmica no Breu, de Amanara Brandão, e Cala Boca, de Janaína Valente.
Sufocando, de Stéphanie Matos, aluna concluinte do Curso de Licenciatura em Teatro da UNIR e atriz da Trupe dos Conspiradores e da Cia Peripécias, pareceu-me, por um lado, uma tentativa de crítica ao consumismo exacerbado de produtos alimentícios em tempos de pandemia. Isso porque a web-performer trouxe para os web-espectadores uma partitura de ação que consistia em colocar, uma por vez, e ao som de batidas de funk, várias sacolas de plástico de supermercado na cabeça, até o processo total de sufocamento. É importante mencionar que as sacolas são de uma rede de supermercado muito famosa, e cara, do estado de Rondônia. Por outro lado, as batidas de funk poderiam ser associadas ao sufocamento (mercadológico) que uma forma de expressão cultural que é consumida massivamente pode acarretar ao mundo da arte, em especial à música, em suas diferentes linguagens. Por fim, um ponto a ser refletido por Stéphanie Matos é sobre o acabamento, em termos estéticos, da sua web-performance.
Imagem 39: Sufocando, de Stéphanie Matos.
Foto: Walterlina Brasil.
Streaptease Pandêmica no Breu, de Amanara Brandão, também discente do Curso de Teatro da Unir e atriz do Imaginário-RO, faz uma crítica bem-humorada ao uso, ideológico, da máscara neste período complexo de pandemia de coronavírus. A máscara apresentada seria comunista, por ser vermelha, e indecorosa (aliás, coisa muito comum entre os comunistas!), pois é retirada do rosto de maneira muito sexy; quiçá de modo pornográfico, porque deixam à mostra (nus) os lábios carnudos e suculentos da web-performer. Para “lacrar”, Amanara Brandão saca de sua língua, também molhada e sem vergonha, uma tampinha de garrafa de refrigerante (ou de cerveja?) com o seguinte dizer: “- Fora Bolsonaro”.
Imagens 40 a 45: A indecorosaStreaptease Pandêmica no Breu, de Amanara Brandão.
Prints: Ana Clara Martins
A última web-performance que toca questões referentes ao coronavírus (e eu estou em dúvida dessa assertiva!) é Cala Boca, de Janaína Valente, caloura do Curso de Teatro da UNIR e produtora da Trupe dos Conspiradores. O seu trabalho é uma live de celular, tipo de influencer que não tem muito o que fazer e precisa gerar conteúdo para os seus seguidores, em que a web-performer mostra o seu rosto com uma máscara branca enquanto caminha pela casa. De rebarba, os seguidores têm lampejos visuais do seu imóvel e da rua que mora. Ao final da exibição, Janaína Valente profere a frase: “- Cala a boca!”. Seria essa uma crítica à truculência de Jair Bolsonaro ou eu estou com pensamentos demasiadamente comunistas? Por fim, importa observar, e isto não vale como justificativa para a falta de acabamento estético do trabalho, que essa web-performer estava sem luz e sem sinal de wi-fi em sua residência, desde o dia anterior, pois um caminhão baú arrebentou cabos de energia e de internet da rua em que mora. Inclusive, por esse motivo, ela nem pode participar do ensaio técnico/ensaio geral. Uma sugestão: por que não acrescentar esse ocorrido (que é hilário!) como informação visual ao trabalho?
Imagens 46 a 54: Cala boca, de Janaína Valente.
Prints: Raíssa Dourado.
Outra temática recorrente nas web-performances apresentadas em 19Distâncias foi a violência contra a mulher. Andressa Silva, com E daí?, Selma Pavanelli, com (Des)Velando e Valdete Sousa, com Ensaios sobre Ausências responsabilizaram-se, assim se poderia dizer, por apresentar esse importante assunto no evento.
E daí? , de Andressa Silva, bailarina, professora de ballet e atriz da Beradera Companhia de Teatro, de Porto Velho, é uma fortíssima web-performance baseada na experiência da artista com a dança. Andressa apresentou uma figura – uma mulher – nervosa, com medo, ameaçada e agredida psicológica e fisicamente por seu companheiro. E daí? tem como linguagem predominante uma dança expressiva em que a web-performer performativa belamente pelo espaço da ação. Com a ajuda do seu companheiro (e é muito bom poder contar com o auxílio de outrens nos nossos trabalhos!), a artista conseguiu produzir, além das imagens frontais – características comuns nas lives -, imagens de cima. Isso propiciou aos web-espectadores outra experiência de olhar e chegou a ser até uma surpresa agradável para quem assistia. Agora, um ponto negativo, e isso, nesse caso específico pode ser considerado um paradoxo, foi a mudança total de direção que a artista deu em relação ao trabalho que apresentou no ensaio técnico/ensaio geral. Já escrevi anteriormente, por duas vezes até, que alterações abruptas em um processo artístico, de um dia pro outro, e sem o devido conhecimento do coordenador/diretor, pode ser muito prejudicial, haja vista a grande quantidade de trabalhos que foram apresentados no evento.
Imagens 55 a 70: E daí?, de Andressa Silva.
Prints: Raíssa Dourado
(Des)Velando, de Selma Pavanelli, atriz e palhaça do Teatro Ruante, com música de Adailtom Alves (professor do Curso de Teatro e membro fundador do Ruante) e de Alexandre Falcão (também docente desse curso), transita, esteticamente, pelas artes visuais e pelo cinema (em preto e branco, com música ao vivo). Aliás, essa poderia ser uma nova categoria conceitual para caracterizar outras web-performances de 19Distâncias. A saber: Ensaios sobre Ausências, de Valdete Sousa, Pele que não Habito, de Rafael Brito, Café Preto, de Maycon Moura, e Canto Quieto, de Andrea Melo.
Voltemos ao (Des)Velando. O significado de desvelar, segundo o Dicio (Dicionário Online de Português), é: “Colocar em exposição, removendo o véu que revestia: desvelar uma obra de arte”. Então, me pergunto: o que foi desvelado por Selma Pavanelli ao longo do seu trabalho? Ora, a resposta não é tão simples assim, pois alguns estudos de recepção apontam que os sentidos da obra de arte são dados, em primeiro momento, por quem frui, ou seja, pelo fruidor (Umberto Eco – Obra Aberta). Desta feita, enquanto crítico-fruidor, me permitirei uma aproximação imagética para (Des)Velando. Esta seria: “Como água para Vinho” (parafraseando o excelente filme mexicano Como Água para Chocolate, de 1992), em que a água seria o Adailtom Alves, o chocolate a Selma Pavanelli, e a pimenta o Alexandre Falcão. A estética de (Des)Velando poderia ainda ser aproximada a de muitos filmes (ou até teatro) de animação que assisti. Nesse caso, uma animação-política, para aludir ao universo do teatro-político recorrente nos espetáculos de rua dos ruantes. A crítica sócio-política mais marcante nesse trabalho é a violência contra a mulher, cujos números aumentaram consideravelmente, em Rondônia, neste período de isolamento social que estamos vivendo. As gotas de vinho que caem, pari passu, na taça, e, depois, nos recortes de jornais, representariam o sangue de dezenas de mulheres que são agredidas e/ou assassinadas diariamente em nosso estado. Finalmente, um ponto a ser observado pelos envolvidos em (Des)Velando é sobre a necessidade de uma melhor equalização sonora do trabalho, pois há uma disparidade entre o volume da guitarra e o canto do professor Adailtom. Quase não se ouve a letra da música, tanto é que não me arrisquei redigir ao menos uma estrofe do que foi cantado.
Imagens 71 a 74: (Des)Velando, de Selma Pavanelli.
Fotos: Bruna Pavanelli.
Imagens 75 a 79: (Des)Velando, de Selma Pavanelli.
Prints: Gabriel Corvalin
Ensaios sobre Ausências, de Valdete Sousa, atriz e diretora do Grupo de Teatro Wankabuki, de Vilhena, apostou altíssimo na visualidade e na poesia da imagem. E a aposta foi ganha! Essa web-performance, além de todo o lirismo audiovisual, traz aos web-espectadores uma denúncia da violência contra a mulher. Utilizando-se de um interessante jogo de espelhos, em que uma poça de água reflete o rosto sofrido e repleto de medo de uma mulher, o trabalho evolui sob (ou sobre) uma camada de trilha sonora em que se ouvem respirações ofegantes, lamentos e o gotejar de um líquido que chora sobre o outro. Mas nem tudo são flores quando se depende de internet em Rondônia. Um sinal fraco prejudicou a conclusão da belíssima web-performance que estava sendo apresentada.
Imagens 80 a 83: Ensaios sobre Ausências, de Valdete Sousa.
Prints: Valdete Sousa
Pele que não Habito, de Rafael Brito, aluno do Curso de Teatro da UNIR e sonoplasta da Trupe dos Conspiradores, é outra web-performance que poderia ser colocada dentro de uma linguagem performática que une artes visuais e cinema. Tratar-se-ia de um filme de terror, no qual um monstro de boca de proporções enormes cria medo nos web-espectadores. Essa figura monstruosa, toda vestida de preto (o que produz uma imagem belíssima!), lembrou-me de alguns filmes de terror que já assisti como, por exemplo, [REC], filme espanhol dirigido por Jaume Balagueró e Paco Plaza, lançado em 2007. Já a trilha sonora me fez recordar de filmes de terror de bonecas, a exemplo de Annabelle e a Boneca do Mal. Sem sombra de dúvidas, Pele que não Habito é um dos melhores trabalhos que vi de Rafael Brito enquanto aluno do Curso de Teatro. Nessa web-performance ele soube, em termos estético-poéticos, unir imagem, som e presença cênica em frente ao olho amedrontador da câmera que nos fita pela janela.
Imagens 84 a 87: Pele que não Habito, de Rafael Brito.
Prints: Rafael Brito
Imagens de tiroteios dos dois volumes de Kill Bill, de Quentin Tarantino, é que vieram à minha cabeça ao assistir à forte web-performance Café Preto, de Maycon Moura, aprendiz de teatro e membro do Teatro Ruante. Utilizando uma caneca de cor preta como revólver, o artista encarava ameaçadoramente os web-espectadores, disparando contra eles. Enquanto projéteis imaginários eram disparados contra nós, atrás da figura do web-performer era projetado um vídeo, muito bom por sinal, no qual via-se escorrendo um líquido preto. O trabalho desse artista é forte, masculino e constitui-se também como uma potente e necessária crítica à violência contra os negros. Além de presente nas ações, esta pode ser notada ainda nas cores predominantes do seu trabalho: branca, preta e vermelha; sendo que essas duas últimas conotariam o sangue negro que escorre pelos planos das desigualdades sociais, racismo e intolerância. Terminando suas ações performáticas, a caneca deixa de ser revólver (função terciária do objeto) e retoma a sua função primária (caneca para tomar café) (Luciano F. Oliveira. Eid Ribeiro e o Armatrux em Processo: o objeto flutuante entre a poética e a estética teatral). É justamente essa última parte que eu não acho interessante, pois ela me parece enfraquecer o forte sentido que é dado quando o objeto em nível terciário é usado para matar e silenciar.
Imagens 88 a 91: Café Preto, de Maycon Moura.
Prints: Maycon Moura
Andrea Melo, dançarina contemporânea que criou Canto Quieto, é daquelas artistas que queremos ter em nossas equipes para montagem de qualquer trabalho. Mulher madura e mãe, artisticamente, ela é também uma explosão de emoções técnico-estético-poéticas. Em seis anos de Porto Velho, ainda não vi nenhum trabalho frágil dela. Por esse motivo, foi mais do que justo, e necessário, que a belíssima web-performance Canto Quieto abrisse a série de apresentações de 19Distâncias. Necessário porque espera-se muito dela, e ela sempre corresponde às expectativas. Necessário porque ela tem presença e sabe muito bem conduzir o olhar do espectador. Necessário porque, em cena, e não somente nela, ela é linda e produz imagens corporais sempre muito potentes. Mesmo que, cenicamente, ela não objetive a beleza, a estética do belo a persegue. Canto Quieto é assim, pois é marcante, é simples-complexo, com movimentos harmonicamente criados. Estes produzem sombras que lembram o Expressionismo Alemão, que trazem à memória as distorções de Nosferatu e do Gabinete do Dr. Caligari. E me recordam também a minha finada Vó Olga, balançando-se em sua cadeira e, de pernas sempre cruzadas, fazendo seu chinelo de borracha bater, ritmicamente, no chão e no calcanhar: “chilept, chilept, chilept”. E ela, minha avó, quietinha em seu canto, lá no interior de Minas Gerais (em João Monlevade), e nós ouvindo: “chilept, chilept, chilept”.
Imagens 92 a 95: Canto Quieto, Andrea Melo.
Fotos: Lua Clara
Peito, Sagrado Peito, de Jaqueline Luchesi, aluna do Curso de Teatro da UNIR, mas que está morando em Brasília, nos coloca frente a frente com mais uma mulher poderosa de 19Distâncias. Aliás, a força do sexo feminino é temática recorrente nos trabalhos dessa artista, que é assumidamente feminista. Mãe de Ulisses, que já tem 3 anos, Jaque (como carinhosamente a chamamos) mostrou para os web-espectadores a força dos peitos, seja como um dos símbolos do poder e da sensualidade da mulher, seja como importante órgão para a amamentação dos filhos. Ou seja, ela faz uma homenagem ao seu amado “bebê” e também à todas as mulheres e crianças. E mais, faz uma análise inteligente e delicada sobre a excessiva sexualização dos seios que, para ela, são sagrados, e à objetificação do corpo feminino. Desenvolvendo ações sensuais, tendo como pano de fundo uma música infantil, quase uma canção de ninar, a web-performer nomeia seu corpo de corpo sem juízo, sem freios e que se constitui como uma mensagem de tolerância de gênero e um pedido (ou uma ordem?) de respeito, nem que seja à base de porrada: “pow”! Para finalizar, importa mencionar a belíssima e competente maquiagem (facial e corporal) feita por Jaque Luchesi para uma figura feminina que coloca no cerne da sua performance o hierático corpo da mulher. Vivas às mulheres!
Imagens 96 a 99: Peito, Sagrado Peito, de Jaqueline Luchesi.
Foto 96: Jéssica Gotlib. Prints 97 e 98: Raíssa Dourado. Print 99: Jaque Luquesi.
O professor e ator Júnior Lopes, com o seu Olho Mágico, envereda, pelo menos para mim, por um caminho que ainda não o tinha visto traçar em Porto Velho: a seriedade do drama (ou, se não quisermos colocar os gêneros em uma caixinha, por algo que não seja a comédia). Reconhecido pelo excelente trabalho cômico realizado em Tabule, bem como pelo trabalho consistente de atuação em Cassandra, BR-trans-amazônica, Júnior Lopes vai dar braçadas em outros mares cênicos, mas sem deixar, ao menos por completo, a comicidade de lado. Sabemos que o olho mágico de uma porta nos permite enxergar o que há do outro lado sem sermos vistos. Assim, evitamos visitas indesejadas. Contudo, o dispositivo de “vigilância” apresentado por esse web-performer em 19Distâncias o coloca em risco extremo, haja vista mais de cem pessoas o “vigiar” ao mesmo tempo, como uma espécie de Grande Irmão (Big Brother), de George Orwell, em que “o Grande Irmão zela por ti” ou “o Grande Irmão está te observando”. Sendo zelado ou ameaçado pelos web-espectadores, o ator desenrola suas ações performáticas confinado, literalmente, em sua casa. Mas ele não se intimida e tenta ver o que tem por trás daquele olho que o vê. A comicidade no seu trabalho “sério” é sentida na divertida transmissão radiofônica de uma novela (brasileira, mexicana ou árabe?). Todavia, essa rádio-novela, bem como o passeio pelo seu “quartinho vagabundo”, é interrompida, por diversas vezes, por problemas de sintonia da “rádio-internet”.
Imagens 100 a 105: Olho Mágico, de Júnior Lopes.
Prints: Raíssa Dourado e Edilson Schultz
Cláudio Zarco, ex-aluno do Curso de Teatro da UNIR e mestrando do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto, com sua web-performance HTML – BLUE – HTML – PINK traz para o centro do seu trabalho as artes visuais, mais especificamente as cores e a argila. Por que não a pintura? “Azul e rosa sobre argila marrom e fundo branco” talvez seja uma boa tradução para o título por ele proposto e até mesmo uma síntese estética do seu trabalho. Plasticidade na forma e qualidade no movimento são os pontos fortes da sua web-performance, que brinca com a dicotomia limpeza-sujidade, tendo o corpo como tela de pintura. O pronto fraco do trabalho é a música que, por problemas técnicos, foi difícil de ouvir.
Imagens 106 a 108: HTML – BLUE – HTML – PINK, de Cláudio Zarco.
Foto 106: João Pedro Zuccolotto; Prints 107 e 108: Raíssa Dourado.
Rafael Barros, jovem artista portovelhense – que não é mais promessa no campo da performance, com Tudo que Cai faz lembrar alguns trabalhos marcantes dos primórdios da performance dos Estados Unidos na década de 1960 como, por exemplo, o Voom Portraits: Brad Pitt, de Robert Wilson, no qual o ator Brad Pitt, ainda moço, aparece em um vídeo tomando banho seminu, apenas calçando meias brancas, vestindo uma ceroula branca e portando um revólver em uma das mãos. O web-performer Rafael Barros, por sua vez, ao se molhar no chuveiro da sua casa, investe na expressividade do seu interessante corpo magro, em que se vêem as costelas saltadas, e dos cabelos compridos e molhados que cobrem o seu rosto, como um véu negro encaracolado. Enquanto se banha, Rafael Barros bebe algo negro em uma taça (creio que seja Coca-Cola) e a água que cai lava seu corpo, bem como enche a taça em sua mão. Então, os líquidos formam uma mistura homogênea que escorrega corpo a fora, seguindo rumo ao Rio Madeira e alcançando o longínquo Oceano Atlântico.
Imagem 109: Tudo que cai, de Rafael Barros.
Foto: Ana Clara Martins.
Feitas algumas observações sobre cada uma das 19 web-performances apresentadas, passo a alguns corolários.
O primeiro diz respeito a como um web-performer pode “ficar fora de cena” em um evento on-line. Se fosse num teatro, os artistas esconder-se-iam, em silêncio, nas coxias, concentrando-se para entrarem em cena no momento adequado. Então, quais seriam os modos mais eficazes para que os artistas de 19Distâncias pudessem aguardar os web-espectadores chegarem ao evento, tomarem lugar e se fazerem presentes para cada trabalho a ser apresentado? Pensem sobre isso.
O segundo trata-se de uma constatação. Face às dezenas de eventos artísticos que estão ocorrendo durante a pandemia de coronavírus, observo que muitos não foram pensados, tecnicamente, para serem apresentados em plataformas digitais como o Google Meet e Zoom. Este não é o caso de 19Distâncias, mesmo que os web-performers tenham enfrentado problemas técnicos como velocidade de internet e acesso a bons equipamentos tecnológicos. Assim, não basta apenas que exibamos os vídeos e filmagens de tais eventos para que eles sejam considerados como virtuais. É preciso, antes de qualquer coisa, pensar nessas plataformas digitais como espaços específicos que necessitam de linguagens adaptadas a esses espaços. E não somente de linguagens, mas também de equipamentos e de profissionais capacitados para essa nova realidade que estamos experimentando. Assim, nós das artes cênicas (teatro, dança, performance, circo e ópera), temos muito a aprender com especialistas da publicidade e propaganda, do cinema, do vídeo e da televisão.
Por último, nota-se que, mesmo tendo um caráter pedagógico, 19Distâncias apresenta e consolida a web-performance no estado de Rondônia, configurando-se como um evento de sucesso. O futuro é o aprimoramento e o aprofundamento dessa linguagem, e de outras correlatas, para que muitas web-circulações ao vivo aconteçam e conectem a capital rondoniense ao mundo. Vida longa ao “Fórum Performance-arte Norte”!
Muitos alunos do Curso de Licenciatura em Teatro, assim como atores e atrizes da cena teatral do estado de Rondônia, me procuram para se informarem quanto devem cobrar pelos seus trabalhos em campanhas publicitárias.
Essa não é uma questão fácil de responder, pois, como mencionado no post “Prostituição dos Atores de Rondônia”, são muitas as variáveis. Contudo, dá para se ter uma noção dos valores a serem cobrados aqui em nosso estado tendo como base algumas tabelas de preços encontradas facilmente na internet, principalmente em sites regionais do SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões), como, por exemplo, o do SATED-RS: https://www.satedrs.com.br/valores-referenciais
Usarei como referência a tabela do Sindicato do Rio Grande do Sul porque a realidade profissional no Sudeste, em especial em São Paulo, é muito diferente do resto do país. Acredito que muitas das empresas anunciantes em Rondônia não têm o mesmo poder financeiro que as empresas da região Sudeste do Brasil. Então, essa já é uma variável a ser levada em consideração.
Pois bem, então podemos afirmar que a cena profissional de Rondônia é parecida à do Rio Grande do Sul? Em termos financeiros sim. Já em termos de políticas públicas para a cultura não. Mas este é um assunto para outro momento.
Vamos à pergunta que se pode deferir do assunto principal do post: quanto cobrar? O site do SATED-RS divide os Pisos para Publicidade e Propaganda – Prestação de Serviços em três categorias, de acordo com a classificação dos produtos e conforme a duração de veiculação da propaganda (6 meses e 12 meses). São elas:
CATEGORIA “A”:
CAMA, MESA E BANHO, CIA. DE ALUGUEL, DECORAÇÃO, DROGARIAS, SERVIÇOS DE SAÚDE (ODONTOLÓGICOS E ESTÉTICOS), EDITORAS, EMISSORAS DE RÁDIO, FEIRAS E EXPOSIÇÕES, IMÓVEIS, INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS, LIVRARIAS, LOJAS DE DEPARTAMENTO, LOJAS DE VAREJO, MAGAZINES, MODA E ACESSÓRIOS, ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS, ONGS, RESTAURANTES, LOJAS DE SERVIÇOS VIRTUAIS, SUPERMERCADOS, TVS E CANAIS POR ASSINATURA.
06 MESES:
ATOR/ATRIZ – PRINCIPAL R$ 6.540,90 + 20%
ATOR/ATRIZ – COADJUVANTE R$ 4.618,20 + 20%
12 MESES:
ATOR/ATRIZ – PRINCIPAL R$ 11.432,80 + 20%
ATOR/ATRIZ – COADJUVANTE R$ 7.835,80 + 20%
CATEGORIA “B”:
BEBIDAS NÃO ALCOÓLICAS, CIAS. AÉREA, COMESTÍVEIS, ELETRODOMÉSTICOS, ELETRÔNICOS, APARELHOS CELULARES, APARELHOS E COMPONENTES DE INFORMÁTICA, EMISSORAS DE TV ABERTA, FAST-FOODS, HOTÉIS, JORNAIS, LINGERIE, MODA PRAIA, MOTOS, PRODUTOS DE LIMPEZA, PRODUTOS PARA ANIMAIS, REVISTAS, SHOPPINGS, VIAGENS E TURISMO.
06 MESES:
ATOR/ATRIZ – PRINCIPAL R$ 9.616,70 + 20%
ATOR/ATRIZ – COADJUVANTE R$ 6.803,00 + 20%
12 MESES:
ATOR/ATRIZ – PRINCIPAL R$ 16.027,80 + 20%
ATOR/ATRIZ – COADJUVANTE R$ 11.540,00 + 20%
CATEGORIA “C”:
PROVEDORES DA INTERNET, BANCOS, BEBIDAS ALCOÓLICAS E REFRIGERANTES, CARROS, CARTÕES DE CRÉDITO, INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS, CIGARROS, HIGIENE PESSOAL, MEDICAMENTOS, PERFUMARIAS, POSTOS E SERVIÇOS AUTOMOTIVOS, PRODUTOS DE BELEZA E COSMÉTICOS, SEGURADORAS, PLANOS DE SAÚDE, TELEFONIA CELULAR E CONVENCIONAL.
06 MESES:
ATOR/ATRIZ – PRINCIPAL R$ 12.822,30 + 20%
ATOR/ATRIZ – COADJUVANTE R$ 8.975,60 + 20%
12 MESES:
ATOR/ATRIZ – PRINCIPAL R$ 21.417,90 + 20%
ATOR/ATRIZ – COADJUVANTE R$ 15.006,80 + 20%
Já para FIGURAÇÃO, aquela pontinha que fazemos na propaganda e damos “apenas” um leve sorriso, mas que consome um tempão do nosso tempo no set de filmagem, os preços, para veiculação de uma propaganda de 6 meses, seriam:
– Categoria A – R$ 771,70;
– Categoria B – R$ 451,20 ;
– Categoria C – R$ 320,60.
Já para a filmagem de Vídeos Internos/Treinamento/Institucional, com veiculação de até 6 meses, os valores praticados são:
ATOR/ATRIZ – PRINCIPAL: R$ 1.200,00;
ATOR/ATRIZ – COADJUVANTE: R$ 900,00.
Ah, tem também as empresas e anunciantes que contratam atores e atrizes para serem modelos de Detalhes de Corpo(NARIZ, OLHOS, BOCA, PÉS, MÃO): R$350,00 (por parte exibida). Eu mesmo, quando morava em Belo Horizonte, vivia mandando fotos de mãos e de pés para agências publicitárias que anunciavam produtos para essas partes do corpo como, por exemplo, hidratantes e esmaltes. Já em Florianópolis, conheci um sujeito que era garoto propaganda de bumbum. Sempre via fotos do seu rechonchudo traseiro nas caixas de cuecas que eram vendidas em shoppings e lojas de varejo. Infelizmente, na época, isso em 2009, ele não quis revelar quanto ganhava para realizar tais promoções! Hoje, a partir deste post, já consigo imaginar o cachê dele.
O site do SATED-RS aponta também que “NUDEZ DEVE SER SOB CONSULTA E DE LIVRE NEGOCIAÇÃO DE VALORES” e que ” REEMBOLSO DE DESPESAS PARA TESTE (é de) R$ 60,00″. E esclarece também:
“PARÁGRAFO PRIMEIRO: NA CONTRATAÇÃO DO ATOR O VALOR TOTAL DA REMUNERAÇÃO CORRESPONDE AO PAGAMENTO DA(S) DIÁRIA(S) DE SERVIÇOS DO PROFISSIONAL MAIS OS PERCENTUAIS CORRESPONDENTES AO PAGAMENTO DOS DIREITOS CONEXOS (CONCESSÃO DE USO DE IMAGEM E SOM) DO PROFISSIONAL, CONFORME APLICAÇÃO DAS TABELAS ACIMA ESTIPULADAS NESTA CLAUSULA.
PARÁGRAFO SEGUNDO: OS PERCENTUAIS CORRESPONDENTES AO PAGAMENTO DOS DIREITOS CONEXOS (CONCESSÃO DE USO DE IMAGEM E SOM) SERÃO APLICADOS OBRIGATORIAMENTE EM REFERÊNCIA AO VALOR DA PRIMEIRA DIÁRIA, FICANDO AS DEMAIS DIÁRIAS INDEXADAS OU NÃO AOS ÍNDICES PERCENTUAIS REFERIDOS CONFORME LIVRE ACORDO ENTRE EMPREGADO E EMPREGADOR.
PARÁGRAFO TERCEIRO: A DIÁRIA NORMAL DE TRABALHO DO ATOR SERÁ DE ATÉ, NO MÁXIMO, 8 (OITO) HORAS EFETIVAMENTE TRABALHADAS.
PARÁGRAFO QUARTO: A DIÁRIA DE TRABALHO DO ATOR TERÁ INÍCIO A PARTIR DA HORA EM QUE ELE ESTIVER À DISPOSIÇÃO (APRESENTAÇÃO AO SET DE FILMAGEM) DO CONTRATANTE (PRODUTORA), ATÉ A HORA DO TÉRMINO DOS SERVIÇOS.
PARÁGRAFO QUINTO: O HORÁRIO MARCADO PARA A CHEGADA DO ATOR AO SET DE FILMAGEM DEVERÁ SER O MAIS PRÓXIMO POSSÍVEL DO INÍCIO DAS FILMAGENS, EVITANDO-SE DESSA FORMA OBRIGAR ATOR, ATRIZ A CHEGAR ANTES OU DURANTE A MONTAGEM DO SET.
PARÁGRAFO SEXTO: PARA SE OBTER O VALOR TOTAL DE DIÁRIAS EXTRAS, MULTIPLICA-SE O VALOR DA UMA DIÁRIA PELO NÚMERO DE DIÁRIAS EXTRAS EFETIVAMENTE TRABALHADAS.
PARÁGRAFO SÉTIMO: AS HORAS E DIÁRIAS EXTRAS INCORPORAM O VALOR TOTAL DO CONTRATO DE TRABALHO DO ATOR E DEVERÃO SER PAGAS JUNTAMENTE COM ESSE CACHÊ.
– TRABALHO DE ESTAGIÁRIOS: PODERÃO SER ADMITIDOS ESTAGIÁRIOS, DE ACORDO COM A LEI 11.788 DE 25/09/2008.
PARÁGRAFO ÚNICO: FICA VEDADA A UTILIZAÇÃO DE ESTAGIÁRIOS EM SUBSTITUIÇÃO AO TÉCNICO PROFISSIONAL.
– CONTRATO DE PROFISSIONAIS: É OBRIGATÓRIO PARA O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DE QUE TRATA O DECRETO Nº 82.385, DE 05 DE OUTUBRO DE 1978, QUE REGULAMENTOU A LEI Nº6.533, DE 24 DE MAIO DE 1978, O PRÉVIO REGISTRO NA DELEGACIA REGIONAL DO TRABALHO E EMPREGO, FICANDO VEDADA A CONTRATAÇÃO DE PROFISSIONAIS POR PRAZO DETERMINADO, TEMPORÁRIO OU EVENTUAL QUE NÃO POSSUAM TAL REGISTRO (sublinhados meus).
– REGISTRO PROVISÓRIO E CONTRATO DE TRABALHO: SERÁ PERMITIDA A CONTRATAÇÃO DE PROFISSIONAIS COM REGISTRO PROVISÓRIO, CONFORME O ART. 17 DO DECRETO Nº 82.385/78.
– FIGURANTE EM ATUAÇÃO ESPORÁDICA: A CONTRATAÇÃO DE FIGURANTE NÃO QUALIFICADO PROFISSIONALMENTE, PARA ATUAÇÃO ESPORÁDICA (sublinhado meu), DETERMINADA PELA NECESSIDADE DAS CARACTERÍSTICAS DA OBRA OU LOCAÇÃO, SERÁ FEITA MEDIANTE APROVAÇÃO CONJUNTA DO SINDICATO CONVENIENTE, CONFORME ART. 56 DO DECRETO Nº 82.385/78.
– PROFISSIONAL ESTRANGEIRO: AS EMPRESAS SE COMPROMETEM A RECOLHER A IMPORTÂNCIA DE 10% DO VALOR TOTAL DA REMUNERAÇÃO DE PROFISSIONAL ESTRANGEIRO DOMICILIADO NO EXTERIOR À CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, EM NOME DO SATED/RS, CONFORME ESTABELECEM O ART. 25 DE LEI 6.533/78 E O ART. 53 DO DECRETO Nº 82.385/78.
– UTILIZAÇÃO DE NÃO PROFISSIONAIS: A UTILIZAÇÃO DE NÃO PROFISSIONAIS EM FUNÇÕES PRIVATIVAS DE ARTISTAS E TÉCNICOS EM ESPETÁCULOS DE DIVERSÕES, DEPENDERÁ DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO SATED/RS. (sublinhados meus).
PARÁGRAFO PRIMEIRO: A AUTORIZAÇÃO A QUE SE REFERE O CAPUT DESTA CLAUSULA SERÁ CONDICIONADA AO RECOLHIMENTO, EM FAVOR DO SATED/RS, DA IMPORTÂNCIA DE 15% (QUINZE POR CENTO) DO AJUSTE TOTAL DA CONTRATAÇÃO DE NÃO PROFISSIONAL À CAIXA FEDERAL EM NOME DA ENTIDADE SINDICAL DOS ARTISTAS E TÉCNICOS – SATED/RS”.
____________________________
Como pudemos observar nas citações acima, o SATED-RS tem amparo legal para propor os valores referenciais, bem como para cobrar o registro profissional dos atores e atrizes que atuam em campanhas publicitárias. Vimos também que os NÃO PROFISSIONAIS, desde que tenham autorização do sindicato, e que com este contribuam com uma taxa de 15% do valor do cachê, podem atuar em comerciais. Todavia, aqui em Rondônia, devido à desarticulação do SATED-RO, nós atores e atrizes estamos completamente desamparados. Por isso, é importante cobrarmos do nosso sindicato maior atuação frente aos abusos que ocorrem em nosso estado. Abusos estes que se dão em três frentes: 1- o vergonhoso cachê pago aos artistas; 2- a utilização de não profissionais em campanhas publicitárias; 3- A não redação e assinatura de um contrato de trabalho.
Para finalizar este post gigantesco, mas necessário, gostaria de chamar a atenção da classe teatral de Rondônia para a necessidade de uma articulação junto ao SATED-RO (quem são?) a fim de criarmos a nossa tabela de valores e cobrarmos das produtoras maior profissionalismo, respeito e valorização do nosso trabalho. Direitos são para serem respeitados! E os deveres para serem cumpridos!
Estamos nos prostituindo ao aceitarmos gravar propagandas por míseros R$ 100,00?
Sim, estamos.
E nos prostituímos também ao acreditarmos que é esse o valor que se pratica, comercialmente, no mundo profissional. Não sejamos ingênuos! As agências de publicidade rondonienses estão explorando o nosso trabalho. E não estariam elas enriquecendo-se com isso?
Sem querer atacar a profissão dos prostitutos, pois a prostituição é um trabalho honesto, assim como vários que temos notícia – muito mais digno, aliás, do que a carreira política brasileira; a comparação aqui feita é metafórica, no sentido simbólico do peso que a palavra prostituição tem para a nossa sociedade.
Então, não vendamos o nosso corpo-trabalho a preço de bananas. Não aceitemos as chantagens, a falta de profissionalismo e de respeito das agências publicitárias do nosso amado estado. Aprendamos a nos valorizar, pois, afinal de contas, somos dedicados, estudados e merecemos respeito e valorização profissional. Quantas vezes acordamos de madrugada para irmos ao trabalho e ensaiarmos os nossos espetáculos e ministrarmos nossas aulas? Sim, os grupos e escolas de teatro são instituições, locais sérios de labor. Assim como um médico e um advogado – profissionais considerados valorosos -, nós atores, atrizes, diretores, professores, técnicos, etc. temos que ser valorizados. Contudo, se não aprendermos a nos valorizar, quem o fará?
Utilizemos nossa inteligência e bom senso e façamos um cálculo matemático relativamente simples:
1- Quanto gastamos com nossa formação artística principal? Cursos de doutorado, mestrado, pós-graduação, graduação e técnico? Eu, particularmente, em vinte e três anos de estudos, gastei centenas de milhares de reais. E continuarei a gastar, pois nunca pararei de estudar. E você?
2- Que valor pagamos com nossa formação artística secundária? Entendo, por isso, as oficinas, cursos, workshop, etc., que participamos. E não se engane, haja vista tal formação nunca ser completamente de graça. Aliás, nada é de graça se pensarmos que temos que arcar com os custos de passagens, alimentação e materiais para estudo como, por exemplo, xérox.
Bem, se colocarmos em planilha “apenas” esses gastos já saberíamos que R$ 100,00 não pagam nem um minuto do nosso trabalho. E os demais custos? São muitos, não é mesmo? Então, por que aceitar trabalhar por essa vergonha de cachê?
Esse valor esdrúxulo deveria pagar unicamente o nosso cachê teste. Do que se trata isso? O tempo que dedicamos à prova para realizar uma propaganda: a saída de casa, a fila que permanecemos, o tempo de filmagem do piloto… Em Belo Horizonte, minha cidade de origem, o cachê teste, em agências sérias e profissionais, é de R$ 100,00. No Rio de Janeiro e São Paulo, cidades mais caras, o valor varia entre R$ 150,00 e R$ 200,00.
E quem define esse valor? Nós, a classe artística. Respaldados, é claro, pelo SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões) e pelas legislações trabalhistas brasileiras. A propósito, por onde andam os representantes do SATED-RO? O que têm feito tais representantes para defender as necessidades dos artistas locais? Quais normatizações são discutidas e aprovadas a fim de proteger os nossos interesses? Por que o SATED-RO não se manifesta sobre o vergonhoso valor que está sendo praticado aqui? E por qual motivo tal sindicato não se coloca em relação a muitos que estão fazendo propaganda e que nem artistas legalizados são? Você sabia que podemos exigir isso do SATED-RO? Ao menos sabe que a sede desse sindicato, conforme consta na página https://www.facebook.com/pages/Sated-RO/235776209888109 , está no endereço apontado?
E se o cachê teste custaria por volta de cem reais, quanto cobrar por uma propaganda vinculada em uma grande rede de televisão?
Isso varia. Difere por diversas razões: pela duração do tempo de veiculação da propaganda e pelas plataformas (tv, rádio, vídeo, internet, revistas, etc) que serão veiculadas; pela duração da própria propaganda (um minuto? Dois?); pelo tempo que você gastou para gravar a propaganda; pelos locais onde serão divulgadas (cidades, estados e países); pela marca que será divulgada (uma coisa é gravar um vídeo promocional para a Coca-Cola, outra é participar de um vídeo de uma marca de refrigerantes local!); pelo valor da sua imagem (lembre-se de quanto tempo você estudou e de quanto gastou para se formar!).
Passemos a alguns exemplos, levando-se em consideração uma propaganda para uma empresa de pequeno a médio porte:
1- Se você é ator iniciante, e legalizado pelo SATED-RO, não aceite gravar uma propaganda de um minuto por menos de R$ 500,00;
2- Se você já tem um pouco de experiência, pois estuda Teatro na UNIR (e em outros lugares sérios) e faz parte de grupos de teatro em Rondônia, um minuto do seu trabalho não vale menos que R$ 800,00;
3- Se é estudante mais avançado, por exemplo, cursando o 7º período do Curso de Teatro da conceituada Universidade Federal de Rondônia, não grave por menos de R$1000,00;
4- Se é estudante e premiado em festivais de teatro, a figura muda um pouco: aumente quinhentos reais em seu cachê;
5- Se já se formou, peça mais quinhentos. Ou seja: R$ 2000,00;
6- Se já tem especialização, um pouco mais: R$ 2500,00;
7- Mestrado? R$ 3500,00;
8- Doutorado? No mínimo R$ 5000,00.
Ah, você é famoso? Então, possivelmente, quererão pagar a você uma fortuna. Cobre o quanto vale!!!
Para finalizar, valorize-se! Não aceite ganhar menos que você merece. Não trabalhe sem contrato. Cobre do SATED-RO a verdadeira atuação de um sindicato. Denuncie ao SATED-RO irregularidades que perceber, tal como um não-ator fazendo uma propaganda como se fosse ator. Esse não-profissional está ocupando o lugar que deveria ser seu por direito!
Não se prostitua! Não venda seu corpo-trabalho às agências de publicidade de Rondônia!
Eu tenho me perguntado ultimamente quem são meus inimigos e se de fato os tenho. É uma questão que permeou praticamente 2018 todo e com certeza levarei para o ano seguinte esse questionamento. Isso porque, como todos sabem, vivemos uma guerra digital, em que as máscaras e velhos preconceitos voltaram a florescer em solo brasileiro.
Dois mil e dezoito foi um ano de perdas, simbólicas, materiais, sentimentais. Perdemos amigos e familiares que achávamos serem mais críticos, imunes aos discursos inflamados e … cheios de ódio (mesmo que esse tenha tentado ser justificado). Nunca pensei que iria chorar por causa de política, mas chorei. Ver o discurso de ódio vencendo e assumindo o poder da nação mexeu comigo, com os meus, e com os outros.
Acho que a pontada maior, a que apertou mais, a que me jogou no fosso do medo e presentificou através da arte a realidade que vivemos, foi a cena em que a personagem-boneco “Senhora Democrácia”, do espetáculo “Inimigos do Povo”, morreu e foi sepultada pelos demais personagens. Ali, materializado, estava o meu sentimento de perda após as eleições presidenciais de 2018.
Dirigido pelo professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, Luciano Oliveira, o espetáculo com mais de uma hora de duração e adaptado da peça “Um Inimigo do Povo” de Henrik Ibsen, é um verdadeiro grito de protesto contra a hipocrisia da sociedade em que vivemos. Onde quase sempre o “certo” é substituído pelo “fácil” e a honestidade é achacada pelos “homens de bem”.
A Trupe dos Conspiradores, grupo formado essencialmente por professores e acadêmicos do curso de teatro da Unir, levou para o palco do Teatro Guaporé, em Porto Velho (RO), entre os meses de novembro e dezembro, uma miscelânea criativa de propostas cênicas, jogos teatrais, danças, projeções audiovisuais, tudo isso costurado de forma habilidosa pelo diretor e pelos próprios alunos que sugeriram muitas das cenas apresentadas. Como esquecer da dança com guarda-chuvas? Como não se chocar com o cachorro-homem com a bandeira do Brasil na face urinando em cima de um Dr. Stockmann humilhado, desacreditado por toda uma cidade que, pelo ganho econômico provindo de um balneário contaminado por vírus, fungos, bactérias deixou de acreditar no discurso especializado da ciência? Como não associar todos aqueles judeus projetados ao fundo, à toda a sorte de desvalidos, de gente à margem das políticas e benesses que deveriam ser promovidas pelo Estado com o dinheiro dos inúmeros impostos abusivos cobrados desde antes de nascermos?
“Inimigos” nasceu e se desenvolveu durante mais de um ano, acompanhando todo esse movimento rumo a um Estado autoritário, um Estado de ignorância generalizada, de discursos odiosos. “Inimigos” juntou gente que vive o teatro, que vasculha todas as camadas e subcamadas do texto-drama-país em busca de uma análise sincera sensível de uma nação que caminha para a barbárie, de gente que não entende o discurso-arte, que prefere se basear em fatos alternativos, que renega a ditadura brasileira (como pudemos ver ao final de uma das noites de apresentação).
É possível associar toda essa guerra virtual, essa desconstrução da verdade (dos fatos), essa inflamação de ódio aos diferentes e não hegemônicos, que vivemos durante o período eleitoral ao contexto apresentado por “Inimigos do Povo”. A peça, escrita em 1882, é tão atual que a cada página é inegável traçar paralelos com fatos da contemporaneidade em que vemos prevalecer a roubalheira generalizada. Melhor ainda foi a montagem realizada pela Trupe dos Conspiradores, em que, junto ao texto original, foram adicionados vários elementos atuais, criando esse jogo entre passado-presente-futuro (ainda me pego pensando na morte da Democrácia).
Enfim, 2018 me mostrou que é melhor manter certas pessoas-pensamentos sob vigilância, algumas até distantes. E ver, acompanhar o processo de criação de Inimigos, ajudar a montar o cenário, me mostrou que o teatro é um dos meus locais de fala-pensamento, que no teatro encontro os afetos necessários para aguentar esta realidade que é mais ficcional que a própria ficção. Espero que no próximo ano a Trupe possa realizar mais temporadas deste espetáculo tão necessário para entender a hipocrisia humana.
O espetáculo solo “Tabule”,
apresentado no Teatro Guaporé no dia 26/11 como encerramento da II Mostra de
Encenações do Dartes/UNIR, foi uma verdadeira aula de Teatro!
Em 50 minutos de magia e
realidade misturados com rara maestria cênica, o ator Júnior Lopes nos (re)ensinou
o que os estudos teatrais da atualidade definem como “encenação”, “atuação”, “gestualidade”,
“iluminação”, “cenografia”, “figurino”, “caracterização”, “música de cena”, “texto”,
“corpo”, “voz” e tantas outras coisas estudadas e praticadas anos a fio por
aqueles que se entregam à dor e à delícia
(como diria Caetano Veloso) de contar, poeticamente, uma história a alguém.
E esse alguém – nós, os chamados
“espectadores” – assistimos sim, mas, sobretudo, vibramos intensamente a cada
peripécia vivida pela protagonista, a libanesa Zahara. Como ator, Júnior
enfrenta o desafio de viver no palco uma personagem feminina; desafio a mais dessa
arte milenar que mistura ingredientes díspares como dor e alegria, graça e
pesar, ficção e fantasia, inspiração e técnica.
Um homem interpretar uma mulher
não é coisa contemporânea… Até recentemente na história do Teatro, a
proibição de a mulher apresentar-se em público se fez presente nas mais distintas
culturas, do Extremo Oriente ao Novo Mundo. Cabia a esses atores levar para a
cena não apenas os trajes, os gestos, as vozes das mulheres de seus tempos mas,
principalmente, aqueles seus dons de
iludir (Valha-me, Caetano!) que sempre fez da mulher, no imaginário masculino,
um ser ao mesmo tempo nefasto e divino. Um
ser maravilhoso, entre a serpente e a estrela – canta Zé Ramalho, revelando
o sentimento de impotência do homem comum em lidar com o feminino, cuja
essência em geral lhe escapa.
Mas não é esse o caso em Tabule; Júnior faz a necessária tarefa
de nos lembrar que, para dar vida a um personagem, não basta vestir os seus trajes
ou “fazer” a sua voz. Quem gosta ou vive o Teatro acaba aprendendo que representar
vai muito além da mera “representação”. De modo que, em cena, não vemos um ator
representando uma mulher, mas uma muçulmana contando a sua dolorosa trajetória
como se não fosse assim tão dolorosa…
Cada gesto, cada palavra entoada com aquele delicioso sotaque árabe –
reconhecido na fala de inúmeros imigrantes que todos nós conhecemos por este
Brasil afora – é a pura presença do Feminino, não só em forma, mas principalmente
em conteúdo. Os elementos de dança do ventre que o ator executa em cena
extrapolam em muito o desempenho das complexas técnicas de movimento dessa arte
milenar (o que já seria, em si, uma façanha e tanto!), tornando-se a metáfora
de cada etapa vivida com e através do próprio corpo, trazendo para nós
espectadores o sentido de que o universo reside mesmo no ventre da mulher. Com tudo o que isso pode significar em
termos de tristeza, alegria ou esperança. Dançamos junto com Zahara em todos os
momentos em que ela se entrega ao som contagiante de sua pátria, ainda que esta
lhe seja tão dura e árida quanto o deserto.
O ator mostra-nos a cada segundo
o desafio que é criar em cena uma figura feminina profundamente humana cujo desabafo,
embora tão verdadeiro e atual, não se permite em nenhum momento cair nas armadilhas
da lamentação chorosa ou no recurso fácil da caricatura. Ao contrário, a tragédia
de uma vida repleta de episódios cruéis é tratada com a espantosa naturalidade
de quem vê e vive cotidianamente a violência sobre a sua pessoa, pelo simples
fato de ter nascido mulher. Violência essa, naturalizada na sociedade,
instituída no lar, sacralizada nas Sagradas Escrituras.
Em sua simplicidade, Zahara
percebe que há algo errado com o mundo que habita. Tenta em vão encontrar,
nele, algum espaço digno para si. Então, ao constatar que não existem linhas de
fuga para fora dessa realidade cruel, foge enlouquecida. Em busca de um mundo que
existe apenas nas “mil e uma noites”, a protagonista atravessa oceanos… de
areia! Jornada desesperada de quem, à procura de um sonho de liberdade, só
encontra miragens. Por isso, aonde quer que vá, mesmo em sua terra natal,
Zahara é sempre uma estranha. Ilegal. Reconhecida como socialmente incapaz de
arbítrio, eternamente dependente do favor do homem – seja o pai, o irmão, o
marido ou o cliente num prostíbulo – só lhe resta o desejo mórbido de explodir
o mundo e, junto com ele, todo o conjunto de atrocidades que bem conhece, no
corpo e na alma. Ato de puro terrorismo, do qual nós, espectadores, nos
tornamos cúmplices. Afinal, quem na plateia – homem ou mulher – não seria capaz
de reconhecer na fantasia de “vir para o Brasil, onde não existe violência contra a mulher”, sua própria imagem refletida
ironicamente nesse jogo de espelhos?
06/11/2018 – Teatro Guaporé, 15 h. Apresentação no IV Festival Unir Arte e Cultura, voltada para uma escola da Rede Estadual de Ensino de Porto Velho (Ensino Médio).
24/11/2018 – Teatro Guaporé, 20 h – Apresentação na II Mostra de Encenações do Dartes/UNIR.
25/11/2018 – Teatro Guaporé, 19 h – Reapresentação na II Mostra de Encenações do Dartes/UNIR.
06/12/2018 – Teatro Guaporé, 15 h. Apresentação para uma escola da Rede Estadual de Ensino de Porto Velho (Ensino Médio).
Espetáculo teatral contemporâneo (que mistura teatro, teatro de formas animadas, dança, música, vídeos e projeções) livremente inspirado na obra “Um Inimigo do Povo” (1882), do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. O processo de montagem desse espetáculo iniciou-se dentro do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e hoje é uma ação do Projeto de Extensão Trupe dos Conspiradores: pesquisa e prática em encenação e em atuação. Nosso espetáculo traça um paralelo entre as temáticas do texto de Ibsen com acontecimentos político-sociais do Brasil atual. Por meio de Inimigos do Povo conspiramos contra a corrupção, homofobia, hipocrisia, unanimidade, racismo, machismo, partidarismo, intolerância religiosa e de gênero, ditadura, mau-caratismo, fome, reforma trabalhista, reforma da previdência e precarização da saúde e da educação.
O projeto Inimigos do Povo – Trupe dos Conspiradores foi contemplado pelo PRÊMIO DE TEATRO JANGO RODRIGUES – 2017 e tem o apoio do Governo do Estado de Rondônia e da SEJUCEL (Superintendência Estadual da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer).
A Trupe dos Conspiradores conta também com o apoio da FUNCER (Fundação Cultural do Estado de Rondônia), da PROCEA (Pró-reitoria de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis da UNIR), do Departamento de Artes da UNIR, da Banda Tuer Lapin, da Sol Maior Escola de Música, da Panificadora Kamilly e da Arte Gesso.
FICHA TÉCNICA:
Encenação – Luciano Oliveira
Texto – Criação Coletiva (livremente inspirada em Um Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen)
Direção Musical, preparação vocale piano – Jussara Trindade Moreira
Preparação Corporal – Luiz Lerro
Assistência de Encenação e Maquiagem – Sheila Souza
Cenografia – Elcias Villar
Iluminação – Edmar Leite e Raoni Amaral
Assistência de Cenografia – Emerson Garcia
Cenotécnicos – Amanda de Souza, Emerson Garcia e Sâmia Pandora
Indumentária – Teo Nascimento e Selma Pavanelli
Assistência de Indumentária – Michele Castro e Vinícius Brito
Direção, produção de vídeoe fotografia – Raissa Dourado
Confecção de cases (sacolas de lona) – Ismael Neves
Contrarregragem – Vinícius Brito
Produção – Flaw Naje
Execução de Trilha Sonora – Rafael Correia
Execução da Marchinha – Anderson Benvindo
Diagramação – Leandro Almeida
Assessoria de Imprensa – Emanuel Jadir Siqueira
Elenco – Ádamo Teixeira, Andrelina Paiva, Enderson Vasconcelos, Jamile Soares, Stephanie Matos e Vavá de Castro
Elenco coringa – Alexia Dantas, Jonathan Ignácio e Teo Nascimento
MÚSICAS DO ESPETÁCULO:
Te Arreda – Paródia de Adoleta (Cantiga de Roda) – Letra de Jussara Trindade
Mulher Eu Sei – Chico César (Por Caio Prado e Johnny Hooker)
Marchinha – Anderson Benvindo
Fermento pra Massa – Crioulo
Efeitos Sonoros de Cinema
Mortem Submersi – Tuer Lapin
Esse prefeito é mesmo uma piada! – Paródia de De Nada (Filme Moana) – Letra de Enderson Vasconcelos e Jussara Trindade
O país de uma nota só – Musicalização de trecho de poesia de Carlos Marighella – Arranjo para piano de Jussara Trindade
A Terceira Lâmina – Zé Ramalho
Lacrimosa – Wolfgang Amadeus Mozart
Água – Uakti
Sem título – Uakti
AGRADECIMENTOS: A Trupe dos Conspiradores e os artistas de Inimigos do Povo agradecem imensamente: Governo do Estado de Rondônia, SEJUCEL (Superintendência Estadual da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer), FUNCER (Fundação Cultural do Estado de Rondônia), PROCEA (Pró-reitoria de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis da UNIR), Departamento de Artes, Banda Tuer Lapin, Escola de Música Sol Maior (em especial à professora Sílvia Freire de Carvalho), Arte Gesso, Kamilly Panificadora e Confeitaria (Sr. Ronildo Chaves), Sr. Rodrigo Framil, Sr. Fabiano Barros, Sr. Paulo José Roman e a todos os demais funcionários do Complexo Teatral Palácio das Artes, Marcelle Pereira, Marcela Bonfim, Selma Pavanelli, Adailtom Alves, Junior Lopes, Paky’Op (Laboratório de Pesquisa em Teatro e Transculturalidade), João Branco e a todos do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, Paulo Santos e Thaiz Lucksis (Associação Cultural Waraji), Jaqueline Luquesi, Dona Antônia, Amanara Brandão, Hitalo Yuri Yamashita, Gilca Lobo e aos integrantes do #depositaSejucel. O encenador Luciano Oliveira agradece com muito amor a todos os artistas que emprestam seus talentos para a existência de Inimigos do Povo.
III Mostra de Encenações do DArtes/UNIR é um dos projetos aprovados e acontecerá em março de 2021
Projetos de professores, alunos e ex-alunos do Curso de Licenciatura em Teatro da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), submetidos em editais da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc e executados pelo Governo de Rondônia por meio da Superintendência Estadual da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer (Sejucel), foram aprovados e já estão em fase de planejamento e execução. Os projetos serão realizados de forma remota, devido à pandemia de Covid-19.
Para o Chefe de Departamento do Curso de Licenciatura em Teatro, Professor Doutor, Luciano Oliveira, o sentimento com relação à expressiva quantidade de projetos de alunos e professores do curso aprovados é de orgulho. O docente destaca que essas aprovações demontram que “[…] nós professores estamos desenvolvendo um bom trabalho. Que contribuímos para o crescimento profissional, artístico e humano deles. Quanto aos colegas de trabalho, observo o amadurecimento, a consolidação e o reconhecimento das pesquisas artísticas de cada um. Inclusive das minhas. É muito bom fazer parte de um corpo docente com profissionais tão gabaritados. Isso é motivador, pois a cada projeto aprovado de um colega, aumenta em nós o desejo de também escrevermos e termos aprovados os nossos projetos. Trata-se de uma relação saudável de cooperação e de trocas artístico-acadêmicas. Assim, em todas as esferas, o crescimento é conjunto: crescem os alunos, os professores, a universidade e a comunidade teatral de Porto Velho”.
Três dos projetos aprovados contam com a colaboração do Professor Luciano Oliveira, dentre eles a III Mostra de Encenações do DArtes/UNIR (Medu III), que tem como proponente a acadêmica do curso de Teatro, Stephanie Caroline Matos Dantas. “A realização da III Mostra de Encenações do DArtes/UNIR, mesmo que de forma remota, demonstra a entrada definitiva desse evento no circuito de festivais e mostras artísticas do estado de Rondônia. Ou seja, é um evento que veio pra ficar. E, neste ano, particularmente, após a aprovação da III Mostra em um edital da Lei Aldir Blanc, a possibilidade de poder pagar cachês aos artistas e técnicos participantes é muito gratificante. Enfim, a Mostra caminha a passos largos rumo à profissionalização”, comenta o docente.
Sobre a III Mostra de Encenações do DArtes/Unir
A III Mostra de Encenações do DArtes/Unir (MEDU III) acontecerá, de modo on-line, em plataforma de streaming, entre os dias 26 e 28 de março de 2021. A Mostra de Encenações é um projeto de extensão do Departamento de Artes da Universidade Federal de Rondônia, mais especificamente do Curso de Licenciatura em Teatro, com coordenação do Professor Dr. Luciano Oliveira. Trata-se de um evento no qual são apresentados ao público os projetos de encenação e artísticos desenvolvidos pelos alunos das disciplinas “Linguagem da Encenação Teatral” e “Fundamentos da Direção Teatral”, ministradas por esse professor. “Já realizamos, com muito êxito, no Teatro Guaporé de Porto Velho, duas edições dessa mostra: uma em 2017 e outra em 2018. Na terceira edição teremos apresentações dos seguintes vídeos: Avesso, Eldorado, A Carne e Caipora – Cena 1: O Jardim do Éden. Contaremos ainda com a apresentação dos espetáculos convidados Ela, Aquela e a Outra, da encenadora Stephanie Matos Dantas, e que já cursou as referidas disciplinas, mas cuja turma não pode participar das mostras anteriores; e Yalla, go!, do professor e ator Júnior Lopes. Por fim, realizaremos, pela primeira vez, junto com a mostra, o Seminário Processos Criativos em Tempos de Pandemia de COVID-19: do Teatro Convivial à Arte Tecnovivial”, adianta Luciano.
Relação de todos projetos aprovados com seus respectivos proponentes:
Edital nº 77/2020/Sejucel-Codec 1ª Edição Mary Cyanne: Jamile Soares (A Cena Negra Amazônica), Amanara Brandão (Que palhaçada é essa?), Raoní Izoli Amaral (Sanfona do Norte), Flávia Alessa Diniz Galvão (A Borracheira) e Stephanie Caroline Matos Dantas (Gritos do Cotidiano – Rompendo Estruturas), Andressa Christiny do Carmo Bastista (Oficina Produção de eventos culturais em plataforma virtual), Anderson Ferreira (Futuro – Anderson Black),
Edital nº 83/2020/Sejucel-Codec 1° Edição Alejandro Bedotti: Amanara Brandão Dos Santos Lube (Uma Estética dos Restos), Luciano Flávio de Oliveira (Fegues), Luiz Daniel Lerro (Mancebarranco Porto Velho: um tablóide virtual de ousadas webperforsarte)), Raoní Izoli Amaral (A Festa Junina de Porto Velho) e Adailtom Alves Teixeira (Pioneiros: chegadas, partidas e travessias), Andressa Christiny Do Carmo Batista (Partidas e Mecânicas …).
Edital nº 78/2020/Sejucel-Codec 1ª Edição Jair Rangel “Pistolino”: Adailtom Alves Teixeira (Poético Visual); Anderson Ferreira (Elipses).
Edital nº 86/2020/Sejucel-Codec 1ª Edição Marechal Rondon: Amanara Brandão Dos Santos Lube (Entre Portos: narrativas às margens), Stephanie Caroline Matos Dantas (Website da Trupe dos Conspiradores), Taiane Sales Nunes (Portifólio artístico digital de Taiane Sales), Taiane Sales Nunes (Dicas da Palhaça Firmina); Andressa Christiny do Carmo Bastista (Breve Manual de produção Cultural para artistas independentes), Luiz Daniel Lerro (Fórum Performance arte Norte), Andressa Christiny do Carmo Bastista (Plataforma Semear Cultura)
Edital nº 80/2020/Sejucel-Codec 1ª Edição Pacáas Novos: Jamile Pereira Soares (Festival PalhAçaí), Raoní Izoli Amaral (I Mostra de Teatro Caixa Mágica), Stephanie Caroline Matos Dantas (III Mostra de Encenações do DArtes/UNIR (Medu III)), Taiane Sales Nunes (Mostra de Performances Feministas), Edmar Leite (m.TAPIRI ed PerformArte.RO).
Para conferir todos os projetos selecionados em Rondônia acesse o link: https://bit.ly/3q4u7Hn. Para mais informações sobre a Lei Federal 14.017/2020 (Lei Aldir Blanc), que foi criada com a finalidade de auxiliar trabalhadores da cultura e os espaços culturais no período de isolamento social, decorrente da pandemia da Covid-19, acesse o link: https://bit.ly/3cR2air .
Legenda da imagem: Sucesso de público na II Mostra de Encenações do DArtes/UNIR, realizada em novembro de 2018, a personagem Zahara, de “Tabule”, da Cia Peripécias de Teatro Universitário e interpretada pelo ator e professor Júnior Lopes, retorna em nova cena na 3ª edição da Mostra, que acontecerá de 26 a 28 de março de 2021
Esta bem que podia ser uma indagação existencialista à la Sartre. Mas não! Trata-se, antes de qualquer coisa, de uma madura montagem teatral da Cia de Artes Fiasco, de Rondônia ─ agora com sede em Ji-Paraná ─ estreada no Teatro 1 do SESC Esplanada no último sábado, 09 de novembro de 2019, numa noite de forte e ruidosa tempestade.
Com encenação cuidadosa e delicada de Fabiano Barros, esse
espetáculo, cuja montagem foi contemplada pelo Prêmio Sesc de Incentivo às
Artes Cênicas (2019), conta ao espectador, sem palavras, e utilizando-se de
princípios estéticos do Teatro Imagem, a história de um homem solitário e
deprimido, quiçá portador de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC).
Tal homem repete, muitas vezes, por dias a perder de vista,
as mesmas ações: acordar, dar comida ao pássaro (aliás, inexistente na gaiola!),
mexer no despertador que não funciona, retirar e colocar a gravata no pescoço,
aguar uma planta sem vida ─ utilizando um regador sem água ─, se alimentar ─
sem ter nada no prato pra saborear ─, dar corda a um gramofone e ouvir dali um
ruído sem som, datilografar em uma máquina de escrever sem papel e voltar a
dormir novamente numa cadeira de balanço que não é cama. Essas ações absurdas e
repetitivas, e a repetição no espetáculo da Cia Fiasco é necessária, gera
ritornelos imagéticos e musicais. Aliás, a música é executada ao vivo pelo
competente Rinaldo Santos, que cria as atmosferas e climas os mais complexos e
psicodélicos possíveis para o desenrolar das ações cênicas. Inclusive, em dois
momentos, ele balbucia uma bela e triste melodia que acentua o exílio da
personagem, que aqui chamarei apenas de homem triste e solitário (sola et tristis homo). Por seu turno, os
raios, os trovões, as fortes ventanias e os densos pingos d’água sobre o teto
do teatro foi um ganho musical, um presente da natureza para uma já potente
dramaturgia sonora.
O homo,
competentemente representado por Nestor Neto, vive, por si só, em uma casa bela:
retrô. Faz do passado colorido o seu presente sem pigmento; dos formosos e
antigos objetos a sua melancólica companhia. A propósito, o cenário de Onde morrem os pássaros? é primoroso! Fabiano Barros
preocupou-se com os mínimos detalhes de cada móvel; com a semiótica de cada
objeto. Antiquário. Talvez seja esta a palavra mais oportuna para referir-se à
cenografia. E, quem sabe, também à indumentária, se assim pode ser chamada.
O vazio do protagonista é atravessado por uma
mulher (mulier): amante? Amiga? Parente?
Empregada? Não se sabe ao certo. Contudo, pela atuação eficiente e segura de
Laura Martins, nota-se que essa mulher é alguém que traz em sua bagagem a esperança.
E em sua mão um manuscrito, redigido em papel vermelho, a cor da paixão. A cor
do poeta Binho! Essa personagem se mete, como um fórceps, no cotidiano do depressivo.
Porém, a princípio, sua presença é ignorada pelo homo que está fechado, triste e ranzinza em seu paletó empoeirado. Todavia,
aos poucos a confiança é conformada, assim como se concilia a dor ao remédio.
Um pouco de vida é introjetada naquele cotidiano asfixiante, sofrido. Um
respiro feminino alivia a misantropia masculina. A música e a escrita, a arte
(sempre ela!), se tornam presentes para acalentar aquela alma que vagava
solitária pela morada.
Mas a melancholia,
como uma praga medieval, captura também a mulher. E esta, sem forças, é
contaminada ─ poeticamente ─ por essa maldita doença do século: a depressão. O
que fazer agora? Continuar a sofrer? Se matar? Não, acordar e viver, como os
deliciosos raios de sol que despontam a cada manhã de inverno.
Volta o ritornelo inicial. Porém, agora com uma
nova morte-vida: a da mulier. Quem
nunca se pegou perguntando acerca dos seus ritornelos semanais? Acordar, comer,
ir ao banheiro, tomar banho, enfrentar o trânsito, ir pro trabalho, enfrentar o
chefe, almoçar, ir ao banheiro, voltar a trabalhar, enfrentar novamente o
chefe, ir pra casa, enfrentar de novo o trânsito, comer, amar, dormir, acordar novamente,
ir pro trabalho, etc, etc, etc. Enfim, Onde morrem os pássaros? fala também
sobre isso: a vida que passa sem se dar conta. Sobre a presença da solidão:
quando uma pessoa tem alguém e continua a se sentir só. Sobre ritornelos
diários. Quod mors in omnes!
Artigo publicado em: Urdimento, v.2, n.32, p. 364-383, Setembro 2018.
O lugar dos objetos cênicos nas encenações de Eid Ribeiro[1] junto ao Armatrux[2]
Resumo: Neste artigo apresento
parte do conteúdo do livro de artista desenvolvido ao longo do meu doutorado,
defendido em 2016 na UDESC, bem como do livro resultante deste, publicado em
2017. Durante a pesquisa analisei o lugar dos objetos cênicos em três processos
criativos e espetáculos teatrais do encenador mineiro Eid Ribeiro junto ao Armatrux: De Banda pra Lua, No Pirex e
Thácht. No presente texto trago, em
síntese, o conceito ampliado de objeto que desenvolvi naquela ocasião. Também
analiso, a partir de um recorte de cenas desses espetáculos, as quatorze
categorias dos objetos encontrados durante a pesquisa, estas resultantes do
estudo das relações entre os atores e objetos em tais encenações. Um estrato maior
da pesquisa que optei por reproduzir aqui foi a diferença entre Teatro de Objetos e Teatro com Objetos.
Palavras-chave: Encenação.Ação consciente. Imagens. Teatro com
Objetos. Teatro de Objetos.
The place of the scenic objects in
the spectacles of Eid Ribeiro with to the Armatrux
Abstract: In this article I present part of the content of the artist's book developed during my doctorate, defended in 2016 at UDESC, as well as the resulting book published in 2017. During the research I analyzed the place of the scenic objects in three creative processes and theatrical spectacles of the director Eid Ribeiro with the Armatrux: De Banda pra Lua, No Pirex and Thácht. In this text I summarizing the extended concept of object that I developed at that time. I also analyze, from a cut-out of scenes of these spectacles, the fourteen categories of objects found during the research, these resulting from the study of the relations between the actors and objects in such productions. A larger stratum of the research I chose to reproduce here was the difference between Theater of Objects and the Theater with Objects.
Keywords: Staging. Conscious
action. Images. Theater with Objects. Theater of Objects.
Tenho certa fascinação pelos objetos, sejam eles
decorativos, fetichistas e/ou artísticos, principalmente os de âmbito teatral.
Independentemente das linguagens e modalidades das quais integram, sempre os
vejo com olhos de águia. Tento apreendê-los em todas as suas multiplicidades de
sentidos, de formas e de utilidades, pois, a meu ver, os objetos são entes, são
carregados de memórias e de um universo muitas vezes desconhecido por nós.
Como encenador, professor e pesquisador de teatro entendo
que olhos atentos são necessários para o fazer criativo, visto ser bastante
complexo lidar com os múltiplos elementos e exigências da cena. Um problema que
detecto quando dou aulas de direção teatral é que pela falta de atenção, ou por
mero descuido, ou ainda pelo pouco conhecimento do valor dos objetos, estes são
relegados, por vezes, a um segundo plano, ou até mesmo são esquecidos. Foi
pensando sobre isto que optei por pesquisá-los no doutorado. E assim, por
apreciar tanto esses seres, desenvolvi a tese O
objeto flutuante na estética e na poética teatral nas produções de Eid Ribeiro
junto ao Armatrux como um objeto, mais precisamente como um livro de
artista.
Cursei o doutorado, entre 2013 e 2016, no Programa de
Pós-graduação em Teatro da UDESC, com orientação de Brígida Miranda e coorientação de Wagner
Cintra (da UNESP). Durante a redação desse livro de artista tive o auxílio
editorial de Gustavo Kaimoti, da Editora Scienza, de São Carlos. Logo, tal tese
foi defendida como um livro interativo, no qual links de músicas e vídeos dos espetáculos do Armatrux −De Banda pra Lua, No Pirex e Thácht − poderiam ser
acessados pela pessoa que lê por meio de um aplicativo leitor de QR_Code. Sustentei a hipótese de que o objeto teatral flutua entre
a poética e a estética artística desses três espetáculos.
De
Banda pra Lua, ou De
Banda, como é chamada pelos artistas do Armatrux,
é o único espetáculo infantil da amostragem selecionada para estudo. Nessa
montagem,Eid Ribeiro mesclou o
teatro de atores com o teatro de animação e com vídeos. Os objetos cênicos, em
tal trabalho, são poucos, mas muito potentes e interessantemente utilizados,
pois, esteticamente, são misturados com sombras, bonecos, projeções e com os
próprios atores. Já em No Pirex,
direcionado ao público adulto, Ribeiro começou a aprofundar as suas pesquisas
com os objetos, em especial com materiais de cozinha, chocando-os e
hibridizando-os com princípios estéticos de diferentes linguagens artísticas,
como o cinema mudo e o circo. E em Thácht,o encenador verticalizou as suas
investigações com os objetos de cena, uma vez que a encenação se estruturou a partir da
definição de cenas gags com três unidades
de objetos principais (bengalas, chapéus e lenços), bem como a
partir da relação direta e criativa dos atores com esses elementos cênicos.
Ao longo da minha pesquisa
destaquei como o objeto, nos processos criativos e na cena ribeiriana junto ao Armatrux, estabelece ligações com o
cenário, está no cenário e/ou é ele próprio o cenário; mantém estrita relação
com o figurino; com a iluminação; com a trilha sonora (por ocasiões ele mesmo
constituidor de sonoridades); com o ator (fundamental na sua manipulação e na
criação de signos, sentidos e correlações), com a plasticidade do espetáculo e
com o texto (podendo também ser texto ou referenciado no texto, por meio de
rubricas ou de didascálias internas). A tese defendida, e que se encontra
depositada na Biblioteca Central da UDESC, demonstra ainda como em algumas
situações cênicas desses três espetáculos
o
objeto é o elemento propulsor da criação, constituindo, assim, a espinha dorsal
do trabalho a ser levado ao público.
Após alguns meses do
encerramento do doutorado decidi dar continuidade à parceria com a Scienza e
publiquei o meu livro de artista sob o título Eid Ribeiro e o Armatrux em processo: o objeto flutuante entre a
poética e a estética teatral. Ademais
do nome, o
que diferencia o livro da tese é uma apresentação redigida por Rogério Oliveira,
professor da Universidade Federal de Ouro Preto, e a ausência dos anexos.
Voltemos ao conteúdo da tese e do livro publicado,
ambos livros de artista. No que concernem às especificidades dos objetos no
teatro, argumentei que eles dialogam e se encontram em estrita relação com os
demais elementos constituintes da encenação teatral.
Parti do pressuposto de que os objetos são componentes
materiais e visuais da cena, e de que são essenciais para a constituição
estética de um espetáculo. Ou seja, mesmo que isolados no espaço, eles se
relacionam de modo direto com os múltiplos elementos da encenação, constituindo
visualidades, atmosferas, climas e até mesmo paisagens sonoras. O texto que redigi
sustentou que os objetos teatrais produzem imagens e insertam dicotomias,
antíteses, paradoxos, metáforas, metonímias e poesias; criando sentidos. Eles
também geram presença, constituindo, por vezes, a própria presença. Os objetos
contêm histórias e as figura por meio de sua ligação com o espaço. Enfim, os
objetos de cena criam, ampliam e aprofundam espaços simbólicos e memoriais.
Argumentei ainda que, no ato
da realização teatral, sem a intencionalidade da ação do ator, o objeto
configura-se apenas como um elemento secundário. No entanto, se o ator, durante
suas ações, relaciona-se de modo consciente com um elemento material da cena −
seja ele o cenário, o adereço, o acessório, os instrumentos musicais, o
figurino e/ou os bonecos – esse elemento pode ser considerado como objeto
cênico. Este é, em suma, o conceito ampliado de objeto que apresentei.
Tanto a tese quanto o livro contém quatro capítulos.
Contudo, a introdução é uma espécie de prefácio, no qual consta uma pequena
biografia do encenador Eid Ribeiro, um apanhado histórico do Armatrux e um breve currículo artístico
dos atores e atrizes integrantes desse grupo[3].
No Capítulo I, intitulado Conceitos e Categorias Preliminares, para compreender melhor as especificidades dos objetos
cênicos, elaborei o já mencionado conceito ampliado de objeto, assim como propus
a divisão dos objetos cênicos em quatro níveis poéticos principais (ou quatro
camadas significantes): o primário, o secundário, o terciário e o quaternário. Ademais,
os distribuí e os classifiquei em quatorze categorias
de caráter técnico-analíticas. Estas não foram dadas a priori, mas surgiram da
observação e análise das três obras teatrais que Ribeiro encenou com o Armatrux e que foram estudadas por mim.
Tampouco as categorias se pretenderam estanques, pois, em dados momentos, elas
podem se imbricar, confundindo-se uma com a outra. Por serem dinâmicas, o
leitor/a leitora pode ler e vê-las com outros olhos. A organização em
categorias foi muito mais de cunho didático, a fim de sistematizar de modo mais
claro as análises e facilitar a leitura. São estas as categorias: bio-objeto,
objeto-adereço, objeto-cenário, objeto-figurino, objeto-instrumento, objeto-afetivo,
objeto-antropomórfico,
objeto-desviante, objeto-objeto, objeto-energético, objeto-extensão do
corpo, objeto-faltante,
objeto-imaginário e objeto-zoomórfico[4]. Contudo,
não sou o inventor dos nomes de todas as categorias. O conceito de bio-objeto é
uma expressão encontrada no livro No limiar do desconhecido – reflexões
acerca do objeto no teatro de Tadeusz Kantor do pesquisador e professor Wagner
Cintra. Já as categorias objeto-cenário e objeto-figurino foram cunhadas tendo
como base uma entrevista que realizei com o ator mineiro Odilon Esteves[5]. Para
discorrer sobre a categoria objeto-energético evoquei o conceito de sagrado
encontrado na obra O Sagrado e o Profano,
de Mircea Eliade. Por sua vez, o termo objeto-extensão do corpo encontra
reverberação na obra citada de Wagner Cintra. Finalmente, um exemplo da
categoria objeto-imaginário foi encontrado na obra O Ator no século XX: evolução da técnica/problema da ética de
Odette Aslan, que analisa os objetos invisíveis
de A Floresta, de Ostrovski, encenada
por Meyerhold.
Ainda
no primeiro capítulo, operei com algumas categorias conceituais,
dentre elas, poética e estética. Para sintetizar as categorias poética e
estética recorri, dentre outros livros e artigos, à obra Os problemas da estética, do filósofo italiano Luigi Pareyson, e às
seguintes obras do filósofo teatral portenho Jorge Dubatti: Filosofía del Teatro I, Poéticas, concepciones de teatro y bases
epistemológicas e Introducción a los
Estúdios Teatrales.
Em suma, esta é parte da definição de poética que consta no
meu livro:
A
palavra poética vem do grego poïein:
fazer, compor, criar. Diz respeito à obra por fazer (…). O artista, segundo Pareyson,
não consegue produzir arte sem uma poética declarada ou implícita. A poïein teatral, por sua vez,
relaciona-se tanto com os processos criativos dos espetáculos (que envolvem,
principalmente, o encenador e os atores) quanto à apresentação dos mesmos, em que
o fazer dos atores é constante nos atos de interpretarem suas personagens, de
improvisarem e de se relacionarem com os múltiplos elementos da cena e com o
público. (…) Já Jorge Dubatti diz que (a poética) está localizada tanto nos
processos de criação quanto na cena teatral propriamente dita. (…) Trata-se
do teatro produzido e do teatro que é (representação) e que acontece diante do
público a partir da ação corporal e vocal dos atores. Pensando no espetáculo De Banda pra Lua, a poiesis ribeiriana constituir-se-ia de todas as etapas dos
processos criativos de tal espetáculo, desde a elaboração do texto pelo
encenador/dramaturgo até as apresentações públicas do mesmo, em que as ações
físico-vocais dos atores estão − assim como as suas relações com os objetos de
cena – sujeitas a constantes alterações. Tais mudanças, por sua vez, devem-se
tanto pela relação convivial com a plateia como pelo desejo do encenador, que
pode surgir inclusive a partir da convivência com os atores[6].
Outra vertente da poética
apresentada relacionar-se-ia com a beleza, com o suspiro, com a interjeição do apreciador:
“Que poético é este espetáculo!”, “Lindíssimo este poema!”, “Quão maravilhoso é
este perfume!”. Desta feita, o apreciador parece manifestar-se sobre o belo abstrato
da obra (as sensações, os sentidos, as emoções evocadas e provocadas, o som que
arrepia a pele, o verso que acelera o coração, o soluço de um ator que faz
aumentar a respiração) e também sobre o belo concreto − perceptível aos olhos,
ao tato e ao paladar − que estaria mais ligado à forma da obra (as cores dos
figurinos, os ângulos e as texturas do cenário, a organização espacial dos
elementos cênicos, à página de um livro…).
E, agora, também sumariamente,
esta é a acepção de estética de acordo com Pareyson (2001, p. 2 apud OLIVEIRA, 2017, p. 59 e 60):
toda teoria
que, de qualquer modo, se refira à beleza ou à arte: seja qual for a maneira como se delineie
tal teoria − ou como metafísica que deduz uma doutrina particular de princípios sistemáticos, ou como fenomenologia que interroga e faz falar os dados concretos da experiência, ou como metodologia da leitura e crítica das obras de arte, e até como complexo
de observação técnica e de preceitos que possam interessar tanto a artistas
quanto a críticos ou historiadores −; onde quer que a beleza
se encontre,
no mundo sensível ou num mundo inteligível, objeto da sensibilidade ou também da inteligência, produto
da arte ou da natureza;
como quer que a arte se conceba,
seja como arte em geral, de modo a compreender toda técnica humana
ou até a técnica da natureza, seja especificamente como arte bela.
A partir desse excerto, parece-me que a estética, na arte, se
refere à sensibilidade e aos sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar),
mas também ao universo inteligível. As técnicas (o fazer, a poética) e os
sentimentos com as quais a arte é concebida também configurariam a estética.
Já a
estética teatral, para Pavis (1999), determina a ideia de experiência estética,
ou seja, de estética compartilhada entre público, produto e criador.
Os processos criativos são momentos de criação poética
e ao mesmo tempo de constituição estética de uma encenação, em que “o fazer
inventa o modo de fazer”[7]
(OLIVERAS, 2005, p. 152). A estética – que parece ser um dos
elementos resultantes da poética, que, por sua vez, funda a estética -, encontra-se mais evidente na cena, ainda que já
esboçada, tangenciada e trabalhada durante os processos criativos. Ela é
sentida e percebida pelo espectador, mas também por todos os artistas
envolvidos na encenação, em especial pelo encenador que a utiliza como
ferramenta para a construção da cena e para a propulsão de sentidos, de
experiências e de signos. Logo, em termos estéticos e poéticos, os objetos podem
construir narrativas, procedimentos, linguagens e sentidos.
Dito isto, entro no segundo capítulo: Eid Ribeiro: o cineasta da cena teatral
belorizontina – uma objetiva sobre de Banda pra Lua. Nesse capítulo argumentei
que é na relação com os objetos que os atores/atrizes arquitetam histórias,
ações e sentidos. O foco das análises foram as mutações semióticas sofridas
pelos objetos a partir das relações entre eles e os demais elementos da
encenação, que produziram estéticas e poéticas próprias e significativas.
O
espetáculo De Banda Pra Lua estreou
no Teatro Francisco Nunes, em Belo
Horizonte, em 30
de junho de 2007. Ele possui uma estética cênica bastante
cinematográfica, marcada pela fotografia, e
esteticamente apresenta um hibridismo de linguagens artísticas: teatro, teatro
de animação (sombras e bonecos), circo, cinema, cinema de animação e vídeo, que
gerou um trabalho com uma linguagem bastante peculiar.
De
Banda conta a história dos irmãos Tonico e Bié que montam
no lombo da mula Madrugada para ir a
uma festa na roça, no interior de Minas. Porém, durante a trajetória, vários
percalços acontecem, a exemplo da descida de São Jorge da lua em busca de ajuda
para combater o temido Dragão. À mulinha cabe a missão de ser o transporte
do santo, pois o seu cavalo fugiu do astro lunar. Uma assombração também
aparece no meio do caminho, mas isto não impede os irmãos de alcançarem o seu
objetivo. Por fim, a Lua minguante desce
dos céus para animar os corações das apaixonadas crianças e da encantada Madrugada.
Ao lermos o texto teatral
desse espetáculo, escrito em 2005, já notamos nele a sugestão de objetos
cênicos para a futura encenação. Daí
se deduz o forte interesse do encenador/dramaturgo pelos objetos, antes mesmo
do seu contato profissional com o Armatrux.
Passemos
agora a alguns estudos das relações entre atores e objetos de cena em De Banda pra Lua que podem ser
encontrados em meu livro. As categorias desses objetos também serão observadas.
Um objeto importante no início do espetáculo é o cachimbo do pai de Tonico e Bié. As constantes tragadas feitas por ele fazem com que a pequena chama do fumo aumente e diminua incessantemente. Visto no escuro, o cachimbo pisca como um vagalume. Se escutarmos com atenção o coaxar dos sapos e os cricris dos grilos da trilha sonora, a nossa imaginação é capaz de fisicalizar, no espaço, a bioluminescênciado inseto alado. Podemos dizer que essa é a primeira mutação objetal do espetáculo (um cachimbo que se desvia do seu nível primário – daquilo que ele é e para o qual se presta em termos de utilidade − e se converte em vagalume, ganhando característica de um objeto-desviante do seu sentido primeiro), ocorrida num nível mais metafórico que concreto.
Numa
outra cena, mesmo sendo achincalhados pelo pai, os meninos se recusam a ir para
cama, pois a lua não nasceu ainda, e continuam uma brincadeira com uma
lanterna, cujo foco se transforma em formigas[8] que sobem pelo corpo do
velho. Mais tarde, Bié faz nascer a Lua para o pai: primeiro com o foco da
lanterna, que sobe vagarosamente pelo tecido branco; depois com a projeção da Lua gorda e brilhante, em substituição
ao foco, cuja imagem vem de trás da tela (objeto-cenário[9])e dança gostoso da esquerda para a direita, de cima para baixo e
perpendicularmente à “janela”.
Nessas cenas observam-se dois
níveis poéticos dos objetos: a função
primária e a função terciária ou desviante. No primeiro, o cachimbo e a
lanterna são usados para os fins a que se prestam, constituindo objetos-objetos:
aqueles em estado primário,
enquanto materiais, sem sofrer mutações físicas nem metafóricas. Já no terceiro, os objetos
são colocados em posição de estranhamento, pois são desviados das suas funções
principais: metaforicamente, o cachimbo muta-se em vagalume e o foco de luz
torna-se formigas que passeiam pelo corpo do caipira e, depois, muda para uma Lua cheia. Desse modo, há um desvio de
sentido da lanterna. Em termos de níveis de apreensão, esses dois objetos não
são reduzidos a um único sentido. De utilitários, eles ganham em ludicidade e
simbologia, transformando-se em objetos-desviantes, ou seja, objetos que
desviam dos seus sentidos primários, adquirindo níveis poéticos terciários,
sem, no entanto, perder suas características básicas. Trata-se, exatamente, da função terciária do objeto.
Outros momentos interessantes são
os que aparecem a vara de pescar de Tonico,
que tem poderes especiais, pois ela toca e domina mula, serve de apoio para Tonico para cruzar pinguelas e de arma
contra fantasmas, corujas e para “lutar” contra São Jorge. Há um pequeno momento em que o meninousa tal objeto para acalmar Madrugada, que se assustou com a árvore
mal assombrada. Com batidas curtas
contra o solo e com a ajuda de assovios e estalidos de beijos, o menino
tranquiliza o animal até que ele se imobilize e o irmão Bié possa pegar a corda pendente em seu pescoço (objeto-extensão do
corpo[10]), dominando-o por
completo. Da utilidade à inutilidade, a vara não pesca nenhum peixe, por não
ter linha nem anzol, por isso é um objeto-faltante. Além da vara, nenhum outro
objeto de De Banda atinge o segundo
grau (ou nível) poético. Isto porque a função secundária do objeto ocorre
somente quando se trata de um material que deixa de ser utilizado em sua função
primária, porque algo em sua forma e/ou em seu conteúdo já não permite mais que
ele seja usado no primeiro nível. Alguma coisa está ausente nesseobjeto-faltante, no qual falta alguma
coisa para seu pleno funcionamento. Essa categoria está diretamente ligada ao
segundo nível de significação dos objetos: uma passagem entre o primeiro e o terceiro
níveis, ocorrendo, de maneira especial, em estéticas e/ou cenas realistas. Tal
objeto é uma potência, pois a qualquer momento está apto a ser transformado em
outra coisa. O objeto de cena de Tonico já
foi elaborado, esteticamente, sem os seus demais componentes. O que se vê é uma
vara de bambu nua e crua.
Outro
objeto importante do espetáculo é a sagrada espada Ascalon de São Jorge (objeto-energético).
Elaentra em cena quando o santo da
lua desce as escadas, por meio de sombras projetadas por trás da tela branca. Os
meninos assistem amedrontados ao “teatro de sombras” do santo guerreiro. No Brasil,
esse santo,segundo Câmara Cascudo
(1999), foi sincretizado com o Ogum
no Candomblé.
Na
encenação de sombras ribeiriana, com sua espada em riste, São Jorge, após descer da lua, golpeia, grita e movimenta-se,
inicialmente, como um guerreiro samurai[11]. Tonico e Bié não creem
que ele é uma entidade sagrada que perdeu o seu cavalo e que precisa de ajuda. Tonico o chama de Belzebu. Furioso, São Jorge
aparece, então, em “carne e osso”, à frente da tela. Em posição de combate, Tonico empunha sua vara de pescar e,
atrás dele, Bié prepara seu chicote.
Enquanto isso, Madrugada dorme,
despretensiosamente. Sob o ritmo de tambores de terreiro de candomblé, os três
caminham lateralmente em círculo, como se se preparassem para o entrechocar de
suas “armas”. São Jorge, com sua Ascalon sempreerguida e pronta para o ataque,faz uma dança com as matrizes corporais de Ogum. Desesperados, os irmãos fogem do agressivo guerreiro.
Madrugada, sem
saber do perigo, ronca como uma porca. As fortes batucadas persistem e o
impetuoso São Jorge continua dançando
como Ogum e faz uma densa coreografia
com sua espada e com seu elmo. Por meio de um acaso ensaiado, o elmo “cai” da
cabeça do santo, parando em sua mão esquerda. A dança agora é um dueto entre Ascalon e o elmo. A espada brilhante,
por um lado, espeta o inimigo invisível. O elmo, por outro, transforma-se em um
escudo (e torna-se um objeto-desviante), protegendo o guerreiro das investidas
das supostas “flechas voadoras” e das “estocadas” contra o peito. Com os
objetos imóveis, apontados para o céu, o santo olha, coreograficamente,
primeiro para a espada, depois para o “escudo”. Por fim, depois de terminada a
“possuída” música, em posição de samurai, com a ponta de Ascalon voltada para o alto, São
Jorge chama a mula, que desperta do seu sono profundo.
Ascalon
é
o objeto maior de São Jorge, o que
ele tem de mais forte e de masculino, de mais seu. Por isso, mantém-se, no
decorrer do espetáculo, em sua função primária (objeto-objeto): a de guerrear,
de lutar e de se defender. Importa observar que é a forma de manipulação do ator
Cristiano Araújo, que interpreta essa personagem, associada às suas ações
físico-vocais e a certos elementos da encenação – como à trilha sonora (em que ouvimos batuques
de tambores de terreiro de candomblé, bem como titilintares de temática
oriental) e à iluminação atmosférica – faz
com que tal objeto sagrado transforme a energia da personagem e,
consecutivamente, a altere em outra: seja uma energia de santo guerreiro, seja
a de um samurai nipônico, seja a do orixá Ogum
num terreiro. Observa-se que a espada não sofreu transformação alguma,
contudo agiu “magicamente” sobre a mutação da energia da personagem, quer
dizer, operou sobre o desvio de características da própria personagem. Esta é a
quarta função do objeto teatral (a energética), que possibilitou a criação da
categoria objeto-energético, que é o objeto sagrado, místico, que transforma a
energia da personagem, mudando-a em outra, mas sem que o objeto cambie sua
forma, física ou metaforicamente, e ainda sem que o ator troque de figurinos e
mude de maquiagem. Mesmo sendo mantido, ao longo de toda a encenação, em sua
função primária, o objeto provoca tal transformação.
Entra em cena, já quase no
final do espetáculo, o Dragão (objeto-zoomórfico:
que se refere
aos objetos que têm formas de animais, sejam aqueles figurados animalescamente
ou então os que não são representados de tal forma, mas que possuem traços de
bichos).O Dragão chega movimentando-se
misteriosamente a partir de um tema musical oriental. Ainda com o mesmo tema,
entra São Jorge montado num boneco da
mula Madrugada (outro
objeto-zoomórfico). Começa a luta.
Muda a música. Ao ritmo de batucadas, tipo de terreiro, o santo valente e o Dragão enfrentam-se ferozmente[12]. São Jorge defende-se com a sua espada, desferindo golpes rápidos e
violentos. Com dois golpes profundos no pescoço, o Dragão vai ao chão, mas não morre. Após várias outras tentativas
fracassadas, São Jorge dá o lance
fatal, cravando Ascalon bem fundo da
goela do monstro lunar, que balança suas pernas e morre em fração de segundos. Em
seguida, Madrugada e São Jorge voam para a Lua,deixando na Terra os tristonhos Bié e
Tonico. Mas, para alegrar os corações
dos irmãos, surge, bela e brilhante, a Lua
minguante. Ela gira em sua argola (objeto-objeto e também bio-objeto)e derrama seus véus brancos (braços
lunares – objetos-extensão do corpo) sobre as cabeças das crianças. A partitura
de ações da Lua, interpretada por
Tina Dias, aproxima-se bastante, imageticamente, de um número aéreo circense de
longos panos esvoaçantes, pois, além de explorar espacialmente todo o diâmetro
do aparelho, a extensão do vestido cria imagens de grandes tiras de tecido
branco dependuradas sobre o palco.
A lira,
ou argola, é um aparelho utilizado pelo acrobata em suas performances aéreas.
Apesar de pertencer ao vasto universo de aparelhos do circo, a lira utilizada
em De Banda pra Lua deve ser
considerada como mais um objeto cênico do espetáculo teatral. O arco aéreo é
apropriado por Ribeiro enquanto um rico objeto na criação da dinâmica estética
da cena: uma lua que desce dos céus girando em torno de si mesma, deixando cair
os seus véus. Ademais, é usada para produzir os efeitos visuais necessários às
cenas correlatas. A argola em questão é uma espécie de bio-objetode Kantor, utilizado em suas funções
primárias e terciárias, cuja relação entre ele e a atriz é feita de forma plena
e consciente. Primária porque cumpre o seu papel estético na cena como um
elemento circense. Terciária por causa das transformações poéticas, feitas
pelas ações cênicas da personagem, cujo corpo está ornamentado pela
indumentária branca, em lua minguante. Aqui o objeto é “vestido”, coberto, englobado,
morado e ocupado quase que completamente pela atriz Tina Dias, que forma os
órgãos internos do objeto, conformando um só corpo-personagem. Então, a lira é
mudada para astro lunar. Enfim, ausente do corpo da atriz que lhe dá vida, a
argola fica nua no palco, falecida.
Entremos agora no capítulo
três: “Em cena: No Pírex, Café, Peru e
Saliva! Teatro de Objetos ou Teatro com Objetos?”.
No
Pirex é um trabalho sem diálogosfortemente baseado na fisicalidade e no jogo dos atores com os
objetos –
principalmente por meio de técnicas circenses, como o malabares − montado pelo Armatrux ao longo de 2008 e 2009,
estreando em 11 de novembro de 2009 no Teatro Klauss Vianna, de Belo Horizonte. Ele narra o encontro de
cinco personagens grotescas (Boquélia, Bencrófilo, Bonita, Ubaldo e Alcebíades) em
torno de uma mesa macabra, na qual desenvolvem ações absurdas, escatológicas e
pornográficas. Dentre as temáticas abordadas pelo grupo encontramos o amor, o
ciúme, as relações de poder, o sexo e a morte. Trata-se também de uma espécie
de pesadelo tragicômico e de uma forma de versão gótica livremente inspirada em
Alice no País das Maravilhas, em
especial no
sétimo capítulo, obra de Lewis Carroll, no qual a protagonistaé convidada para um chá de loucos.
Para os processos poéticos de No Pirex, Ribeiro inspirou-se no cinema
expressionista alemão, em filmes mudos e em preto e branco de Charles Chaplin,
assim como em obras literárias e dramáticas, a exemplo de Na Pior em Paris e Londres, de George Orwell. Além disso,
recordações da sua infância, bem como as memórias dos espetáculos circenses
assistidos por ele, contribuíram, sobremaneira, para a criação dessa montagem e
para a seleção do amplo universo objetal nela constante.
Em No Pirex, o encenador concebeu um caldeirão estético-poético,
misturando múltiplos estilos, modalidades e linguagens artísticas como o teatro
de formas animadas, o teatro de atores propriamente dito, a música e o circo.
Saltou-nos aos olhos, no entanto, a visão muito particular que ele tinha a respeito
do Teatro de Objetos. Assim, precisei fazer a distinção entre essa linguagem e
o Teatro com Objetos, com o fito de dirimir possíveis dificuldades de
entendimento por parte do leitor.
Entre uma e outra categoria há diferenças importantes de
serem assinaladas. Grosso modo, o Teatro de Objetos é uma linguagem artística
e/ou um gênero do teatro de animação. Já o Teatro com Objetos parece-me mais um
artifício estético da cena. Ou seja, o espetáculo teatral em cuja encenação
pululam as relações poéticas dos atores com os objetos de cena. Assim, os
objetos – bem como os cenários, adereços, figurinos, trilha sonora, iluminação,
personagens, etc. – concorrem em força cênica. Em outras palavras, os objetos
constituem partes dos múltiplos elementos da encenação. Diferentemente do que
ocorre, por exemplo, no teatro de Kantor, em que o objeto está em cena na mesma
condição do ator, na estética teatral de Ribeiro o objeto é um acessório, visto
como essencial para o desenvolvimento do jogo do ator.
Já no Teatro de Objetos, os objetos são as próprias
personagens do espetáculo, são os sujeitos da ação. Eles concorrem com os
atores e devem ser o foco das atenções. Os objetos prontos são deslocados da
sua função original, a primária, e, por meio de metáforas e de metonímias,
transformam-se em uma sorte de coisas.
Aliás, a metáfora é muito
recorrente quando da manipulação de objetos cênicos, sendo notada,
principalmente, na terceira função poética dos objetos: a desviante. Em No Pirex,
há objetos primários que se desviam das suas funções originais e,
metaforicamente, adquirem, aos olhos dos espectadores, múltiplos sentidos.
Para Vargas (2010, p. 33-34), o
Teatro de Objetos
é
uma vertente do Teatro de Animação que se vale de objetos prontos, no lugar de
bonecos, deslocando-os da sua função e conferindo-lhes novos significados, sem
transformar, porém, a sua natureza, explorando uma dramaturgia que se vale de
figuras de linguagem, em detrimento da importância da manipulação propriamente
dita. (…) Novos significados podem ser dados aos objetos, sem transformar a
sua natureza, por meio de associações que se podem dar pela forma, pelo
movimento, pela cor, pela textura, pela função do objeto, etc. Todas estas
associações de ideias constituem figuras de linguagem e as mais utilizadas são
a metáfora, quando se emprega um termo com significado diferente do habitual,
com base numa relação de similaridade entre o sentido próprio e o sentido
figurado, e a metonímia, quando uma palavra é usada para designar alguma coisa
com a qual mantém uma relação de proximidade ou posse.
Desta feita, para essa diretora, um lenço de seda pode ser
utilizado, por exemplo, para retratar uma mulher bonita, pois a suavidade e a
maciez da seda são associadas à beleza dessa mulher. O espectador, por meio de
uma associação de ideias e de metáforas, transforma o objeto em algo além do
que ele é, sem que deixe de ser o que realmente é. Portanto, nesse caso, o
lenço de seda é metaforicamente transformado em uma bela mulher sem perder as
suas características primeiras: a forma de lenço, a sua densidade, a sua cor
inerente e o movimento que lhe é peculiar. Logo, o espectador vê uma mulher a
partir do objeto lenço.
A transformação metafórica dos objetos atua sobre os
sentidos dos atores e dos espectadores, principalmente sobre o olhar. O ator
(ou ator-manipulador, no caso do teatro de animação) age sobre a mecânica dos
objetos, explorando suas formas, volumes, movimentos, aparências e funções;
criando imagens. O público recebe e reage, sensorialmente e pela livre associação
de ideias, os/aos estímulos produzidos pela relação entre o ator e o objeto de
cena.
Entretanto, não são apenas as metáforas e as metonímias as
responsáveis para se categorizar um espetáculo como sendo Teatro de Objetos.
Vimos, em De Banda pra Lua, que certos
objetos cênicos da encenação passaram por mutações metafóricas sem, no entanto,
serem colocados dentro de tal gênero. Em No
Pirex ocorre algo semelhante com os objetos. Por que isso acontece?
Em No Pirex, a
maior parte dos objetos são utilizados, conscientemente, como tais, nos seus
sentidos denotativos e em suas funções primárias. Entretanto, diferentemente do
que ocorre no Teatro de Objetos, esse objeto não configura uma personagem.
Pelas claras relações entre as personagens-atores e os objetos, o espectador os
vê e os compreende como sendo eles mesmos. Assim, o objeto como personagem é
uma das chaves diferenciais entre uma e outra modalidade. No Teatro de Objetos
temos os objetos como personagens (os sujeitos das ações) que desenrolam uma
narrativa dramática. Já no Teatro com Objetos, os objetos cênicos fazem parte
da história contada, porém não são personagens dessa, haja vista as personagens
serem representadas pelos atores. Estes é que constituem os sujeitos das ações.
Logo, No Pirex caracteriza-se, antes
de qualquer coisa, como um Teatro com Objetos, mas que, em determinados
momentos, devido aos princípios de manipulação, dialoga com o Teatro de
Objetos.
Espacial e matematicamente, o amplo universo de objetos de No Pirex contém e está contido na cozinha
e na sala de jantar da casa de Boquélia.
São centenas de objetos distribuídos por esses espaços, bem como pelos
bastidores: bules, pirex pequenos, pirex grandes, xícaras de café, xícaras de
leite, pratos e pratos de sobremesa, panelas, lustre, tecidos, figurinos,
cadeiras, mesa, quarto de boi, portas, copos americanos pequenos, copos
americanos médios, copos americanos grandes, taças e taças pequenas. Enfim, sem
medo de exageros, essamontagemprecisa de mais de 700 objetos para
funcionar.
Cenas paralelas e simultâneas
ocorrem a todo o instante em No Pirex.
Enquanto um ator gira um minúsculo pirex em seu dedo num canto do cenário,
outro organiza − no lado oposto − uma pilha de pratos sobre a mesa; uma atriz
manipula panelas e talheres no centro e ao fundo do palco; e outra atriz
caminha sem rumo pelo espaço. Logo, para acompanhar a todos esses e outros
acontecimentos, criando uma teia coerente e coesa de sentidos, a plateia
precisa assisti-lo duas ou mais vezes. A cada ida ao teatro uma nova descoberta
é feita e um detalhe é percebido.
Muitas categorias dos objetos que encontramos em De Banda pra Lua são notadas em No Pirex e em Thácht. Contudo, os modos de uso, sejam pelas formas dos objetos ou
até mesmo pelas especificidades estéticas de cada um dos espetáculos, são
distintos. Para evitar repetições neste artigo, a partir de agora escreverei
apenas sobre aquelas categorias que ainda não apareceram e não foram analisadas.
Porém, algumas pequenas recorrências poderão ocorrer para que o sentido geral
da cena narrada não seja perdido.
Começa No Pirex.Luz em baixa resistência. O ancião Alcebíades, que se alimenta de pratos
quebrados ou dos restos abandonados pelos moradores da casa, está encerrado em
si mesmo, enrolado num “casulo” escuro (objeto-figurino), como um inseto
asqueroso congelado no centro do palco. Pela direita baixa, como um zumbi, entra
Bencrófilo. Cruzando a frente de Alcebíades, que continua imóvel e com o
rosto coberto pelo seu chapéu negro, Bencrófilo
para na esquerda baixa, em frente a uma cadeira preta e retira do bolso um
lenço também negro. O sacode de modo explosivo uma vez, despertando, de
imediato, o velho até então imóvel. Por fim, este caminha ruidosamente até a
cadeira, senta-se prostrado e recebe em seu pescoço o lenço do Copeiro, como se fora um babador de
criança e/ou um guardanapo de jantar.
O objeto-figurino é o figurino
utilizado pelo ator para além daquilo que ele se presta na cena: seja para
“vestir” a personagem ou para caracterizá-lo enquanto elemento identitário,
político, sociológico, ideológico, simbólico, estético etc.; seja para
“comunicar, estabelecer uma ligação com o público antes mesmo que o ator se
pronuncie. (…) [Ou indicando] ao público a época, o local e a razão da encenação”[13]; dentre tantas outras.
Sendo manipulado
criativamente, a partir de metáforas, o figurino ganha novas possibilidades de
uso na cena, além daquelas que já possui. Logo, adquire funções inéditas,
significados e poesias singulares, mas sem deixar de remeter a si mesmo
imageticamente. Isto que dizer que, apesar das transformações metafóricas pelas
quais passam o figurino, que são mudados pelo ator em uma sorte de coisas
(como, por exemplo, o “casulo” – paletó − escuro de Alcebíades), o espectador continua vendo o paletó como ele é
material e historicamente: sua forma, o tipo de corte do tecido, as cores, o
volume, o período histórico ao qual está ligado; ou seja, como paletó.
Em várias cenas de No
Pirex, Ubaldo e Bencrófilo (que se vestem e agem como Mordomo e Copeiro, respectivamente)agem
como uma dupla de clowns. Estão
sempre em uma rixa gostosa e disputando ações com os objetos. Para tanto,
utilizam-se de técnicas de prestidigitação, malabares, equilíbrio, lançamentos
e quebras. Ambos fazem aparecer objetos, como copos, pelas mangas das camisas.
Por assim dizer, o Mordomo é
“detentor” das garrafas, enquanto o Copeiro
é “proprietário” dos copos.
O ritmo de entrada e saída de personagens e objetos das
cenas é tão intenso que é quase impossível transcrever com precisão as
múltiplas e simultâneas sequências de ações. Em No Pirex,vê-se um balé
de objetos no espaço, que após se equilibrarem pelas distâncias, são dispostos
sobre uma mesa que mais parece uma maca de defuntos. Dentro e sobre os objetos
que estão sobre esta são despejadas “bebidas alcóolicas” (muitas vezes somente
fisicalizadas pelos atores, no sentido spoliano), café, chá e água; além de
desfilarem em cima dela alimentos, como um porquinho assado que foge em
desespero dos seus comensais.
A feia Bonita,
que tem uma relação maternal com os animais que cozinha, é vista em uma cenaninando tristemente o seu peru
desfalecido (objeto-afetivo).
Já em outra cena, ela depena uma ave branca (um peru), também infeliz e
bastante chateada por ter sido obrigada pela Patroa a fazer tal crueldade. Numa longa sequência de ações, que
dura quase quatro minutos, penas brancas são lançadas para cima por Bonita,enquanto outras caem do “céu” e se espalham pela cozinha – levadas
pelo vento produzido por um ventilador escondido sob o cenário[14]. Inicialmente, as penas
jogadas para o alto são poucas, e o ritmo da ação da Cozinheira é lento, acompanhado o andamento da música que toca.
Enquanto as que despencam das alturas mantêm um ritmo constante. Depois, ela
vai aumentando a quantidade e acelerando os movimentos, contrapondo-os ao
tempo-rítmico musical. As penas se parecem com flocos de neve despencando das
“alturas celestiais” ou até mesmo simbolizaria as lágrimas de Bonita, devido a seu grande apego aos
animais mortos. Tais penas, pelo jogo de manipulação da atriz, são mudadas,
pela força da metáfora, em neve e lágrimas.
Sobre o objeto afetivo[15], Pereira (1988) diz que
tal conceito liga-se à representação de algo que satisfaça as necessidades e
pulsões do bebê em fase de formação. Contudo, a categoria que aqui utilizo é
mais literal, pois ela se trata de um objeto pelo qual alguém (uma pessoa, um
ator ou uma personagem) tem forte relação afetiva ou emocional. Isso porque o
objeto-afetivo tem memórias, pois está intimamente ligado à experiência de vida
de quem o manuseia ou o preserva. Este pode ser, por exemplo, um presente
recebido em alguma ocasião especial. Ou, então, algo que tenha herdado de um
parente querido. Em algumas oficinas e disciplinas que ministro peço aos
participantes que tragam, para uma dinâmica de classificação dos objetos, um
objeto afetivo embrulhado em papel de presente. Explico que ele é carregado de
memória, porque está intimamente ligado à experiência de vida de quem o possui
e/ou de quem o presenteou. Assim, objetos como cartas de amor e de familiares,
adereços corporais, indumentárias, objetos religiosos (como terços e santinhos
de papel), animais de pelúcia, fotografias, brinquedos infanto-juvenis, joias,
vasilhames[16]
e até coleções (de selos e de moedas), dentre tantos outros, integram tal
categoria.
No teatro, ocorre algo parecido. Exemplos desse tipo de
objeto são o peru e o porquinho da Cozinheira
de No Pirex. Ela, antes de
cozinhá-los, acatando a ordem da Patroa tirana,
os nina e os mira tristemente. É muito difícil para essa personagem aferventar
os animais, visto que ela os trata como filhos. Mesmo estando mortos eles
precisam de muito carinho e cuidado. Como é possível uma mãe cozer e se
alimentar das suas amadas crianças? Os animais são dela. Afetiva e
emocionalmente, ela se mantém ligada a eles durante todo o espetáculo.
Mudança de cena e de parágrafo. Abrem-se as persianas da
parede (que separa a cozinha da sala de jantar) e os espectadores notam a
afetiva Bonita lançando pratos para o
Mordomo. Na realidade, o que se
observa é a Cozinheira, do centro do
cômodo ede costas para o público,
soltando pratos para o chão, enquanto outro ator ou atriz (não se sabe ao
certo), na escuridão da extrema direita alta da cozinha, cria uma “máquina
invisível” (soando: tchum, puuu, tuu) que os lança (tchum),
um a um, por cima da parede. O Mordomo recebe
cada prato, cospe nele (puuu) e o
coloca fortemente sobre o colo (tuu).
O jogo produz uma sensação de existência de um grande tubo, também invisível (objeto-imaginário)[17], aos pés de Bonita, que suga os pratos até a máquina
concretamente inexistente. Esta os projeta para o outro lado do cenário, indo
os pratos pararem exatamente nas mãos de
Ubaldo, que neles cospe ao recebê-los. A cena se encerra quando este selevanta da cadeira para pegar um prato
que achou que cairia próximo à mesa e, então, o último objeto “lançado” (tchum – pausa de 1, 2, 3, 4, 5 segundos)- que
de fato não é lançado, mas que cai de uma das varas penduradas no urdimento do
teatro – se
espatifa, propositalmente, no chão, provocando um grande estrondo (praaaa). E voam cacos para todos os
lados.
A Patroa Boquélia entra
triste na sala de jantar e senta-se a mesa. Ela usa uma manivela nela existente
para atrair uma taça vazia para si. Em seguida, Bonita surge com um porquinho enroscado em seu pescoço. Para
segurá-lo, ela insere um dedo no seu ânus, por um lado, e, por outro, o prende com
uma das mãos pelas patas dianteiras. Como de costume, ela leva o futuro jantar
para Boquélia aprovar – autorização esta não concedida,
ou melhor, ignorada, pois a Patroa se
recusou a inserir o dedo no orifício do suíno. Sua reação, que mais uma vez
demonstra agressividade e indiferença em relação a seus empregados, é a mesma:
expulsa a Cozinheira da sua presença.
Espantada, Bonita vai sentar-se numa
cadeira próximo ao proscênio. Como já fizera com o peru, a empregada também
nina o porquinho, mirando-o tristemente. Enquanto acalanta o pequeno animal, Boquélia se aproxima da empregada,
retira o seu toque blanc (touca
branca) e a açoita fortemente com esse objeto. A Cozinheira foge triste, no mesmo momento em que Boquélia joga a touca ao chão. Um pouco
mais tarde, o Copeiro, sujo de
vômito,entra em cena e apanha tal
objeto, colocando-o em sua cabeça e saindo em seguida. É interessante notar que
tal objeto-adereço, ao ser posto na cabeça do Copeiro, não sofre nenhum tipo de mutação, assim como não provoca
mudança de energia dessa personagem. Contudo, como o chapéu de Bié, do espetáculo De Banda pra Lua, ao ser utilizada pela Patroa para bater na empregada, a toque blanc transforma-se em uma espécie de chicote, passando do
nível primário de manipulação ao nível terciário, desviando-se da sua função
original.
A maior parte dos muitos objetos de No Pirex são manipulados em suas funções primárias, enquanto
objetos-objetos. Todavia, o modo pelo qual são manuseados em cena pode realçar
as características psicológicas das personagens, ajudar na construção dos
climas e das atmosferas propostas pelo encenador, pontuar os ritmos das ações,
colorir a luz, fazer bailar as músicas e dar suporte poético aos figurinos,
maquiagens e cenário da peça. Enfim, a estética das duas encenações de Eid
Ribeiro, analisadas até o presente momento, guardadas as especificidades de
cada trabalho, depende diretamente dos objetos cênicos e da vida que emana dos
seus usos criativos pelos atores.
Passemos agora ao capítulo quatro:
“Thácht, Thácht, Thácht!”
Thácht é um
espetáculo de variedades para o público adulto ensaiado em Nova Lima e estreado
na capital mineira em 14 de agosto de 2014, no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna. Tal trabalhoaborda passagens da vida de Rafa
e Rufo, artistas aposentados de
teatro de variedades, que vivem de suas memórias. Os dois palhaços, inspirados
em clowns como Charles Chaplin,
Buster Keaton e também em personagens circenses que Eid Ribeiro assistiu quando
criança, desenvolvem um diálogo que se aproxima do absurdo, gênero muito
apreciado por Ribeiro, usando de forma bastante peculiar a musicalidade das
palavras:
Conversas sobre médicos e outros
elementos da condição humana inerentes à velhice se misturam a vagas lembranças
do picadeiro. O espetáculo
conta também com a participação da diva transformista Siboney, uma cantora que ganha vida nas memórias da dupla, e a
curiosa presença da [Mulher do Atirador
de Facas][18].
Além dessas quatro
personagens, Thácht conta ainda com a
participação dos decrépitos cachorros Dentinho
e Magrelo, dois bonecos
ventríloquos (objetos-zoomórficos), e, a partir de 2015, com a presença mais
que especial da Patroa Boquélia, de No Pirex.
Com
forte caráter autobiográfico, as questões de saúde e físicas de Eid Ribeiro,
que passou por um câncer, bem como a de outros anciãos – como a fragilidade
muscular inerente à velhice, as dores nas juntas e nos ossos, a dificuldade de
memória, a flatulência, a incontinência urinária, etc. -, ocupam lugar de
relevância no texto do espetáculo. Logo, as personagens idosas de Thácht, incluindo os cães, têm
disposições físicas e mentais um pouco comprometidas.
Por
isso, parece-me que, por motivo das confusões da memória e do tempo, essas
personagens utilizam, em suas falas, muitos neologismos e grammelots. Nos diálogos entre Rafa
e Rufo, por exemplo, há uma mistura
divertida de sonoridades que se parecem com uma combinação entre o português, o
alemão, o francês e o russo: “RAFA – Sinto muito thix glub fun hip, danlilshspq
hip, thácht, hip…” (RIBEIRO, 2015, p. 4)[19].
No espetáculo Thácht, Ribeiro, em consonância com os
atores do Armatrux, aprofundou e
verticalizou suas investigações com os objetos, haja vista ter com estes
arquitetado os processos criativos da montagem. Desse modo, o texto que irrompeu
dos improvisos dos atores com os objetos, somado às interferências textuais do
encenador, que apresentou um pré-texto (chamado O Cachorro de Três Pernas) contendo imagens disparadoras para a
criação, foi alinhavado através de poéticas imagéticas originárias,
inicialmente, de chapéus, bengalas e lenços. Estas se somariam, mais tarde, às
dos instrumentos musicais: piano e violino. Em Thácht,os atores-personagens e os
objetos de cena encontram-se, em boa parte do trabalho, em níveis muito
parecidos de estado energético.
A música executada ao vivo – que é um diferencial em relação às outras duas
montagens – foi um
dos elementos chave para o entendimento das mutações sofridas pelos objetos de
cena desse espetáculo. Na realidade, algumas canções surgiram a partir do jogo
entre as personagens e seus objetos.
Quanto às categorias dos objetos, duas delas (objeto-antropomórfico
e objeto-instrumento), surgiram da análise dessa encenação, dadas as suas
características estético-poéticas. Assim sendo, entremos, neste instante, na
análise dessas categorias que faltam para completarmos o total de quatorze
apontadas no meu livro de artista. Elas se encontram na cena de abertura de Thácht.
Da plateia, vê-se borrada a imagem de dois baús pretos, sobre os quais Rufo está sentado de costas, mostrando sua cabeleira branca para o público. Ouvem-se passos: é o velho Rafa que caminha com partituras musicais em suas mãos. Ele pega uma folha e a prende sob o queixo. Assim faz com mais duas. Em seguida, toma os três papéis e os devolve à pequena resma, embaralhando-a. Para. Dá uma pequena passada ao proscênio. Vê o público. Logo depois, olha para a direita e nota seu “piano” (objeto-instrumento, que é um teclado eletrônico transformado cenograficamente em um piano). Tenta caminhar até ele, mas, no meio do caminho, uma folha vai ao chão. Ele para novamente. Mira Rufo, seu companheiro de cena, que não o vê. Desconcertado, observa o papel, caminha até ele e, com dificuldade dolorosa de idoso, abaixa-se para pegá-lo. Como um palhaço trapalhão e sem graça fita a plateia e volta ao “piano”. Senta-se em uma cadeira giratória e dá dois giros e meio, no sentido anti-horário, parando exatamente em frente ao seu instrumento. Cuidadosamente, abre a tampa do “piano”, separa uma partitura e a coloca no suporte da tampa. As outras partituras caem ao chão. Desanimadamente, Rafa as espia, dá um giro com a cadeira no sentido horário e para em frente a elas. Lentamente as apanha. Rufo continua imóvel sobre um baú. Rafa faz outro giro, “anti-horariamente”, e detêm-se novamente. Encara o público e joga o restante das partituras atrás do “piano”. Com o ruído das folhas batendo no chão, Rufo desperta. Depois, Rafa segura seu lenço amarelo, que se encontrava no bolso do paletó, enxuga a testa e limpa as teclas, executando uma escala cromática ascendente. Finaliza com uma nota musical. Minutos depois, após Rafa ensaiar algumas notas esparsas, Rufo, com um lenço vermelho no bolso do paletó,sai de sua imobilidade e, com sua bengala, caminha até o colega, como se quisesse esganá-lo pela péssima execução musical. Aproximando-se do companheiro bate com ela no chão, fazendo com que Rafa inicie, rapidamente,improvisações sobre a música Tascht: a princípio, num andamento muito rápido. Em seguida, Rufo, a partir de truques circenses,é dançado pela bengala (objeto-antropomórfico) − que se encontra em um nível mais elevado de tensão energética − como se esse objeto tivesse vida própria e comandasse os movimentos do seu dono[20]. Aqui, teatral e metaforicamente, é o objeto que ganha vida, tomando atitudes humanas, antropomorfizando-se, e executando a ação sobre a personagem, lançando-a de um lado ao outro e deslocando-a de sua posição quase letárgica. Rafa para de tocar e olha para Rufo, assustando-se. Rufo ameaça o colega, batendo o cajado no chão, e ele começa a tocar novamente o seu objeto-instrumento. Porém, agora, a música é uma variação da primeira, num andamento mais lento. Rufo volta a dançar, mas, nesse instante, é ele quem conduz a bengala (que agora é um objeto-objeto). Silêncio. Os dois ficam imóveis. Chateado, Rufo gira rapidamente o seu objeto, como se fosse uma hélice de helicóptero (objeto-desviante). É Rafa agora quem acompanha o ritmo ditado pelo objeto, mudando a música e o andamento. Por fim, Rufo, ainda aborrecido, puxa o pescoço de Rafa com a sua bengala e diz: “Desentrava a porra dessa música, Rafa!”. E o colega responde: “A porra dessa música. (Tempo). Rufo, uma vontade de fumar!”.
Rufo e Rafa usam
“o piano”, bem como o violino,de
modo não convencional para executar suas ações. Os instrumentos, de
forma parecida a outros objetos cênicos manipulados no espetáculo – tais como
as bengalas, chapéus e lenços −, são como que prolongamentos do corpo dessas
personagens. Mesmo estando, espacialmente, distante deles parece existir uma
espécie de conexão energética e de pensamento entre personagens, “piano” e
violino. Isto porque os atores, rítmica e musicalmente, referem-se de modo
constante – seja de forma verbal, seja com gestos ou com os olhares – a seus
objetos-instrumentos.
Enfim, um bom exemplo de uso
não convencional do instrumento musical, observado num dos três ensaios de Thácht que acompanhei em Nova Lima em
2014, foi quando Rafa tomou o violino
de Rufo e o “engoliu”, como faz um engolidor
de facas de circo. Percebe-se, então, que desde os processos criativos do
espetáculo os instrumentos musicais já estavam sendo explorados com denotações
objetais. Enfim, a manipulação não cotidiana de objetos é uma característica
dos artistas do Armatrux,utilizada de modo constante na cena
ribeiriana, inclusive com instrumentos musicais. Por isso, não hesito em
afirmar que elestambém são objetos
cênicos. Contudo, suas funções, como é o caso do “piano”, são intercambiáveis:
ora são instrumentos ora cenário e outrora objetos de cena.
Corolário: espetacularmente, o
objeto cênico foi se apresentando (na), se colocando (na) e colaborando para a
criação da poética e da estética dos três espetáculos mencionados. Com a
pesquisa realizada tentei
demonstrar que o objeto cênico nas encenações ribeirianas flutua entre a
poética e a estética artística de Eid Ribeiro.
Em se tratando do uso dos
objetos de cena, constatam-se certas diferenças entre os processos criativos de
Thácht, De Banda pra Lua e No Pirex.
O primeiro espetáculo estruturou-se e consolidou-se a
partir do trabalho improvisacional dos atores com os objetos cênicos. Já
no segundo, a dramaturgia textual foi de suma importância para o surgimento dos
objetos na cena. Ou seja, o texto de Ribeiro sugeriu imagens para a entrada de
tais elementos no espetáculo. No último trabalho, os jogos com os objetos
criaram a narrativa própria de No Pirex,
que é, antes de qualquer coisa, imagética e não textual/verbal.
Em Thácht há uma verticalização do uso dos objetos na cena do Armatrux. Parece-me que essa montagem,
em termos poéticos, mas guardadas as distinções processuais e estéticas, é a
continuidade das pesquisas de No Pirex e
também as de De Banda pra Lua. Logo,
poderíamos chamar esse conjunto de três espetáculos de Trilogia dos Objetos de Eid Ribeiro.
Ao todo, os objetos foram
divididos em quatro níveis poéticos principais – primário, secundário (objeto faltante),
terciário e quaternário (objetos energéticos) – e em quatorze categorias.
Por um lado, é interessante observar que um mesmo objeto pode
pertencer a diferentes funções ou níveis e distintas categorias conceituais.
Isso quer dizer que, conforme a cena e o contexto em que estão inseridos os
objetos – bem como o ponto de vista de cada espectador −, as suas categorias
flutuam e os seus signos se movimentam.
Por outro lado, as análises realizadas durante o doutorado
demonstraram que os objetos-energéticos não mudaram de nível e muito menos de
categoria conceitual.
Para tratar as categorias dos objetos em No Pirex, importou perguntar: sem os objetos cênicos, e na
ausência das consequentes relações entre eles e os atores, esse espetáculonão deixaria de existir? Sim, ele só
existe por causa dessas relações. As personagens dependem estritamente das
centenas de objetos com os quais No Pirex
foi montado. E o contrário também é verdade, pois os objetos submetem-se às
personagens – ou se
rebelam contra elas.
Em relação aos objetos terciários (objetos-desviantes), mesmo
que não sejam empregados dentro de um espetáculo num primeiro nível de
significação, eles podem VIR A SER empregados. Essas duas funções estão
diretamente ligadas e precisam uma da outra para existir, pois um objeto antes
de se desviar da sua função primária, tornando-se terciário, é visto pelo
espectador como sendo ele mesmo, ou seja, estando alocado dentro desse primeiro
nível funcional.
As bengalas de Thácht foram os únicos objetos
analisados na tese e no livro de artista que passaram por quatro categorias e
por duas funções distintas: objetos-objetos (função primária);
objetos-antropomórficos, objetos-desviantes e objetos-extensões do corpo
(funções terciárias).
Para concluir, na função primária encontram-se os
objetos-objetos, os objetos-figurinos, os objetos-cenários, os objetos-adereços
e os objetos-zoomórficos. Na função secundária situam-se os objetos-faltantes.
Já na terciária localizam-se os objetos-desviantes, os objetos-extensões do
corpo, os bio-objetos, os objetos-afetivos e os objetos-antropomórficos. E na
função quaternária, os objetos-energéticos. As categorias objeto-energético e
bio-objeto apareceram apenas em De Banda
pra Lua. As categorias objeto-imaginário e objeto-afetivo surgiram somente
em No Pirex.As categorias objetos-instrumentos e objetos-antropomórficos
constaram unicamente em Thácht. Já a
categoria objeto-zoomórfico foi comum a De
Banda pra Lua e a Thácht, enquanto
a objeto-faltante foi encontrada em De
Banda pra Lua e No Pirex. As
demais estão presentes nos três espetáculos.
Referências
AMARAL, Ana Maria. Teatro
de Formas Animadas: máscaras, bonecos, objetos.São Paulo: Editora da USP, 1996.
CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore
Brasileiro. 10. Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
DUBATTI, Jorge. Filosofía del Teatro 1:
convívio, experiencia, subjetividad. 1. ed. Buenos Aires: Colihue, 2007.
_____________ Introducción a los Estúdios Teatrales.
1. ed. Cuauhtémoc, México: Libros de
Godot, mayo de 2011.
_____________ Poéticas, concepciones de teatro y bases
epistemológicas. 1ª ed. Buenos Aires: Colihue, 2009.
ESTEVES,
Odilon. Relações poéticas:atores/objetos de cena no teatro
mineiro contemporâneo (Cia Luna Lunera).Belo Horizonte, 13 de
janeiro de 2016. Entrevista inédita.
OLIVEIRA, Luciano Flávio
de. Eid Ribeiro e o Armatrux em
processo: o objeto flutuante entre a poética e a estética teatral. 225 p.
São Carlos: Editora Scienza, 2017.
_________________________ O
objeto flutuante na poética e na estética teatral nas produções de Eid Ribeiro
junto ao Armatrux. Florianópolis, 2016. Tese (Doutorado) – Centro de
Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina.
OLIVERAS, Elena. Estética – La cuestión del arte. 1. ed.
Buenos Aires, 2005.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PEREIRA, Maria de
Fátima. Desenvolvimento emocional e as
etapas da construção do objeto permanente. Rio de Janeiro, 1988. Dissertação
(Mestrado). Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/ handle/10438/9603>.
Acesso em: 30 set. de 2015.
RIBEIRO,
Eid. Thácht – Teatro de Variedades.
Nova Lima: s.n., 18 jan. 2015. Texto cedido pelo Armatrux.
VARGAS,
Sandra. O Teatro de Objetos: histórias,
ideias e reflexões. MÓIN-MÓIN: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas
Animadas. Ano 6, v. 7. Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, p. 33-34, 2010.
[1] Eid Ribeiro nasceu em Caxambu, Minas Gerais, em 11 de março de 1943. Além de encenador, há mais de 50 anos, Ribeiro também é autor teatral, roteirista, ator e artista de cinema. Atualmente, aos 75 anos, ele vive na capital mineira. Junto ao Grupo de Teatro Armatrux, montou quatro espetáculos: De Banda pra Lua (2007), No Pirex (2009), Thácht (2014) e Nightvodka (2017). Os três primeiros foram analisados no livro ora apresentado.
[2] Desde sua
criação em 1991, em Belo Horizonte, o Armatrux
trabalha com o estudo de várias linguagens cênicas em suas montagens: do teatro
ao cinema, da dança ao circo e da performance
aos bonecos. No teatro, são inúmeras as montagens e diversas intervenções desse
grupo em espaços variados, dentro e fora do Brasil. Ao longo dos seus vinte e
sete anos de existência, o Armatrux
recebeu dezoito prêmios nacionais e um internacional, ademais de uma homenagem
internacional. Informações disponíveis em:
<http://grupoarmatrux.blogspot.com.br/>. Acesso em: 28 mai. 2018.
[3] Cristiano
Araújo, Rogério Araújo, Eduardo Machado, Paula Manata, Raquel Pedras e Tina
Dias.
[4] Todas essas categorias serão analisadas mais
adiante.
[5] ESTEVES, Odilon. Relações poéticas: atores/objetos de cena no teatro mineiro
contemporâneo (Cia Luna Lunera). Belo Horizonte, 13 de janeiro de 2016. Entrevista
inédita.
[15] A especialista em Teatro de Animação
Ana Maria Amaral aponta que Sarane Alexandrian apresenta essa categoria como
objetos manifestos, “que têm como função demonstrar sentimentos como, por
exemplo, presentes” (AMARAL, 1996, p. 207).
[16] Eu, por exemplo, possuía uma panela,
que foi da minha mãe, que tinha mais de quarenta anos.
[17] Objeto sem materialidade, fisicalizado
no espaço pelos atores. Tal como os objetos imaginários manipulados pelos
atores de Meyerhold.
Filmagem completa, sem cortes e edições, do espetáculo contemporâneo Inimigos do Povo, da Trupe dos Conspiradores. Tal registro foi feito por Raíssa Dourado e cia, no Teatro Guaporé, no dia 06/11/2018, durante apresentação realizada no IV Festival Unir Arte e Cultura.