Críticos estúpidos e mordazes! Minas Gerais e o Norte contra o “eixo do mal”

Este texto é uma tentativa de respostas à algumas perguntas que fiz a respeito da crítica do jornalista carioca Mauro Ferreira, publicada hoje no G1, sobre o novo álbum da cantora Fernanda Takai intitulado “Será que você vai acreditar?”, cujo lançamento aconteceu ontem (10/07/2020) nas principais plataformas digitais, como o Spotify e o Youtube.

Não ficarei aqui discorrendo detalhadamente sobre cada música, numa tentativa de interpretá-las, pois muitos textos desse tipo já foram escritos por jornalistas nos últimos dois dias.

O que me incomodou na crítica do Mauro Ferreira não é a nota dada por ele ao álbum (* * * 1/2), mas sim o fato do seu texto me parecer ser mais uma tentativa, dentre muitas, de imposição de regras ingênuas e mercadológicas à produção artística contemporânea (ou pós-moderna).

Como artista periférico e professor de uma universidade periférica, de Rondônia, com a maior parte da minha formação artístico-acadêmica ocorrendo em cidades e universidades fora do eixo Rio-São Paulo, sempre senti na pele o desdém e a descrença pelo meu trabalho. E, de certa forma, isso parece ser um espinho em minha trajetória profissional, haja vista todas as dificuldades que passei para alcançar os lugares que ocupo e os papéis sociais que exerço.

Muito bem, como professor-artista, na área de teatro, tento orientar os meus alunos-artistas para trilharem um caminho liberto das caixas e amarras estético-estilísticas e de gêneros. Ou seja, para que criem suas artes dos modos e formas que quiserem – desde que se debrucem em realizar o trabalho com sensatez e da maneira mais ética e responsável socialmente. Na Universidade Federal de Ouro Preto, quando cursei Direção Teatral, fui educado desse jeito; o que pode produzir um certo medo pelo fato de o educando não saber muito bem para onde ir ou como começar. Todavia, isso é libertador.

Ao sair da universidade e começar a navegar pelos difíceis mares do mundo profissional, comecei a me defrontar com os vomitadores de regras, inclusive nas instituições do sudeste em que eu tentei ingressar no mestrado e no doutorado. E onde fui eu conseguir ser livre e realizar a pesquisa que eu queria? Justamente num lugar completamente fora do eixo, mas de uma beleza incrível e com uma população acolhedora e aconchegante: Florianópolis. Lá na longínqua (isso, obviamente, dependendo de onde se olha) e maravilhosa Universidade do Estado de Santa Catarina. Quantas saudades!

Até aqui parece que estou girando atrás do meu próprio rabo, mas os atentos leitores entenderão onde eu quero chegar.

Periférico que sou, desde a adolescência, sempre tive as minhas quedas pelas produções artísticas e manifestações culturais que não pretendiam ser “as melhores, as maiores, as mais bonitas, as mais visitadas, as mais tocadas nas rádios, as que mais atraíam público aos teatros e as que davam mais audiência para os programas de televisão”. Sendo assim, os meus gostos começaram a tornar-se esquisitos, inclusive musicalmente. Logo, apaixonei-me, por exemplo, pelo Pato Fu e pela Fernanda Takai. Isso, em 1992, quando no Brasil a axé music, o pagode, o funk e a música sertaneja começavam a ocupar cada vez mais espaço na mídia. Eu, um rapaz gordo, pobre, nerd, tímido, usando óculos vermelhos doados pela prefeitura, de voz fina e afeminado – e que sofria todo tipo de bulling – era considerado estranho. Pelos meus gostos e práticas comecei a ser rejeitado.

Há 28 anos ouço Pato Fu e Fernanda Takai. E outras muitas bandas e cantores taxados pelos críticos apenas como fofos ou excêntricos. Aprendi a reconhecer os rifes da guitarra de John Ulhoa, a discernir os graves do baixo do Ricardo Koctus, a não misturar os ritmos ensandecidos da bateria furiosa de Xande Tamietti (e, mais tarde, de Glauco Mendes), a não confundir a voz de Fernanda Takai com a de Adriana Calcanhotto (que, aliás, também adoro!), etc. Os estilos de cada membro que já passou por essa banda independente, e que ainda continua a tocar e cantar com ela, bem como com a banda da carreira solo de Fernanda Takai, eu sou capaz de reconhecer. E, como fã, leitor fervoroso de críticas e resenhas, artista, já entendi que tanto a banda quanto a cantora não podem (e não devem) ser encaixados em determinados gêneros musicais. Correndo aqui o risco de reduzir a sua vasta produção musical, que vai da criação de trilha sonora para espetáculo de bonecos (do Giramundo) até canções compostas e/ou regravadas para filmes e novelas, poder-se-ia dizer que o ecletismo e o hibridismo (duas das muitas características da arte contemporânea) são ferramentas de trabalho para Fernanda Takai e o Pato Fu.

Detendo-me mais agora à crítica do jornalista Mauro Ferreira, eis o comentário que escrevi lá na matéria publicada no G1:

Crítica por deveras tendenciosa! Não basta ser jornalista para escrever sobre arte. A sensação que tenho, enquanto artista, é que escritos desse tipo soam como ditadura de regras. As escolhas dos artistas devem, antes de qualquer coisa, serem respeitadas. Goste o crítico ou não!

(https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/07/11/fernanda-takai-expoe-dilemas-do-mundo-atual-em-album-solo-que-cresce-nas-musicas-ineditas.ghtml)

E o que mais me incomodou nos escritos desse jornalista? Vejamos alguns trechos da crítica estúpida e mordaz de Mauro Ferreira:

O álbum de Takai resulta mais relevante quando a cantora expõe questões, melancolias e dilemas surgidos nesse momento turbulento atravessado pela humanidade. (…) as duas ótimas primeiras músicas do álbum – Terra plana (outra canção de John Ulhoa) e Não esqueça, título inédito em disco do cancioneiro do compositor gaúcho Nico Nicolaiewsky (1957 – 2014) – sinalizaram álbum alinhado com os dias de hoje (…). Nesse sentido, em que pese a aura “música de brinquedo” da faixa, a recriação fofa de One day in your life (Sam Brown III e Renée Armand, 1975), sucesso na voz do cantor Michael Jackson (1958 – 2009), se alinha com o tom do disco. (…) A questão é que nem todas as faixas do álbum Será que você vai acreditarse afinam com o espírito do disco. É inacreditável que, quase ao fim do álbum, apareça festiva faixa bilíngue, em português-japonês, de clima dance-pop-disco, Love song, gravada por Takai com Maki Nomiya, cantora japonesa revelada como integrante do duo Pizzicato Five (1985 – 2001). (…) E o que ninguém talvez vá dizer é que, nesse mosaico delicado de sentimentos, a regravação de Love is a losing game (Amy Winehouse, 2006), em clima de bossa eletrônica, funciona como lance errado de Takai em jogo de azar. Takai pode ter acertado ao baixar os tons de One day in your life, mas dilui toda a intensidade da balada de Amy Winehouse (1983 – 2011), cujo repertório perde a veemência se for cantado por intérpretes sem vozes incandescentes. (…) É também curioso notar que Takai se sai melhor nas músicas inéditas. (…) Tivesse resistido mais à tentação de abordar sucessos alheios, a cantora talvez estivesse apresentando um grande álbum solo (…). (Negritos meus).

(https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/07/11/fernanda-takai-expoe-dilemas-do-mundo-atual-em-album-solo-que-cresce-nas-musicas-ineditas.ghtml)

O crítico, que parece ter visão limitada sobre música e sentimentos, pois “suele” desconhecer as poéticas da arte e da vida, tenta reduzir a relevância do álbum apenas às “melancolias e dilemas” criados pela pandemia de coronavírus. Como se, neste período – difícil, é claro! – tudo se resumisse a melancolias e dilemas. É como se ninguém se divertisse ficando em casa; ou como se ninguém pudesse amar, à distância, aquela que está do outro lado do oceano, festejando alegremente com a amiga um encontro musical português-japonês. Sim, cara pálida, é crível que coisas maravilhosas aconteçam em momentos de guerra, porque somos humanos, seres paradoxalmente complexos e esquisitos.

Mauro Ferreira, Será que você vai acreditar? soa como um “metaalbum”, em que dois ou três álbuns diferentes rodopiam dentro de um único eixo. Isso quer dizer que esse trabalho não é só pop-rock, ou rock, ou mpb, ou bossa nova, ou música eletrônica; é mais um trabalho, dentre muitos da cantora, em que os gêneros são chacoalhados no seu (e do John Ulhoa também) divertidíssimo “liquidificador estilístico” (o conceito é meu, tirado do meu primeiro livro). E pasme, até trilha sonora de espetáculo teatral (Who are you?) tem nesse álbum. Duvido que o senhor sabia disso! Ou se sabia, não se lembrava, talvez por não ter conseguido digerir o enlouquecedor espetáculo Alice no País das Maravilhas do Giramundo Teatro de Bonecos, cuja paisagem sonora é executada, ao vivo, pelo Pato Fu.

Sobre o que apontou como sendo uma “recriação fofa”, parece-me mais uma incapacidade sua de achar as palavras ou categorias adequadas para a versão que o casal John Ulhoa e Fernanda Takai fizeram para a canção de Michael Jackson.

Quanto a dizer que Takai “dilui toda a intensidade da balada de Amy Winehouse, cujo repertório perde a veemência se for cantado por intérpretes sem vozes incandescentes” (idem), é o mesmo que dizer que para cantar as canções dessa talentosíssima cantora inglesa, somente as cantoras com timbres e extensões vocais parecidas à dela o podem fazer. Mais uma ingenuidade do seu cérebro-caixinha!

Essa passagem da crítica do Mauro me fez lembrar de um momento em que eu resolvi inscrever o espetáculo teatral Inimigos do Povo, dirigido por mim, no edital “A Ponte” do Itaú Cultural, de São Paulo. A proposta da Trupe dos Conspiradores, bem como todas as outras dos alunos e professores do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, foi rejeitada pela comissão de análise. Até aí tudo bem, pois não ser aprovado em um edital cultural é algo muito comum para qualquer grupo de teatro. O problema é descobrir que esse espetáculo não foi selecionado porque nós da Amazônia não podemos montar Ibsen, ou Shakespeare, ou Brecht; visto que estamos fadados a falar somente sobre a floresta, sobre nossa fauna, nossos mitos e nossas mazelas. Porém, um grupo paulistano famoso – ligado à poderosa USP – vir fazer pesquisa de campo numa tribo do Acre para montar o seu espetáculo de temática indígeno-amazônica é algo bastante natural. Os “lá de baixo” (Rio-São Paulo) podem fazer qualquer coisa, haja vista intitularem-se como o centro difusor da arte, do pensamento e do imaginário da nação. Agora, nós “aqui de cima” somos apenas mais uma parte da imensa periferia excluída dos holofotes do eixo.

É importante lembrar que Fernanda Takai é “aqui de cima”, nascida em Serra do Navio, no Amapá. E, apesar de Minas Gerais, onde ela reside desde criança, estar na região sudeste, aos olhos do eixo do mal (expressão muito recorrente no universo do futebol mineiro), esse montanhoso estado bandeia-se mais para cá do que para lá. E eu não me envergonho, em hipótese nenhuma, disso. Recordo-me, com certa incerteza, de um repórter perguntar para Fernanda o por quê de o Pato Fu ter escolhido Belo Horizonte como sede da banda e não São Paulo ou Rio de Janeiro. Segundo tal repórter, esse grupo musical poderia fazer mais sucesso nessas cidades, porque elas são a referência da produção cultural do Brasil. É claro – sem o intuito de generalizações, até porque conheço boas exceções -, que esse pensamento comumente reflete-se no desequilibrado sistema de premiações dos editais, espelha-se nas críticas publicadas, representa-se no mundo das ideias e interfere, inclusive, na distribuição desigual das cotas de transmissão televisiva para os clubes futebolísticos brasileiros. Foi assim que a Rede Globo criou o monstro chamado Flamengo e conseguiu ser uma das grandes causadoras do Golpe de 2016. A criatura voltou-se contra a criadora, vide Bolsonaro na presidência e a negativa desse clube quanto à transmissão dos seus jogos por esse canal.

Também cai mal o arranjo eletrônico que embota as intenções da canção O que ninguém diz, parceria (já em si pouco sedutora) de Takai com o poeta Climério”. Esse é outro trecho deselegante da crítica de Mauro Ferreira que desvaloriza (para não dizer outra coisa!) a criação artística do poeta piauense Climério Ferreira. O que será que o crítico quis dizer com pouco sedutora? Será que se a parceria de Fernanda Takai fosse com um poeta do eixo ela seria atraente?

Prezado Mauro, quantos cantores e cantoras já regravaram e se “aproveitaram” dos “sucessos alheios” em suas carreiras? Que pensamento mais atrasado é esse de originalidade? Voltamos a viver no século XIX ou nos primórdios do século XX? O que é ser original na pós-modernidade? Uma nova roupagem, ou releitura de um trabalho já existente, não é original porque alguém já o fez? Se fosse assim, nenhum diretor de teatro poderia mais montar Hamlet, porque, ao redor do mundo, esse belíssimo texto shakesperiano já foi usado centenas ou milhares de vezes em trabalhos teatrais. A originalidade na montagem do Hamlet reside justamente nas escolhas, individuais, que cada artista faz para abordar a peça de Shakespeare. Ora, segundo suas palavras, e suas falsas verdades, cantar as músicas de Michael Jackson, de Amy Winehouse ou até mesmo do espírito-santense Paulo Sérgio não é original, porque fulano, beltrano ou ciclano já o fizeram antes ou melhor? Quanta bobagem e crueldade nessas palavras. Falta ao senhor a experiência da criação, dos ensaios, dos shows, das turnês e circulações. Se soubesse o quanto é difícil e árduo o trabalho criativo, “será que o senhor iria acreditar?” nas suas próprias palavras?

Por fim, importa mencionar que compor um CD todo igual, sempre com o “mesmo espírito”, é tarefa para os sertanejos universitários, os sofrentes, os funkeiros e os religiosos.

Fonte da Imagem: Capa do álbum ‘Será que você vai acreditar?’, de Fernanda Takai — Arte de Renato Larini

Mitologia dos orixás: um estudo dramatúrgico a partir da obra Os Orixás do Giramundo Teatro de Bonecos[1]

Artigo publicado na Revista Aluá – Revista de Cultura e Extensão Aluá. Ano 1 – N. 1 – 2017. p. 84 – 99. Pró-Reitoria Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis da Fundação Universidade Federal de Rondônia 

Fonte das figuras: GIRAMUNDO. Arquivos: Baú e Os Orixás. Coletânea organizada por Rogério Sarmento. Belo Horizonte: Museu Giramundo, abr. de 2010. CD-ROM, 1 unidade física.

 

RESUMO: Neste artigo lanço um olhar sobre alguns mitos representados, dramaturgicamente, no espetáculo teatral Os Orixás, montado em 2001, em Belo Horizonte, pelo grupo de teatro de animação Giramundo. Este grupo, ao longo de quase cinquenta anos de existência, já representou, em seus trabalhos, distintas mitologias e lendárias do país: desde os contos da Iara, do Rio São Francisco – do norte de Minas Gerais -,  até as histórias do Boto da Amazônia. Contudo, as figurações mitológicas afrobrasileiras só foram aprofundadas quando da montagem desse trabalho. Entrementes, para compreendermos melhor tais mitos faz-se necessária, em primeiro lugar, uma observação sobre a escravidão de africanos no Brasil Colônia e sobre as contribuições dos negros para o surgimento e consolidação das crenças afrobrasileiras. Depois, importa observar como o culto aos orixás tornou-se o centro destas crenças e, por fim, de que maneira se deu a entrada do diretor Álvaro Apocalypse nesse universo, apropriando-se de aspectos mitológicos do culto aos orixás para elaborar a dramaturgia de tal espetáculo, baseando-se, principalmente, em mitos narrados no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi.

 

Palavras-chave: teatro de bonecos, divindades, candomblé, umbanda, terreiro.

 

ABSTRACT: This article takes a look at some myths dramaturgically represented in the theatrical spectacle “Os Orixás”, mounted in 2001 in Belo Horizonte, in Giramundo Animation Theatre Group. This group for almost 50 years of existence, has represented in his works, different mythologies and legends of the country: the tales of Iara, the São Francisco River – from the north of Minas Gerais – to the stories of Amazon Boto. However, the mythological african-Brazilian figurations were only deepened when assembling this work. Meanwhile, to better understand these myths is necessary, first, a note about the enslavement of Africans in colonial Brazil and about the contributions of black people to the emergence and consolidation of african-Brazilian beliefs. Then it should be noted as the worship of orishas became the center of these beliefs and, finally, how was the entry of the director Álvaro Apocalypse in this universe, appropriating of mythological aspects of the cult of the orishas to develop the dramaturgy of such spectacle, mainly based on myths narrated in the book “Mitologia dos Orixás”, authored by Reginaldo Prandi.

Key words: puppet theater, deities, candomblé, umbanda, yard.

 

 Escravidão negra no Brasil

Em síntese, a escravidão de negros africanos no Brasil parece ser contemporânea à colonização do país, ocorrida no século XVI. Entretanto, o grande tráfico negreiro, conforme a historiadora Nina Rodrigues (1982), iniciou-se pouco menos de uns cinquenta anos após a chegada dos portugueses à nova Colônia. Nos séculos posteriores, o comércio colonial de escravos aumentou de forma acelerada, principalmente com a descoberta de ouro em Minas Gerais. Estima-se que até o final do século XVIII mais de um milhão de escravos foram introduzidos em nossas terras. Com eles vieram as suas culturas, seus valores, suas crenças e os seus deuses. De acordo com o pesquisador Volney Júnior Berkenbrock (1999), os escravos provinham das mais diversas culturas e povoados do continente africano, especialmente da costa ocidental. Segundo ele, isso provocou, antes mesmo da chegada dos escravos à Colônia, grandes misturas e confusões étnicas, culturais, religiosas e linguísticas. Tais misturas, somadas às separações familiares feitas pelos senhores de engenho, às dificuldades de comunicação entre membros das diferentes tribos, às proibições religiosas impostas pela Igreja Católica, dentre outras, causaram nas comunidades negras que chegaram ao Brasil Colônia muitas perdas, como foram, por exemplo, perda de parte dos rituais religiosos coletivos. Entretanto, o culto aos orixás, mesmo que individualmente — haja vista, segundo Berkenbrock (1999), o critério étnico não ser mais um fator determinante para a organização da nova sociedade na qual os negros se encontravam[2] —, se manteve após a abolição da escravatura, ocorrida no final do século XIX. Desse modo, a veneração aos orixás atravessou as primeiras décadas do Brasil República, e, novamente ganhando força coletiva dentro de pequenas comunidades constituídas principalmente nos centros urbanos — nas quais foram criados os primeiros terreiros —, chegou — por exemplo, por meio do candomblé e da umbanda — aos dias atuais.

Entretanto, para esse autor, apenas alguns poucos das centenas de orixás cultuados na África tornaram-se conhecidos no Brasil. E um número menor ainda foi cultuado. Além disso, aqui ocorreu uma aglutinação de funções religiosas que na África eram exercidas por pessoas distintas. O brasileiro, diferentemente do africano, assumiu sozinho o culto a variados ou a todos os orixás. Portanto, “o sistema africano de comunidades que se dedicavam ao culto de uma única entidade desapareceu completamente no Brasil. Em seu lugar, surgiram comunidades onde são cultuados diversos Orixás” (Berkenbrock, 1999, p. 113). Essas comunidades foram responsáveis pela fundação de inúmeras religiões, como o candomblé e a umbanda, que se transformaram, no território nacional, em religiões afrobrasileiras.

Mas afinal, o que são os orixás?

 O professor e pesquisador Alexandre Magno Teixeira de Carvalho traz em sua tese uma síntese bem interessante sobre os significados do termo. Assim, para ele, os orixás são

Divindades iorubás cultuadas nos Candomblés. (…) ancestrais divinizados, antigos reis ou heróis, e considerados como representações das forças da natureza (…); Divindades iorubá cultuadas nos candomblés, Xangôs, batuques, umbandas, isto é, nas religiões de matriz africana no Brasil. Seu equivalente Fom [Jejê] é Vodum, em Angola é Inquice. São também chamados de “santos” (…); Essas equivalências são imperfeitas, pois, ao passo que uns são forças da natureza, outros são espíritos que retornam sob a representação de animais, enquanto outros são ainda espíritos ancestrais (…); nome genérico das divindades, que são intermediárias entre Olorum, o deus supremo, e os mortais (…). (CARVALHO, 2004, p. 225).

Além disso, de acordo com Prandi (2001, p. 20), os iorubás[3] tradicionais e os seguidores de sua religião nas Américas acreditam que

os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum, (…), o Ser Supremo, a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana.

Esse autor diz ainda que os iorubás acreditam que os seres humanos são descendentes desses deuses. Assim, cada um herdaria do orixá de que procede suas impressões e particularidades, tendências e desejos. Isto tudo de forma parecida ao contado em seus mitos. Talvez estejam aí as explicações para os múltiplos temperamentos dos humanos.

Finalmente, para o pai-de-santo Dagoberto Silva, na obra Magia e Rituais de Umbanda, os orixás, na umbanda, não são deuses, mas “apenas ministros de OLORUN, delegados divinos encarregados de resolver os problemas humanos” (SILVA, 196-?, p. 09).

Apresento agora mais duas questões: como os orixás se manifestam e onde podem ser encontrados?

Em suma, conforme o que é narrado em alguns mitos afrobrasileiros, essas entidades podem se revelar no corpo dos humanos, nos elementos da natureza (como em raios, trovões, tempestades, ventos, chuvas, arco-íris, névoas, etc.), em espíritos que tomam forma de plantas e animais ou até mesmo em espíritos de ancestrais, e assim por diante. Como os orixás são muitos, e de certa forma são oniscientes e onipresentes, podemos sentí-los — ou até mesmo vê-los — em diversos lugares: nas margens dos oceanos, rios e lagos; nas cidades; nos campos e florestas; nas pedreiras; nos hospitais; nos funerais; nos cemitérios; nas encruzilhadas; nas fontes de água; nas festas; na força dos materiais, como os instrumentos agrícolas e armas; nos formigueiros; em fogueiras; nos terreiros; etc.

Diga-se de passagem, conforme o pesquisador, fotógrafo e etnólogo franco-brasileiro Pierre Verger (2000), o culto a essas entidades, chamadas na língua iorubá de Oriṣa,[4] são dirigidas, inicialmente, às forças naturais, por meio de antepassados transformados em deuses, e constituiriam um amplo sistema que liga os mortos e os vivos de forma ininterrupta. Destarte, por ser a ligação mística entre os orixás e os humanos sempre constante e ativa, nada se faz, aqui na terra, sem consultá-los e sem ter por certo suas proteções. Para tanto, é preciso agradá-los, caso contrário, destruições sem tamanho podem acontecer, pois “os deuses são terríveis e temíveis, mas se convenientemente tratados, adorados, proporcionam ajuda e proteção a seus fiéis. Basta conformar-se à lei, à regra, e não se sofrerá as conseqüências”. (Verger, 2000, p. 16). O Giramundo, antes das apresentações do espetáculo Os Orixás, parece agradar a esses deuses, com a prática de incensamento do espaço de representação, evitando, desse modo, maiores constrangimentos durante o acontecimento teatral.

Quanto aos principais locais de adoração aos orixás aqui no Brasil, pelo notado nos autores mencionados, são os terreiros. Ao que parecem, estes espaços lidam bem com as diferenças: aceitam adeptos de todas as cores de pele, profissões, classes sociais e crenças religiosas. Assim, os artistas Álvaro Apocalypse e sua filha Beatriz Apocalypse não encontraram muitas dificuldades para serem aceitos pelo Grupo Espírita Estrela do Oriente – Casa Raiz do Bate Folha[5]. Tampouco se depararam com obstáculos para receberem ajuda de Henrique Neto (Tateto Kitulangê), zelador ou pai-de-santo[6] desse centro, para a montagem da peça teatral Os Orixás, em 2001. Esse babalorixá os municiou de informações relativas à umbanda e ao candomblé: mitos, cantos, instrumentação, orixás representados e seus arquétipos. Logo, Tateto Kitulangê foi elevado à condição de assessor da montagem, para os assuntos relativos às mitologias iorubás.

Enfim, foi numa sexta-feira que Álvaro e Beatriz Apocalypse se encontraram e se encantaram, no terreiro do Estrela do Oriente, com Oxalá, o deus da criação.

 

Uma rápida viagem pela encenação do Giramundo

 Em suma, isto nos conta Álvaro Apocalypse, por meio de Os Orixás: Olodumaré, o deus supremo, pede a seu filho Oxalá, o grande orixá, para criar a Terra, o homem e a mulher. No entanto, aproveitando a embriaguez do irmão Oxalá, causada por Exu, o dono das encruzilhadas e guardião do Portal de Orum (o Além), Oduduá, deusa da Criação, pega o saco da criação e dá existência ao universo. Aborrecido, enciumado e com medo de não ser lembrado na história da História, Oxalá se reporta ao pai, que o autoriza a criar um casal de homem e mulher. Depois de criá-los, o casal — Okunrin (que significa homem) e Obinrin (o mesmo que mulher) — se afasta por intriga de Exu. Uma mãe-de-santo (Ialorixá[7]) convoca Exu e lhe oferece um Ebó (oferta ou sacrifício) para que ele junte o casal que separou. Novamente juntos, o casal tem um filho: Omobinrin. Finalmente, a Terra ficava cada vez mais povoada, deixando Olodumaré tão contente que inundou o mundo de luz.

Os Orixás é o trigésimo trabalho do Giramundo e a última montagem de Álvaro Apocalypse, falecido em 2003. Além da concepção do texto e da cenografia, ele também fez a direção geral, enquanto a sua filha Beatriz Apocalypse fez a direção de cena.

Espécie de tributo às culturas afrobrasileiras a partir de seus aspectos artístico-culturais e mitológicos, Os Orixás, sem proselitismos, narra mitos provenientes do panteão de deuses africanos sobre a gênese da criação: do universo, da terra e das primeiras vidas, principalmente dos seres humanos. Grosso modo, a peça aborda, também, as paixões que moveram as atitudes desses deuses. Além disso, de certa maneira, destaca ainda a importância dessas culturas para a constituição das culturas brasileiras: suas músicas, danças, culinárias, religiões, línguas, etc. Ademais, completaria um ciclo de espetáculos do Giramundo que representam, de forma objetiva, elementos culturais do Brasil. Tal ciclo ter-se-ia iniciado com o Saci Pererê (1973) e se estenderia para Um Baú de Fundo Fundo (1975), Cobra Norato (1979), Auto das Pastorinhas (1984), O Guarani (1986), Tiradentes (1992) e A Redenção pelo Sonho (1998).

Álvaro Apocalypse, justificando a escolha do tema da nova peça, disse o seguinte:

A cultura negra é muitas vezes excluída (…). Os índios, por exemplo, são constantemente lembrados, recebendo nomes de ruas e afins. Mas os africanos são mais esquecidos. Eles também formaram nações, com identidade, língua e costumes próprios. Eles deixaram vários traços em nossa cultura.[8]

Com tal afirmação, Apocalypse parecia mostrar que, em Belo Horizonte, pelo menos no que se refere aos nomes de ruas do centro da cidade, as culturas africanas não foram devidamente lembradas. Enquanto determinadas ruas foram homenageadas com nomes indígenas, como, por exemplo, Rua dos Tupis, dos Guaranis, dos Guaicurus, dentre tantas outras, não se nota nenhuma menção a topônimos africanos, pelo menos nessa região. Dessa forma, a montagem de Os Orixás, além dos aspectos anteriormente mencionados, também parece cobrir um pouco esse vazio, ademais de preencher uma lacuna no palco das marionetes do Giramundo. Contudo, ao decidir montar esse espetáculo, um dilema parece ter tirado o sono do diretor: “como contar uma história que não se conta, que é vivida; em outras palavras, que só é dita por quem a entende e só é entendida pelos que não a querem desvelar?”.[9] Talvez seja por este motivo que o encenador recorreu a Henrique Neto, babalorixá do Grupo Espírita Estrela do Oriente: “Passei a ele várias lendas, costumes e tradições […]”.[10]

Beatriz Apocalypse, em entrevista, disse que o seu pai, ao decidir montar Os Orixás, queria retratar a mitologia africana e não a religião, como muitos acreditavam:

Algumas pessoas, às vezes, confundem com a religião, mas ele não quis retratá-la. Fez um período de estudo da mitologia dos orixás, da mitologia aplicada. (…) Então, foi um longo estudo. Um período bem interessante: as lendas são maravilhosas, os deuses são lindos. E a gente quis transpor isso para o espetáculo, para, de certa forma, homenagear os negros e levar para as pessoas que isso não é macumba, espiritismo, mas sim mitologia. (APOCALYPSE, B., 2009, entrevista concedida ao autor).

            Em relação a esse aspecto mitológico de Os Orixás, Beatriz Apocalypse tem certa razão. O seu pai se preocupou muito mais em narrar os mitos do que propriamente retratar os aspectos religiosos da umbanda, do candomblé e/ou do espiritismo. Ele também se atentou aos elementos artísticos dos cultos aos orixás: às indumentárias, às cores, aos paramentos, às armas e jóias utilizadas pelos deuses, assim como às gestualidades recorrentes em suas danças.

            Ainda sobre os estudos para a criação do espetáculo Os Orixás, Helvécio Carlos (2001), jornalista do jornal Estado de Minas, disse que Álvaro Apocalypse encontrou os fundamentos para sua pesquisa em obras como as de Pierre Verger. É dado que as investigações do diretor duraram aproximadamente dois anos: de 1999 a 2001. E foi nesse período que ocorreu uma surpresa: “Na hora que comecei a mexer foram aparecendo diversos livros sobre o candomblé, [como o] Mitologia dos Orixás”,[11] pondera o dramaturgo Apocalypse. Aliás, esta obra, escrita pelo sociólogo Reginaldo Prandi, foi lançada em dezembro de 2000, conforme informação disponível no sítio eletrônico[12] do próprio autor. Justamente pelo motivo de o espetáculo ter estreado um pouco mais tarde, em 11 de maio de 2001, além do fato de existirem várias versões do texto Os Orixás, o que demonstra dificuldades de Apocalypse nas escolhas dos mitos a serem representados, e finalmente pelos atrasos na produção e finalização da montagem, surge a hipótese de que a obra Mitologia dos Orixás tenha sido primordial para a finalização daquele texto.

Durante as pesquisas que realizei no Museu Giramundo, em Belo Horizonte, encontrei sete versões do texto Os Orixás. Contudo, somente uma delas, não sendo possível definir exatamente qual versão é, possui data: 04 de setembro de 2000. Encadernada a uma dessas variantes encontra-se o livro Orixás (1955), de Pierre Verger. Porém, neste livro, não se notam descrições de mitos, o que reforça ainda mais a hipótese de que a obra de Prandi foi fundamental para Álvaro Apocalypse.

O recém-inaugurado Teatro Giramundo, em Belo Horizonte, foi o “terreiro” que recebeu a nova peça, que ali cumpriu uma temporada quase que ritualística de mais ou menos dois meses: sempre às sextas, sábados e domingos. Mais tarde, alguns dias depois da morte de Álvaro Apocalypse, ocorrida em setembro de 2003, a filha Beatriz e os artistas Marcos Malafaia e Ulisses Tavares (outros integrantes do grupo) apresentaram uma remontagem da peça no Festival Mundial de Marionetes da UNIMA, em Charleville-Mezières, França.

 

A história de uma dramaturgia tecida pelos fios de mitos

 Agora, observarei de que maneira Álvaro Apocalypse dispôs, no texto Os Orixás, alguns mitos dos orixás, recriando e representando, textualmente, uma coleção mitológica afrobrasileira. Ademais, compararei as narrativas trazidas pelo artista com mitos contados por Prandi (2001), a fim de compreender melhor a influência deste último sobre a construção textual do primeiro.

Como vimos, Apocalypse fez um longo estudo sobre essa coleção e ainda acompanhou os ritos ao culto aos orixás, num terreiro da capital mineira, para tecer as linhas e enredar as histórias do seu texto. Assim, ao que tudo indica, além das inspirações em Mitologia dos Orixás, possivelmente o diretor registrou, em sua memória, narrativas que ouviu serem contadas e viu serem representadas, em forma de cultos, durante as reuniões do Grupo Estrela do Oriente.  

É difícil, senão quase impossível, reconstruir as pesquisas de Apocalypse e verificar todas as obras lidas e mitos coletados por ele para compor a coleção presente nas vinte e sete cenas do seu texto. De acordo com Malafaia (2009), foi muito grande o volume de leituras realizado pelo diretor. Em toda a cidade a que ia procurava por obras raras relativas aos mitos em sebos e livrarias. Mesmo a mitologia africana sendo muito extensa e complexa, ele “conseguiu fazer uma síntese que valoriza e contribui para o registro dos principais mitos desse panteão” (Malafaia, 2009, entrevista concedida ao autor). Nessa síntese constam, ao todo, histórias de dezessete orixás: Exu, Iansã, Iemanjá, Logum Edé, Nanã, Obaluaê/Omulu, Oxalá (Obatalá), Odé/Oxossi, Oduduá, Ogum, Olokun, Orumilá, Orungã, Ossaim/Katendê, Oxum, Oxumarê (serpente) e Xangô. Em cada uma das vinte e sete cenas de Os Orixás, o encenador/dramaturgo retratou uma ou mais narrativas relacionadas a esses deuses e às ações deles, e também apresentou ritos prestados a essas entidades. Entretanto, vale ressaltar que, além do texto, os ritos também são notados na partitura de ações dos bonecos/personagens e nas cantigas do espetáculo.

O texto Os Orixás é um dos elementos-chave da encenação do Giramundo. Contudo, ele não se nutre da lógica aristotélica, no sentido de encadeamento linear das ações (princípio, meio e fim), e não busca assertivas no mundo real. Tanto o texto quanto a encenação parecem se articular em torno de dois tempos principais: um mítico (atemporal) e outro narrativo.

Constituído por um único ato, se enovela por saltos espaciais e temporais — em forma de pequenos esquetes — e pauta-se, principalmente, em narrações: as figuras de dois narradores (um homem e uma mulher) revezam-se — ora um ora outro, ambos os dois — nos relatos dos fatos ocorridos e na apresentação dos mitos. Enfim, apresento e narro, resumidamente, alguns mitos representados no texto Os Orixás, relacionando-os, e por ora comparando-os, com mitos figurados em Prandi (2001). Além disso, teço comentários das cenas que considero mais relevantes.

As sete primeiras cenas de Os Orixás trazem mitos referentes à criação do universo e dos seres humanos e também sobre o surgimento de alguns orixás. São elas, respectivamente: “Ni Igba Kan[13], “Exu”, “Oduduá”,  “Okikishi e Iyê”, “Nanã”, “Egum” e “Obaluaê”. Por sua vez, estas encontram respaldos nos seguintes mitos narrados por Prandi (2001): “Orinxalá cria a Terra”, “Obatalá cria o homem”, “Nanã fornece a lama para a modelagem do homem”, “Nanã tem um filho com Oxalufã” e “Nanã esconde o filho feio e exibe o filho belo”.[14]

Mais ou menos assim começam as cenas: havia o nada antes da criação. Olodumaré/Olorum/Olodum (ser absoluto e inatingível), em quatro partes o mundo sonhou: Olokun (o Mar), Orumilá/Ifá (o Destino), Oduduá (a Terra) e Obatalá (o Céu). Olodum chama o filho Oxalá: “Êpa Babá, Oxalá[15]”; dá-lhe o saco da criação e pede para ele o mundo criar. Mas “Oxalá devia cumprir obrigação. Para ir além do Além, Orum. Pôs-se a caminhar. E encontrou Exu, guardião do Portal de Orum”.[16] No entanto, Oxalá, altivo e orgulhoso, passa direto pelo Portal e não deixa nenhuma oferenda para Exu. Logo, o guardião do Portal se vinga de Oxalá, causando nele uma grande sede. Este, sedento, vê um pote de vinho de palma e bebe sem parar, até ficar bêbado. Sonolento, o orixá deixa cair de suas mãos o saco da criação, perdendo-o.

Esperta, Oduduá pega o saco e semeia a semente da criação. Cria montinhos de terra e coloca uma galinha para ciscar, esparramando-a: “Um morro aqui. Um riozinho ali. Um lago. E lá adiante, uma cidade. Onde Okó, o homem, um dia há de morar.[17] Oduduá cria a Terra (Ilê-Aiyê), a água (Olokun), a terra firme (Aganju), o céu (Ojo Orum) — repleto de estrelas e de ar — e o fogo de derreter e esquentar.

Em outro momento, o deus Oxalá, depois do triste despertar, pergunta ao seu pai: “o mundo está pronto pronto, o que falta faltar?”[18] E Olodum responde: “Falta Okikishi, o sal da Terra, que chamarão: o Homem. Falta Iyê, a vida, que chamarão: Mulher. Pega então desta argila que te dou e modela o corpo de Okurin e Obinrin. E no calor do fogo, ponha os dois para secar”.[19] Então, Oxalá modela o barro e põe para queimar. Por um lado, o homem queima demais e fica preto. Por outro, a mulher queima pouco e fica branca. Em seguida, o curioso Orungã, o Vento, vem ver a obra de Oxalá. Ele venta tanto que racha o barro. E assim nasce a mulher. Mas foi Nanã, a mãe das águas paradas, dos lagos e dos pântanos, que deu a Oxalá, o seu esposo, o barro para fazer o homem. Todavia, quando a alma (Egum) do homem se for, Nanã pedirá o barro de volta.

 

NARRADORA: Nanã Buruquê domina o Egum,

Egum espírito do morto que morreu

E não foi pra lugar nenhum. (APOCALYPSE, A., 2010, p. 7).

Mais adiante, Oxalá pede para Nanã dividir com ele o poder sobre Egum Egum. Mas ela diz para Oxalá que o poder vem deles e não dela. Logo, não é possível realizar a partilha. Insistentemente, Oxalá tenta dominar os eguns, ao passo que acaba descuidando do seu casamento com Nanã. Ela então faz um feitiço: “Vinho de palma e cento e um caramujinhos. E um filho de Oxalá este feitiço vai me dar”.[20]

O feitiço faz efeito, nasce Obaluaê ou Omulu, “orixá da varíola, das pestes, das doenças contagiosas”.[21] Entretanto, ele nasceu feio, deformado, torto. Desesperada, a mãe atira o filho, nu, ao mar. Mas Okurin e Iawô (esposa jovem)[22] o salvam, tecendo para ele um manto de palha da costa chamado ganzé: “[…] com ele Obaluaê se cobriu e assim saiu da noite onde se escondeu. Tomou do Xaxará[23] e saiu pelo mundo com a missão de curar os enfermos e debelar as epidemias pelo resto das eras, épocas e tempos”.[24]

Comparemos o último mito, narrado por Apocalypse, com o mito “Nanã esconde o filho feio e exibe o filho belo”, transcrito por Prandi (2001, p. 197)). Os mesmos se diferem um pouco:

Conta-se que Nanã teve dois filhos. Oxumarê era o filho belo e Omulu, o filho feio. Nanã tinha pena do filho feio e cobriu Omulu com palhas, para que ninguém o visse e para que ninguém zombasse dele. Mas Oxumarê era belo, tinha a beleza do homem e tinha a beleza de todas as cores. Nanã o levantou bem alto no céu para que todos admirassem a sua beleza. (…) E lá ficou Oxumarê, à vista de todos. Pode ser admirado em seu esplendor de cores, sempre que a chuva traz o arco-íris. (Grifos meus.).

Já na cena XI (“Exu exige Ebó”), Ialorixá explica para o casal Obinrin e Okurin que Exu Elegbará[25] exige uma oferenda, para que eles possam entrar em Aruanda, seu reino. O Ebó que Exu exige é cachaça, charuto ou vela preta. Mas, por serem pobres, eles não têm nada para oferecer. No entanto, Ialorixá reafirma a necessidade da oferta. Então, para se vingar, Exu aparece e faz o casal brigar, por discordância exacerbada da cor do seu chapéu: branco ou vermelho? Por fim, o casal se separa.

Existe uma narrativa de Prandi (2001) chamada “Exu provoca a rivalidade entre duas esposas”,[26] em que as mulheres brigam justamente por causa de uma história de chapéu. Contudo, ao que parece, a Cena XI foi baseada no mito “Exu leva dois amigos a uma luta de morte”:[27] eles se matam por causa de uma discussão sobre a cor do boné do desconhecido Exu: branco ou vermelho?

Em seguida, na cena XII (“Ogun e Okunrin”), Okurin, depois da separação, perde-se nas trevas e clama por luz. Surge, então, Ogum, orixá guerreiro e caçador: “Quem te enfiou nesta cabeça oca que tu, Mortalzinho preto, mereces alcançar a luz?”[28] Mais adiante, Ogum pergunta para dois habitantes do Irê se ele estava no Reino de Irê. Como eles nada responderam, o violento orixá lhes cortou as cabeças. Dentro em pouco, Okurin informa ao deus Ogun que em dia de santo os humanos têm que ficar calados: “Ogum estremeceu, deu um berro e desapareceu chão adentro numa nuvem de fumaça”.[29]

Não restam dúvidas que esta cena foi baseada no mito “Ogum mata seus súditos e é transformado em orixá”[30].

Okurin continua pedindo luz, isto, já na cena XIII (“Camarinha” [31]). Nesse instante, aparece Ialorixá e diz que ele precisa de luz tanto por fora quanto por dentro. Assim, ela indica os passos rituais para que ele se torne um iaô, ou seja, um filho-de-santo:

IALORIXÁ: Cê tira 21 dias desta vida, cê entra pra camarinha e de lá não sai. É procê ter humildade, pra seguir a lei dos Orixás [sic]. Okurin precisa aprender a cantar rezas e cantigas da tradição. Okurin tem precisão de conhecer as ervas que curam o corpo e a alma do teu irmão. (…) Okurin vai dar bori[32] de Oxalá. Okurin vai dar a salva[33] de Obaluaê. Okurin vai dar a salva de Nanã. Ah, Muzenza! (…) Cê raspa seu cabelo. Cê lava sua cabeça nas águas de Oxalá. Cê toma banho de amaci[34] na madrugada.  (APOCALYPSE, A., 2010, p. 19.).

Finalmente, Okurin aparece vestido como um iaô: de chita, pintado de todas as cores.

Mais histórias de Exu e mitos de Xangô — “orixá do trovão e da justiça”[35] — e de Oxum — “orixá do rio Oxum; deusa das águas doces, do ouro, da beleza e da vaidade; uma das esposas de Xangô”[36] —  são encontrados nas cenas XV, XVI e XVII: “Xangô”, “Xangô e Exu” e “Prisão na Pedreira”. Em suma, Xangô quer se casar com Oxum. Todavia, ela não aceita o convite, pois do seu velho pai Oxalá precisa cuidar. Desta feita, Xangô diz que de Oxalá cuidará, levando-o em seu pescoço. Logo, o deus Xangô manda dois servos (Biri, as trevas, e Fefé, o vento)[37] buscarem um colar de contas[38] vermelhas misturadas com contas brancas. Assim que o colar chega, Xangô o pendura no pescoço e diz para Oxum que ele carrega o seu pai. Mas ela não aceita esta assertiva, pois não vê seu pai no pescoço do rei Xangô. Súbito, ele enfurece. Chega, então, Exu, para proteger Oxum e impedir que o irmão Xangô se case com ela. Os dois brigam e Exu sai derrotado. De imediato, o deus das trovoadas prende Oxum numa pedreira. Mas Exu não desiste e pede ao pai Obatalá para libertar Oxum. Logo, ela é transformada em uma pomba branca, que voa para longe.

Essas três cenas encontram referências nos mitos prandianos “Xangô vence Exu e conquista Oxum” e “Oxum transforma-se em pombo”.[39]

As cinco cenas seguintes — intituladas “Odé”, “Oxóssi”, “Katendê”, “Oxum” e “Logum Edé” — discorrem, grosso modo, sobre o amor entre o caçador Odé e a bela Oxum, e sobre a morte[40] e reencarnação de Odé: o humano Odé, “rei das matas e dos caçadores”,[41] falece e volta como o orixá Oxóssi, “rei dos índios e dos caboclos”.[42]

Assim transcorrem as ações mais relevantes destas cenas: no dia de Ifá, o Destino, Odé matou uma serpente. Entretanto, Ifá proíbe a caça em seu dia:

NARRADOR: A serpente que Odé matou, picou e comeu, é Oxumarê, filho de Nanã e Oxalá. Oxumarê, a serpente, é o arco-íris que leva água da Terra pro Céu de Olodum. Por isso Odé foi castigado. Sete anos se passaram e sete anos Oxum chorou, pedindo pra Odé voltar. Olodumaré, compadecido, perdoou Odé e permitiu sua volta a Terra como orixá: Oxóssi (…). (APOCALYPSE, A., 2010, p.27).

Por conseguinte, Oxóssi foi enfeitiçado por Katendê/Ossaim, orixá mago que “faz mágica com flores e ervas e feitiço com raízes e folhas”,[43] e ficou eternamente na floresta. Ali, Oxum vai sempre visitá-lo, murmurando carinhos e carícias em seus ouvidos.

Não obstante, com o intuito de entrar no palácio proibido para amar Oxum, Oxóssi se vestiu de mulher e se passou por sua amiga. Ficaram horas a sós: “O amor voa de Oxóssi para Oxum. […] O amor nada de Oxum para Oxóssi”.[44] Assim nasceu Logum Edé, “orixá da caça e da pesca”.[45] Mas, porque Oxóssi usou saia, Logum Edé desenvolveu-se meio homem meio mulher. Durante seis meses vive com o seu pai, alimentando-se de caça: é Oxóssi. Nos seis meses restantes vive debaixo d’água, comendo peixe: é Oxum.

Todas estas cenas esbarram nos seguintes mitos prandianos: “Odé desrespeita proibição ritual e morre”, “Oxóssi é raptado por Ossaim”, “Logum Edé nasce de Oxum e Erinlé”, “Logum Edé é salvo das águas”, “Logum Edé é possuído por Oxóssi”.[46]

Concluindo, talvez o fato de o comandante do Giramundo ter se baseado, para escrever a maioria das cenas de Os Orixás, em mitos narrados na obra Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, e/ou também em histórias ouvidas, vistas e vivenciadas por ele no terreiro do Estrela do Oriente, ou ainda em obras lidas por ele — às quais, por algum motivo, não tivemos acesso —, gere dúvidas sobre a originalidade e autoria do texto. Mas o que realmente aconteceu foi que o dramaturgo Álvaro Apocalypse se inspirou livremente nessas referências para tecer e enredar o seu próprio entendimento dos mitos afrobrasileiros, relacionando-os com histórias acessadas em sua imaginação. Tais inspirações não configuram, de modo algum, uma terceira autoria do texto Os Orixás. Ao que tudo indica, ele pegou emprestado de Oxalá o saco da criação, semeando as sementes em forma de letras. Assim surgiram as palavras, as rimas, os pontos e os versos desse belo texto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APOCALYPSE, Álvaro. Os Orixás (2001). Belo Horizonte: Museu Giramundo, 2010.

APOCALYPSE, Beatriz. A era Beatriz Apocalypse no Giramundo: remontagem de Um Baú de Fundo Fundo, Cobra Norato e Os Orixás. Entrevista oral concedida a Luciano Oliveira. Belo Horizonte, 22 de jul. de 2009. Entrevista não-publicada.

ATINÚKÉ: A Cerimônia de Batismo, Nomes Yorùbá e a Concepção da Morte na Cultura Yorùbá. (Artigo). Belo Horizonte: Instituto de Arte e Cultura Yorùbá, 2009, p. 12. Disponível em: <http://www.institutoyoruba.com&gt; Acesso em: 11 ago. 2010.

BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no Candomblé. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

CARLOS, Helvécio. Álvaro Apocalypse aprofunda sua pesquisa sobre a brasilidade e mergulha nos mitos e na religiosidade africana para criar ‘Orixás’, o 30º trabalho do grupo Giramundo. Estado de Minas. Belo Horizonte, terça-feira, 08 de maio de 2001. Em Cultura.

CAMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

CARVALHO, Alexandre Magno Teixeira de. O sujeito nas encruzilhadas da Saúde: um discurso sobre o processo de construção de sentido e de conhecimento sobre sofrimento difuso e realização do ser no âmbito das religiões afro-brasileiras e sua importância para o campo da Saúde Coletiva. 2004. Tese (Doutorado em Ciências/área de Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 2004. 340 f. Disponível em: <http://bvssp.icict.fiocruz.br/pdf/carvalhoamtd.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2010.

MALAFAIA, Marcos. Mestiçagem e culturas em Os Orixás, Cobra Norato e Um Baú de Fundo Fundo. Entrevista oral concedida a Luciano Oliveira. Escola Giramundo, Belo Horizonte, 30 de jul. de 2009. Entrevista não-publicada.

MARTINS, Alexandra. Giramundo, Saravá!  Tempo. Belo Horizonte, terça-feira, 20 de fevereiro de 2001. Magazine.

_____________________.“Os Orixás” homenageia cultura afro. Tempo. Belo Horizonte, sexta-feira, 11 de maio de 2001. Magazine – Fim de semana. p. 13.

MORAIS, Mariana Ramos de. O Candomblé na metrópole: A construção da identidade em dois terreiros de Belo Horizonte. 2006. 132 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.

PAULO, João. Giramundo transforma em teatro a criação do mundo narrada pelos Orixás. Estado de Minas. Belo Horizonte, quinta-feira, 21 de junho de 2001. Em Cultura/Crítica Teatro.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Revisão e prefácio de Homero Pires; notas biobibliográficas de Fernando Sales. 6. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.

SILVA, Dagoberto. Magia e rituais de Umbanda. Curitiba: A.M. Cavalcante & Cia Ltda, [196-?].

VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.  

 

Sites pesquisados:

 

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<http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/>. Acesso em: 04 set. de 2010.

 

NOTAS:

[1] O Giramundo Teatro de Bonecos foi fundado no final da década de 1960, em Lagoa Santa, cidade da região metropolitana de Belo Borizonte. Pelas mãos firmes que seguram os remos, pelas bússolas e pelos astrolábios mágicos dos “remadores”, artistas plásticos e professores da Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG, Álvaro Apocalypse (nascido em 1937 e falecido em 2003), Tereza  Apocalypse (nascida em 1936 e falecida também em 2003) e Maria Vivacqua Martins (nascida em 1945), a Madu, o grupo começou a girar e navegar, primeiro por Minas Gerais, depois pelo Brasil e, por fim, pelo mundo.

[2] “A organização étnica africana não é esquecida, mas não é mais o âmbito que serve de parâmetro para a organização social. O indivíduo e sua posição social têm aqui um papel mais importante que a pertença a um determinado grupo étnico. Em termos de religião, há aqui uma transferência de responsabilidade menos apoiada no grupo e mais acentuada para o indivíduo. [Logo], o culto aos Orixás, parte muito importante e ponto de apoio das religiões afrobrasileiras, não perdeu nesta transferência da África para o Brasil a sua importância e centralidade, mas perderam-se partes do culto”. (BERKENBROCK, 1999, p. 112.).

[3] Câmara Cascudo (2000, p. 606), diz que se conhece o iorubano ou nagô “como todo negro da Costa dos Escravos que falava ou entendia o ioruba. […] Abundantemente exportados para o Brasil, os nagôs tiveram prestigiosa influência social e religiosa entre o povo mestiço, conservando, com os processos de aculturação, seus mitos e tradições sacras. Localizados, em maior porção, na Bahia […], [é] o grupo negro mais conhecido em seu complexo social vivo. A persistência nagô determina o candomblé, macumba, catimbó, xangôs, sinônimo do primeiro vocábulo, reunião do seu cerimonial”.

[4] Nas citações extraídas de Verger (2000), optei por manter a grafia dos vocábulos iorubás conforme citado por ele. Assim, nos depararemos com certas palavras escritas nessa língua.

[5] Segundo Morais (2006), esse grupo pertence à nação angola, de tradição banta, cujos fiéis praticam o candomblé e também são adeptos da umbanda, religião afrobrasileira igualmente sincrética: com elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista e das culturas indígenas e africanas. Um dos elementos comuns a essas duas religiões, dentre vários, é o culto aos orixás. E uma das diferenças está na forma de rezar. No candomblé, há um predomínio de expressões africanas. Na umbanda, as cantigas são cantadas em português.

[6] “Autoridade máxima de um terreiro (quando se trata de um homem) e dirigente do culto no Candomblé”. (BERKENBROCK, op. cit., p. 440).

[7] Ialorixá é a mesma coisa que mãe-de-santo. Todavia, no espetáculo do Giramundo, o nome Ialorixá, além de se referir à função exercida por determinada pessoa, também indica o nome de uma personagem.

[8] APOCALYPSE, Álvaro. In: MARTINS, 2001. Magazine – Fim de semana. p. 13.

[9] PAULO, 2001. Em Cultura/Crítica Teatro.

[10] NETO, Henrique. In: MARTINS, Alexandra, 2001. Magazine.

[11] APOCALYPSE, Álvaro. In: CARLOS, Helvécio, 2001. Em Cultura.

[12] Informação disponível em: <http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/>. Acesso em: 04 set. de 2010.

[13] “Nos princípios”. Tradução minha realizada por meio de fragmentos encontrados no dicionário Yoruba – Português. Disponível em: <http://www.baradoloju.xpg.com.br/dicionario_yp.htm>. Acesso em: 28 de jul. 2010.

[14] Prandi, op. cit., p. 196-198 e 502-506.

[15] Oriki (saudação ou evocação) da umbanda para Oxalá: “Êpa, papai Oxalá”. Tradução minha a partir de SILVA (196-, p. 40). O oriki citado encontra-se em: APOCALYPSE, A. (2010, p. 1).

[16] APOCALYPSE, A., 2010, p. 2.

[17] Ibid, p. 3.

[18] Ibid, p. 5.

[19] Ibid, loc. cit. Itálicos meus.

[20] Ibid, p. 7.

[21] Prandi, op. cit., p. 567.

[22] Prandi (op. cit., p. 566) menciona o nome Iaô (iyawó): “esposa jovem; filha ou filho-de-santo; grau inferior da carreira iniciática dos que entram em transe de orixá”. Contudo, o nome Iawô, no texto Os Orixás, foi dado por Álvaro. Assim, parecem existir pequenas contradições nesse texto: enquanto na cena IV é mencionado que os humanos criados por Oxalá são Okurin (homem) e Obinrin (mulher), na cena XXVI o casal que é juntado por Exu é Okurin e Iawô.

[23] “Vassoura-cetro de Omulu” (ibid., p.570).

[24] Apocalypse, A., op. cit., p. 8.

[25] Prandi (2001) aponta vários nomes para Exu: Exu Bará, Exu Eleguá, Exu Legbá e Exu Elegbará. Esse fato é devido à representação deste orixá em mitos de diversas nações africanas: como, por exemplo, as nagôs e jejês.

[26] Prandi, op. cit., p. 75.

[27] Ibid., p. 48.

[28] Apocalypse, A., op. cit., p. 17.

[29]  Ibid., p. 18.

[30] Prandi, op. cit., p. 89-91.

[31] Camarinha ou roncó: “Termo pelo qual se designa o aposento destinado à reclusão dos neófitos durante o processo de iniciação. É conhecido também como aliaxé ou ariaxé, […] ou ainda axé” (CARVALHO, op. cit., p. 238.).

[32] Segundo Berkenbrock (op. cit., p. 440), bori quer dizer, literalmente: “dar de comer à cabeça. É o segundo rito no processo de iniciação no Candomblé e tem por objetivo fortalecer a cabeça do iniciando para receber o Orixá”.

[33] Saudação.

[34] Na umbanda, “o ‘amaci’ é uma infusão de ervas maceradas em água, cujo preparo obedece a preceitos rigorosos, destinada à lavagem periódica da cabeça dos médiuns”. (SILVA, op. cit., p. 66.).

[35] Ibid, p. 570.

[36] Ibid., loc. cit.

[37] Apocalypse, A., op. cit., p. 23.

[38] Fio-de-contas – “Nome dado, no Candomblé, aos colares rituais, nas cores dos orixás. Quando o colar tem 16 fios é dito dilogum, sendo arrematado com uma “firma” (conta cilíndrica) do orixá”. (CARVALHO, op. cit., p. 216).

[39] Prandi, op. cit., p. 273 e 332.

[40] “Para os Yoruba a morte não é o fim, ou melhor, a morte não representa uma extinção eterna de vida humana. Acredita-se que há vida após a morte e que [os] membros que partiram, foram para descansar. Quando os antepassados quiserem voltar para ilé ayé – o mundo, eles podem reencarnar [na] mesma família”. (ATINÚKÉ: A Cerimônia de Batismo, Nomes Yorùbá e a Concepção da Morte na Cultura Yorùbá. (Artigo). Belo Horizonte: Instituto de Arte e Cultura Yorùbá, 2009, p. 12. Disponível em: <http://www.institutoyoruba.com&gt; Acesso em: 11 ago. 2010. Para acessar este artigo é preciso fazer um cadastro no site).

[41] Apocalypse, A., op. cit., p. 26.

[42] Ibid., p. 27.

[43] Ibid., p. 28.

[44] Ibid., p. 29.

[45] Prandi, op. cit., p. 567.

[46] Ibid., p. 114, 120, 136, 137 e 140.

Um Baú de Fundo Fundo: e esse baú nunca acaba?

Um Baú de Fundo Fundo
Um Baú de Fundo Fundo – Foto de divulgação

ARTIGO PUBLICADO, EM OUTUBRO DE 2013, NA BELÍSSIMA REVISTA PITÁGORAS 500 (UNICAMP): Disponível em: <http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/view/149>

 

 Resumo: Neste artigo, analiso as representações culturais presentes no texto e nos personagens de Um Baú de Fundo Fundo, espetáculo criado em 1974 pelo Giramundo Teatro de Bonecos, de Belo Horizonte. Para tanto, observo os conceitos de cultura, mais especificamente culturas no plural, e de representação.

Palavras-chave: ditadura militar; lendas e capiais.

 

Um palhaço chamado Libório chega para fazer uma apresentação em Pedra Furada, uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. No entanto, ele é proibido pelo Delegado Godofredo de se apresentar, pois, nesta cidadezinha, não se podia cantar, não se podia ler poesia, não se podia fazer coisa nenhuma. Além de delegar, Godofredo também acumulava os principais cargos públicos da cidade, criando uma ditadura que impedia a liberdade de expressão e coibia o direito de ir e vir da população. Onde se ia, o Guarda, braço direito de Godofredo, estava a postos para fazer cumprir o regulamento. Todos os lugares eram vigiados, dia e noite. Mas, no fundo de um baú de fundo fundo, uma espécie de caixa de surpresas e de magia, trazida pelo palhaço Libório, encontravam-se as ideias e manifestações artístico-culturais que, enfim, abririam a cabeça do ditador “pedrafuradense”. Esta é a história que nos conta Álvaro Apocalypse (1937-2003) e Madu (Maria do Carmo Vivacqua Martins), do Giramundo Teatro de Bonecos, de Belo Horizonte, com a peça Um Baú de Fundo Fundo (1975).

Quando Madu, Álvaro e Tereza Apocalypse (1936-2003) voltaram da França — onde apresentaram As Aventuras do Reino Negro no I Festival Mondial des Théâtres de Marionnettes de Charleville-Mézières (1972) —, resolveram mergulhar pela primeira vez na temática das culturas mineiras. Assim, montaram o espetáculo Saci-Pererê, em 1973. Todavia, foi em 1974 e 1975, durante a montagem de Um Baú de Fundo Fundo (ou Baú, como é carinhosamente chamado), que eles realmente aprofundaram a temática.

O Baú foi a quarta montagem do Giramundo, estreando no dia 05 de junho de 1975, no Teatro Marília de Belo Horizonte. Como novidade, primeiramente, um horário de estreia incomum para apresentações de teatro de bonecos, pelo menos naquela época: às 21 horas. Isso denotou, antes mesmo do El Retablo de Maese Pedro (1976), o interesse do grupo em montar espetáculos teatrais também para o público adulto.

Para Álvaro Apocalypse, autor do texto junto com Madu, e diretor da montagem,

O Baú foi um acontecimento na história do Giramundo. (…) No Baú de Fundo Fundo, aproveitamos principalmente as canções do grupo de serestas João Chaves, de Montes Claros, e um texto retirado dos livros do escritor Saulo Martins. Tem uma velhinha muito interessante, avançadíssima, que discutia muito. De repente ela parava a peça, e falava assim: ‘Receita! Pegue meio quilo de farinha… bata bem…’ e dava a receita de um bolo sem quê nem pra quê. (….)” (APOCALYPSE, A[1]. Depoimento sobre o espetáculo. Fonte: <http://www.giramundo.org/teatro/ bau.htm>. Acesso em 18 mar. de 2010).  

Essa receita dada pela vovó, que na realidade é de um peixe e não de um bolo como afirma Apocalypse, alude às receitas de bolo que eram publicadas, no período da ditadura brasileira, em alguns jornais, como, por exemplo, o Estado de São Paulo, para dar ciência ao leitor de que a matéria que deveria estar naquele espaço havia sido censurada.

Por fim, se comparadas com Cobra Norato (1979) — a obra mais importante e renomada do grupo mineiro —, são poucas as informações sobre o Um Baú de Fundo Fundo, espetáculo mais modesto, porém, mineiramente gostoso, divertido e inteligente. Entretanto, encontrei algumas preciosidades nos fundos dos baús do Museu Giramundo, somadas às entrevistas realizadas em Belo Horizonte e em Lagoa Santa, Minas Gerais, e a certas notícias de jornal, que me auxiliaram a contar essa breve história.

  1. UM BAÚ PODE ESCONDER MUITOS SEGREDOS: O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO EM RELEVO

VELHA: (…) Moço! Quer fazer o favor de me dizer o que é que tem dentro deste baú?

LIBÓRIO: Han? Ah… tem muitas coisas…

VELHA: Que coisa? Conta!

LIBÓRIO: Tem música, tem dança, cantigas, estórias… (…) O segredo do baú é que ele não tem fim… quase ninguém sabe, mas ele não tem fim. É como a nossa cabeça, onde podemos guardar na lembrança os dias, as coisas e as pessoas que nos fazem felizes. (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p.11 e 21.).

Esse baú pode ser uma caixa de música, de sonho, de imaginação… Ou uma caixa de brinquedos que guarda as principais recordações da nossa infância. Como um berço, ele aquece, embala e nina os bonecos pequeninos que confundem realidade e ficção, passado e presente. O Baú do Giramundo não tem fundo e nele cabe tudo o que quisermos e o que imaginarmos. Enfim, “tirar (…) do baú as lembranças encantadas, histórias, lendas, cantigas que a cidade grande faz esquecer é a proposta de Libório, o boneco que comanda o espetáculo Um Baú de Fundo Fundo”. (O ESTADO de Minas, 11 de jun. de 1975, p. 04).

Contudo, fazer ver os índices, os sinais e as representações que se encontram entranhados nesse espetáculo é um desejo meu, artista-pesquisador-brincante que joga com as palavras e com as ideias. Por isso, trago à tona o conceito de representação, termo que Pesavento (2004) disse configurar uma mudança epistemológica para a História e reorientar a postura do historiador.

Primeiramente, vejamos o que Chartier (2002, p.20), importante historiador cultural francês, relata sobre esse termo:

(…) As definições antigas do termo (…) manifestam a tensão entre duas famílias de sentidos: por um lado, a representação dando a ver uma coisa ausente, o que se supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro, a representação como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou alguém. No primeiro sentido, a representação é instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma “imagem” capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é. (…).

A este primeiro sentido ― “aquilo que representa e aquilo que é representado”―, pode-se acrescentar alguns exemplos, como a fotografia de um boneco/personagem do Giramundo e o próprio boneco/personagem de madeira construído pelo grupo. A imagem fotográfica de um boneco não é, em si, o boneco, mas está no lugar dele, representando-o. Já, pensando em termos de representação teatral, o boneco/personagem (o Delegado Godofredo, do Baú, por exemplo), mesmo não sendo a figuração da realidade, contém uma parte simbólica desta realidade. Assim, essa figuração pode ser apreendida como a representação contextual de uma época ― a ditadura brasileira ― e, do mesmo modo, como uma ideia daqueles sujeitos opressores, ferramentas sistemáticas do período ditatorial no Brasil.

Continuando com o conceito de Chartier (2002, p. 20-21), ele diz também que algumas imagens podem ser pensadas num registro diferente:

(…) o da relação simbólica que, para Furetière, consiste na “representação de um pouco de moral através das imagens ou das propriedades das coisas naturais (…) O leão é o símbolo do poder; a esfera, o da inconstância; o pelicano, o do amor paternal”.

Transpondo essa relação simbólica para o universo representacional artístico e “irreal” dos bonecos do Giramundo, e contrapondo com o simbolismo do Delegado Godofredo, podemos dizer que o palhaço Libório, no espetáculo Baú, é o portador do discurso da liberdade, ainda mais por possuir em sua cabeça, morando em seu chapéu, um passarinho que vive e canta livremente.

Para finalizar esta abordagem de Chartier (2002, p. 17), importa mencionar a função das representações enquanto “lutas de representações [que] têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio”.

Ainda sobre a categoria representação, pode-se dizer, num sentido mais abrangente, que o homem produz representações para conferir sentido ao real. Ou melhor, indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio de representações que constroem sobre a realidade. E essas representações, de acordo com Pesavento (2004, p. 39-43), podem ser

expressas por normas, instituições, discursos, imagens e ritos (…). Representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência. A ideia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença. (…) A representação não é cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele. [Por fim], a construção do sentido [das representações] é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas [culturais, artísticas, etc.]”.

Todavia, as representações não pressupõem verdades absolutas, mas se enquadram num estatuto de verossimilhança e credibilidade, ou seja, são baseadas no real ou até mesmo num real imaginado. Por isso tornam-se críveis. E, por assim dizer, são carregadas de parcelas de verdades, muitas vezes ocultas.

Consequentemente, desde a antiguidade, o homem, cada qual em seu tempo, vem produzindo representações (imagens, estatuárias, pinturas, máscaras, objetos, bonecos, músicas, danças, teatros, discursos, personagens, textos, fotografias, vídeos, etc.) para expressar a si próprio, as suas crenças, os seus sonhos e o mundo ao qual pertence. Assim, a representação é feita do homem para o homem. Nela está contida uma ideia de homem e uma noção que temos de nós mesmos, da natureza e da vida. Logo, ao representarmos imageticamente alguma coisa, estamos fazendo isso para os indivíduos que se assemelham a nós.

1.1 REPRESENTAÇÕES CULTURAIS EM UM BAÚ DE FUNDO FUNDO: MINEIROS, SUAS MINEIRICES E MINEIRIDADES

Antes de discutir as representações culturais em Um Baú de Fundo Fundo, trago a categoria conceitual culturas. Contudo, não farei uma divisão do conceito em camadas, porque, de acordo com Chartier (2002), é preciso rever os usos clássicos da noção de cultura popular. Segundo ele, essa ideia não mais parece resistir a três dúvidas fundamentais:

Antes de mais nada, deixou de ser sustentável pretender estabelecer correspondências estritas entre [dicotomias] culturais e hierarquias sociais, relacionamentos simples entre objetos ou formas culturais particulares e grupos sociais específicos. Pelo contrário, o que é necessário reconhecer são as circulações fluidas, as práticas partilhadas que atravessam os horizontes sociais. (…) Por outro lado, também não parece ser possível identificar a absoluta diferença e a radical especificidade da cultura popular a partir de textos, de crenças, de códigos que lhe seriam próprios. Todos os materiais portadores das práticas e dos pensamentos da maioria são sempre mistos, combinando formas e motivos, invenção e tradições, cultura letrada e base folclórica. Por fim, a oposição macroscópica entre popular e letrado perdeu a sua pertinência. (CHARTIER, 2002, p. 134).

            De outro modo, o que esse historiador parece dizer é que o conceito de cultura, ainda no século XXI, continua sendo dividido verticalmente e relacionado sobremaneira às classes sociais e organizações de grupo. Assim, tem-se: cultura erudita (da elite, principalmente financeira e intelectual), cultura popular (do povo “letrado”), folclore (do povo “iletrado”) e por fim, cultura tradicional (dos indígenas, dos ciganos, dos agricultores e pescadores, etc.). Como as culturas são móveis, atravessam fronteiras, estão dadas também nas diferenças, misturam-se, chocam-se, antagonizam-se, superpõem-se ― “em ritmos que às vezes são lentos e outras vezes são velozes, de maneira harmoniosa e/ou conflituosa, dependendo de épocas e de regiões, dos protagonistas e de seus objetivos” (PAIVA, 2001, p. 32) ―, não podemos mais lidar com essas divisões arcaizantes.

Igualmente para Canclini (2008, p. 19), essa oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo (no sentido de cultura e de meios de comunicação), não funciona. Para ele,

É necessário demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente: a história da arte e a literatura que se ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva. Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente. (Grifos do autor).

Desta feita, o termo folclore só será utilizado neste artigo no sentido empregado pelo folclorista Luis da Câmara Cascudo e pelos fundadores do Giramundo: Álvaro Apocalypse e Madu. Ademais, utilizarei a expressão “popular” no sentido de “do, ou próprio do povo, ou feito por ele” (Ferreira, 2008, p. 642). Sendo que, ainda em acordo com Ferreira, entendo por povo o conjunto de indivíduos que, geralmente, falam a mesma língua, estão situados num mesmo território, têm hábitos e costumes parecidos, além de possuírem uma história e práticas comuns.

Mas, afinal, qual seria o conceito de culturas?

Primeiramente, parto do princípio de que as culturas estão vivas, em constantes movimentos, e que continuamente inventam novas expressões e linguagens. Por esse motivo, creio que o conceito sofreu transformações ao longo dos anos — desde o final do século XIX, por antropólogos, historiadores culturais, sociólogos, filósofos, literatos, artistas etc. — e tornou-se polêmico, amplo, difícil e impreciso. Conforme Burity (2002), os pesquisadores ligados aos estudos culturais iniciaram um diálogo com antropólogos e sociólogos, no sentido de construir uma nova ideia de cultura. Destarte,

(…) boa parte deles chama atenção para os perigos da utilização do termo cultura no singular, enfatizando a impossibilidade de unir de forma harmônica e generalizante as manifestações culturais das várias esferas da sociedade. Cultura deveria, portanto, ser um termo empregado no plural, já que não se constitui num complexo unificado coerente, mas sim, num conjunto de “significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados”, que são construídos socialmente, variando, portanto, de grupo para grupo e de uma época a outra. (BURITY, 2002, p. 15).

 

Desse modo, pelo menos no meu discurso, não mais se notará a utilização da palavra cultura, mas sim, culturas.

Pelo que parece, a palavra foi cunhada em uma sociedade basicamente agrícola e origina-se de colere: cultivar, habitar, criar e preservar. Na sociedade romana, o termo associava-se ao cuidado da terra, referindo-se ao trato do homem com a natureza.

Para o historiador Antônio Rodrigues, a ideia de cultura pode ser apreendida “como resultado das simbolizações que os homens fazem, em tempos e espaços particulares, de suas experiências de viver e que atribuem, nesse movimento, sentidos e significados às coisas que estão no mundo” (In: PAIVA & MOREIRA, 1996, p. 59).

Por fim, parafraseando o poeta e filósofo britânico Eliot (2005) — mas tentando não ser tão tradicional, eurocentrista e elitista como ele — o termo culturas incluiria as atividades, interesses e manifestações (espirituais, intelectuais, políticas, sociais, etc.) características de um povo. Exemplos: as linguagens e expressões linguísticas; as crenças religiosas; as festas com ou sem animais (como as cavalgadas, vaquejadas, folguedos, etc.); as lendárias e mitologias (Mãe d’água, Mulher de Algodão, Cobra Norato, Saci-pererê, etc.); as arquiteturas das cidades (como o barroco do século XVI e as casas coloniais mineiras); os festivais e manifestações artísticas (teatros, danças, literaturas, circos, músicas, pinturas, esculturas, desenhos, fotografias, cinemas, vídeos, artesanatos, etc.); os campeonatos esportivos; as datas comemorativas (cívicas, históricas, sociais, etc.); os pratos típicos e os pratos cotidianos (feijoada, feijão tropeiro, tutu à mineira, arroz carreteiro, frango com quiabo, arroz com pequi, pato ao tucupi, buchada de bode, peixe amanteigado ao forno da vovó, etc.), os jogos de baralhos no boteco ou nas praças das cidades; as brincadeiras e jogos infantis; os provérbios e as adivinhações; e daí por diante.

Dadas essas questões acerca do termo culturas, retomo agora a discussão sobre algumas representações das culturas mineiras em Um Baú de Fundo Fundo. Aliás, essas representações serão chamadas também de mineirices e mineiridades. Sobre a mineirice, “Jânio Quadros, no seu ‘Novo Dicionário Prático da Língua Portuguesa’ de 1977 (…), coloca que ‘ser um bom mineiro’ é se mostrar prudente, desconfiado, astuto, mas aparentemente ingênuo”.[2] Já a mineiridade, pressupõe “a maneira especial de pensar, sentir e agir da população das ‘Alterosas’”[3] (MEGALE, 2003, p. 152).

Começo então pelo texto do espetáculo.

 

1.1.1 Texto, censuras e cesuras: na superfície, na “alma” e no fundo do Baú

Para a elaboração desse texto, que tem várias versões disponíveis no Museu Giramundo, Madu disse que ela e Álvaro partiram das pesquisas que fizeram acerca das culturas mineiras e brasileiras:

Nós conhecíamos um folclorista, que nos deu vários livros e histórias que ele recolhia. Então nos baseamos nisso. Porque você tem que buscar as histórias que existem no imaginário, né? Mas alguém tem que escrevê-las. Aí usamos as linguagens da Iara (…). Começamos a procurar alguns desses esquetes e fizemos, por exemplo, o Pescador do São Francisco. Procurávamos por situações brasileiras e por algumas coisas do imaginário popular. (MARTINS, 2009, entrevista).

Diferentemente do que Madu disse, na cena do Pescador nota-se a figuração da lenda da Mãe d’água e não da Iara.

Das inúmeras cópias de Um Baú de Fundo Fundo encontradas, foi escolhida uma datilografada que contém a marca de um carimbo com uma assinatura de um censor da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Departamento de Polícia Federal (DPF) do Estado de Minas Gerais. Além disso, essa cópia traz, em diversas páginas, marcações e indicações de cortes feitos pela DCDP mineira. Creio que essa intervenção da censura se deu dias antes da estreia do espetáculo, que ocorreu em junho de 1975. De acordo com Madu, em conversa telefônica, nessa época era muito comum a apresentação de espetáculos exclusivamente para a avaliação dos censores, dois ou três dias antes da estreia. Contudo, é difícil precisar corretamente o dia da ação da censura haja vista o carimbo da DPF não conter nenhuma menção à data. Apesar dos cortes, Madu disse que o grupo fez o espetáculo na íntegra.

Um Baú de Fundo Fundo é um texto politicamente ativo, pois os autores fazem uma crítica muito inteligente e divertida aos atentados contra a liberdade de expressão e de pensamento que ocorriam durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Os personagens Libório, Delegado e Guarda são bons exemplos disso. Já no início do texto, como num interrogatório policial, o Delegado Godofredo passa em revista, junto ao Guarda, a situação da cidadezinha Pedra Furada:

GUARDA: [Imitando um trem de ferro] Tudo em ordem, tudo em paz, tudo em ordem, tudo em paz, tudo em ordem, tudo em paz… (entra o Delegado). (…).

DELEGADO: (…) Como está a cidade?

GUARDA: Tudo em ordem, tudo em paz (…).

DELEGADO: E o povo da cidade?

GUARDA: Em casa, conforme o regulamento.

DELEGADO: (…) Ninguém cantou?

GUARDA: Não ouvi.

DELEGADO: Bem. Uma cidade como deve ser: todo mundo em casa, sem meninos nos muros, nada de cantorias, versos e outras maneiras de perder tempo que os poetas inventaram. Um dia de trabalho, uma noite de sono. Eis o nosso lema, soldado. (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 01).

O Baú foi escrito durante a ditadura do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), que governou o Brasil entre 1969 e 1974. Contudo, o espetáculo foi estreado quando da presidência do general Ernesto Geisel (1907-1996), que ocorreu entre 1974 e 1979.

1.1.2 Falares e regionalismos: adivinhas, provérbios, cantigas, causos e receitas de mineiros

Além desses ideais de democracia, no texto Um Baú de Fundo Fundo são figuradas ainda inúmeras mineirices e mineiridades, principalmente o modo sonoro de falar dos mineiros, tanto os do interior quanto os da capital do Estado.

Para começar, a utilização de diminutivos, que pode ser percebida em alguns nomes de personagens: Godofredo vira Godô – que faz confundir com o Godot de Samuel Beckett; José Adolfo transforma-se em Zé Adolfo e depois unicamente em ; Maria Cecília muda para Cecília e também para ; e finalmente, José Legalidade torna-se Zé Legalidade. Esse último nome pode ser também um apelido que expressaria a moralidade ou a imoralidade do , personagem que representaria um tipo malandro.

Por sua vez, dadas personagens não são chamadas pelo nome, mas sim por metonímias: sejam elas funções que as figuras exercem; ou então por algum tipo de objeto que usam ou materiais que são constituídos; ou ainda por detalhes que as caracterizam: o fantasma é Pano-de-prato; o policial chama-se Guarda; temos também 3 meninos, Vovó, Sanfoneiro, Moça das Fitas, Sambista (Zé Legalidade), Baiana, Pescador, Mãe d’água,  5 congadeiros, 2 pererecas, Passarinho e peixes.[4]

As supressões e diminutivos também ocorrem nas falas de certas personagens. Estas caracterizariam parte do imenso repertório das expressões sociolinguísticas dos mineiros. Vejamos então alguns exemplos dessas supressões e diminutivos, e também de certos sotaques, expressões e modos de dizer típicos da população das “Alterosas”:

LIBÓRIO: (…) Nesta cidade não tem ninguém. Que cidade esquesita… tudo parado. (dirige-se à casa mais próxima). Ó, de casa!

VOZ: Ó de fora!

LIBÓRIO: Vem cá.

VOZ: Não é hora!

LIBÓRIO: (noutra parte) Ó, de casa!

VOZ II: (…) Tá doido? Não.

LIBÓRIO: Tá acordado?

VOZ II: Não.

LIBÓRIO: Ó, ocê quer saber de uma coisa?

VOZ II: Não.

(…) PESCADOR: Eta pesqueiro bão!… É água só e água pura. Se eu fosse peixe, nem duvidava: ia morar aqui nesta gostosura. A cambada de peixe deve de estar lá embaixo, nadando pra-lá e pra-cá e imaginando: hoje estou doido para comer uma minhoquinha. (…) Mas que desaforo!  Até peixe está abusando dos pobres. Enjeita até minhoca. (…) E os meninos lá de casa tão com a barriga vazia. Vou rezar. Agarrar com os Santos e pedi pra mode eles me dar um peixe bem gordo. (reza).  Meu Santantone, me dá um peixe pra mios fiim cumê, apois eles inda num quebraro jejum! (…). (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 18. Grifos meus).

Na cena em que Zé Adolfo e Cecília namoram num banco da praça da cidade e brincam de adivinhas (“o que é o que é?”), percebo a presença de regionalismos linguísticos (em itálico), dois provérbios e uma réplica (em negrito), e também de uma cantiga de roda (sublinhado):

CÊ: (…) Você viu meu vestido novo?

ZÉ: Não. Cadê?

CÊ: Aqui, olha, bobão. Não enxerga nada. Só quer namorar.

ZÉ: Quero mesmo. Vem cá.

CÊ: Sai pra lá! Daí tá bom.

ZÉ: Eh, lasquera. Namoro de longe, amor esconde.

CÊ: O apressado pega o bonde errado.

ZÉ: (…) Tá danado.

: Fui na fonte do tororó, beber água não achei, achei linda morena que no tororó deixei. (senta-se) O que é o que é? Caixinha de bom parecer, não há carapina que saiba fazer?

ZÉ: (…) Amendoim.

CÊ: O que é, o que é? Joga pra cima é prata, cai no chão é ouro?

ZÉ: (…) Ovo. (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 15).

Outra cantiga de roda que aparece no texto é a Ciranda Cirandinha: “CRIANÇAS: Ciranda Cirandinha / Vamos todos cirandar / Vamos dar a meia volta / volta e meia vamos dar. (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 11).

Por fim, uma personagem que representa bem os contadores de “causos” mineiros é a Vovó, que também é adepta do didatismo e da receita caseira. Como vimos, esta é uma crítica feita por Álvaro e pela Madu à censura dos jornais.

VELHA: (…) Aqui na vila tinha um moço bonito, de chapeuzinho de palha meio de banda, lenço xadrez no pescoço, uma simpatia. (…) Ele tocava sanfona. Juntava um povão de gente. (…) Agora vou ler pra vocês uma linda história. Pois era uma vez… (…) Era uma vez um barranqueiro… (…) Barranqueiro é o homem que mora na beira do Rio São Francisco e vive de pesca. Era um pescador muito pobre e empencado de filhos, que um dia pegou o barco e saiu para pescar. (…) Esta estória do pescador sempre me dá apetite. Receita: pegue o peixe, tire a escama e lave bem. Pegue 30 gramas de manteiga, salsa bem picadinha e alho socado. Faça uma pasta bem batidinha.  (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 11,12, 17 e 20.).

1.1.3  Personagens: lenda, fantasma e capiais − Mãe d’Água: lenda ou mito?

Mito não é o mesmo que lenda. Muitos autores confundem esses termos, trazendo-os, erroneamente, como sinônimos. Para Megale (2003), as lendas são inspiradas em fatos históricos (ou relacionam-se a eles), transformados pelo imaginário social, e referem-se geralmente a fatos reais, em torno dos quais a imaginação cria uma série de coisas irreais e até inverossímeis. Já para Câmara Cascudo (2000) a lenda é localizável no espaço e no tempo e está ligada a um local ou à vida de um herói. Sendo assim, diferentemente da lenda, o mito atingiria uma área geográfica mais ampla e não seria necessariamente fixado no tempo e no espaço. Logo, temporal e espacialmente, as lendas de Barba Ruiva, de Santo Antônio, dos cangaceiros e dos tesouros escondidos, diferenciam-se dos mitos de Édipo, de Aquiles e de Medusa.

Novamente para Megale (2003), os mitos seriam narrativas fantásticas ou fabulosas, relacionadas a determinada cultura, crença ou religião, transmitidos por gerações dentro de uma estrutura tradicional. Eles teriam por finalidade fornecer uma explicação plausível para a origem e para o motivo das coisas, como para os fenômenos naturais e cósmicos: ciclos das estações do ano, do dia e da noite, da vegetação, da vida e da morte … e para os fenômenos históricos. Portanto, encontramos mitos relacionados às origens do homem, da flora e da fauna; mitos de destruição; mitos aquáticos, zoológicos e florestais; mitos de heróis e de salvadores; e assim por diante. Alguns deles, como o do Saci-Pererê,[5] que é conhecido no nosso país e em outras regiões do mundo, têm funções morais e didáticas.

Um conjunto de mitos e dos seus referidos estudos formam as mitologias; e um conjunto de lendas forma um lendário. Assim, o lendário brasileiro seria originário da mistura de lendas indígenas, com lendas de origem negra e daquelas provenientes da Península Ibérica.

Veja-se o exemplo da lenda da Mãe d’Água, que seria resultante da fusão da Iara indígena, da Iemanjá africana e da Sereia europeia. Segundo Câmara Cascudo (2000, p. 532), “em todo o Brasil conhece-se por mãe-d’água [sic] a sereia europeia, alva, loura, meia [sic] peixe, cantando para atrair o enamorado que morre afogado querendo acompanhá-la para bodas no fundo das águas”. Ao contrário, no Baú, o Giramundo representa essa lenda com os cabelos verdes, talvez na tentativa de aproximar a sua iconografia de uma monstruosa serpente aquática esverdeada, que seria uma espécie de mãe d’água amazônica.

Também de maneira diversa da Sereia europeia, a Mãe d’água do Baú não afoga o enamorado, que no caso do Giramundo seria o Barranqueiro. Para encerrar, observo uma passagem do texto que ilustra isso, na qual o pescador, à espera do peixe, tira um cochilo e sonha com a rainha das águas doces:

PESCADOR: (…) Por que que gente não pode morar no fundo do rio?

VOZ: O fundo do rio tem dono, é o reino da mãe d’água. Cuidado, pescador, lá vem ela. Mãe d’água e seu canto de encantar. (…) Cuidado, barranqueiro, mãe d’água te encanta e te prende pra sempre no fundo do rio. Te fecha no seu castelo de pedra até você criar escamas e virar peixe. Aí, canoeiro, pescador vai te pescar. (…) Acorda, canoeiro! Acorda! (…) (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 19).

1.1.3.2 À base de remendos, nasce um fantasma e vários capiais

Pano-de-prato é um “pobre” e remendado fantasma do interior de Minas. Pela ótica do Giramundo, é um fantasma desacreditado, pois não consegue assustar mais ninguém. Também é desajeitado e ingênuo, porém, segundo o palhaço Libório, é divertido e simpático. Esse “fantasmão” adora assombrar os capiais de Pedra Furada, principalmente o medroso casal de enamorados caipiras Cecília e Zé Adolfo.

Para Megale (2003), o ato de se acreditar em fantasmas, duendes, bruxas, e assim por diante, faz parte da manifestação do folclore espiritual de um povo: são as crendices.

Assim, o surgimento abrupto de um fantasma pode causar assombração num indivíduo. Câmara Cascudo (2000, p. 112), diz que assombração é o “terror pelo encontro com entes fantásticos, aparição de espectros (…); casa mal-assombrada, onde aparecem almas de outro mundo”. Desta feita, o casal de caipiras, quando tranquilamente namorava e brincava de adivinhas num banco da praça da cidade, foi literalmente assombrado pelo Pano-de-prato. Logo, como resultado do grande susto, o casal fica com as vozes embargadas e tremendo de medo. Zé, covardemente, foge desesperado. Cecília, atordoada, sem saber o que fazer e com as suas tranças arrepiadas pelo seu ator-manipulador, corre sem rumos para ambos os lados do cenário. Isso até o final da cena, quando as luzes se apagam e fazem com que Cecília desapareça no escuro.

Além do fantasma Pano-de-prato, existem mais cinco bonecos/personagens que representam os capiais (ou caipiras) mineiros: Barranqueiro/Pescador, Zé Adolfo, Maria Cecília, Moça-de-Fitas e Sanfoneiro. Em suma, o nome caipira, conforme Vilela (2009, p. 69), vem “do tupi caapira, que quer dizer montador ou capinador de matto [sic]. [Por conseguinte, os caipiras mineiros], em expressiva parte, [têm suas raízes nos] protagonistas do bandeirismo paulista [do] século XVII”.

Já para Câmara Cascudo (2000, p. 223), o caipira é o “homem ou mulher que não mora na povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público. [É o] habitante do interior, canhestro e tímido, desajeitado, mas sonso”. Esta visão de Câmara Cascudo sobre o caipira se aproxima bastante do Jeca Tatu de Monteiro Lobato (1882-1948).

Por sua vez, as representações caipirescas do Giramundo distanciar-se-iam dos pensamentos cascudianos e lobatenses e aproximar-se-iam do contexto representacional de Almeida Júnior, que em suas telas de temáticas caipiras figurava cenas típicas do ambiente rural e os costumes das pessoas que viviam no campo. Desse modo, além do linguajar e do lugar de moradia, características comuns identificam os principais caipiras do Baú: a indumentária dos homens é simples, apresentando remendos, e indicam os seus ofícios: a lida na roça, seja ela o cultivo de alimentos ou até mesmo a pesca. O chapéu de palha dos senhores, incluindo-se o Sanfoneiro, é um item obrigatório e possui dupla função: serve tanto para proteger o rosto (do sol, dos insetos, de fezes de aves…) quanto como componente integrante do figurino nos momentos de lazer. Por outro lado, a utilização de chitas, tecido de algodão estampado a cores, e de fitas coloridas, por parte das senhoras e senhoritas, é recorrente, principalmente durante as festas e encontros amorosos.

Enfim, a utilização de múltiplas cores (principalmente as quentes) nos figurinos, cenários e adereços de Um Baú de Fundo Fundo faz deste um espetáculo alegre, divertido, colorido, atraente aos olhos das crianças e dos adultos e um notável representante dos tons das culturas de Minas Gerais.

           

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante os seus mais de 40 anos de existência e de atividades, o Giramundo montou 35 espetáculos, participou de inúmeros festivais de teatro e de exposições, tanto no Brasil, quanto no exterior, e também ministrou variados cursos e oficinas. Por isso, dentre outros motivos, tornou-se uma importante instituição artístico-cultural e educativa, formada pelo eixo teatro-museu-escola: Giramundo Teatro de Bonecos, Museu Giramundo e Escola Giramundo. Assim, o grupo mineiro foi reconhecido, em 2005, pelo seu valor cultural significativo e simbólico, conforme o ofício 550/04 da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural da Comarca de Belo Horizonte e da Coordenação do Grupo Especial das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural das Cidades Históricas de Minas Gerais – GEPPC (ID 213.979 – Relatório Cultural Grupo Teatro de Bonecos Giramundo), como Patrimônio Cultural Mineiro com relação aos modos de fazer e pelas formas de expressão cênica. Foi declarado também como Patrimônio Cultural Imaterial em nível nacional, pelo Ofício ou Modo de Fazer Bonecos. Já o museu, que tem mais de 850 bonecos, tornou-se Lugar de Memória. E os bonecos, bens móveis de valor cultural, foram considerados como Patrimônio Cultural Municipal e Estadual de Minas Gerais.

Em relação a Um Baú de Fundo Fundo, também possui significativos valores culturais, simbólicos e materiais. Além disso, são inúmeras as representações culturais presentes no seu texto e nos seus personagens, assim como nas trilhas sonoras, que aqui não foram analisadas.

Resumidamente, neste artigo apresentei os conceitos de representação e culturas no plural, notei — no texto do espetáculo — a figuração escrita e oral do modo de falar (como a utilização de diminutivos e de metonímias), de pensar e de viver típicos das populações de Minas Gerais: as mineirices e mineiridades. Do mesmo modo, percebi, no fundo do Baú, críticas à ditadura militar brasileira e às censuras e cortes impostos ao texto pela DCDP do Departamento de Polícia Federal (DPF) de Minas Gerais. E dentre os principais bonecos/personagens dessa peça observei: uma figura lendária (Mãe d’água), um fantasma (Pano-de-prato), uma contadora de “causos” e de histórias (Vovó), vários caipiras (Pescador, Sanfoneiro, Moça-de-fitas e casal de namorados da pracinha), artistas do cancioneiro popular (Congadeiros), personagens representantes da repressão militar (Delegado e Soldado) e um palhaço que sugere a liberdade de pensamento e de expressão (Libório).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APOCALYPSE, Álvaro. Depoimento sobre o espetáculo Um Baú de Fundo Fundo. Fonte: <http://www.giramundo.org/teatro/ bau.htm>. Acesso em 18 mar. de 2010).

BURITY, Joanildo A. (org.). Cultura e identidade: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

APOCALYPSE, Álvaro; MARTINS, Maria do Carmo Vivacqua. Um Baú de Fundo Fundo: peça para teatro de bonecos (texto datilografado). Giramundo Teatro de Bonecos: Lagoa Santa, 1974.

CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Trad. Maria Manuel a Galhardo. 2. ed. Coleção Memória e Sociedade. Lisboa: DIFEL, Difusão Editorial, 2002.

ELIOT, T. S. Notas para uma definição de cultura. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2005.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 7.ed. Curitiba: Positivo, 2008.

ID 213.979 – Relatório Cultural Grupo Teatro de Bonecos Giramundo. (Documento PDF). Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Urbanismo e Habitação – Grupo Especial das Promotorias de Justiças de Defesa do Patrimônio Cultural das Cidades Históricas de Minas Gerais (CAO-MA/GEPPC). Belo Horizonte: 12 de abril de 2005. 81 p. Disponível em: <http://www.mp.mg.gov.br/portal/ public/interno/arquivo/id/3197>.

 

MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

MARTINS, Maria do Carmo Vivacqua (MADU). Processos criativos, cultura, identidade e nacionalismo em Um Baú de Fundo Fundo e em Cobra Norato. Entrevista oral concedida a Luciano Oliveira. Lagoa Santa, 25 de jul. de 2009. Entrevista não-publicada.

MEGALE, Nilza Botelho. Folclore Brasileiro. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

O ESTADO de Minas. Do baú do Giramundo uma história encantada de artistas e bonecos. Belo Horizonte: 11 de jun. de 1975.

PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

PAIVA, Márcia de (coord.); MOREIRA, Maria Ester (coord.). Cultura. Substantivo Plural: Ciência política, História, Filosofia, Antropologia, Artes, Literatura. Curadoria do ciclo de palestras Luiz Costa Lima – Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil – São Paulo: Ed. 34, 1996.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

VILELA, Ivan. Cantando a própria história. In: REVISTA DE CULTURA ARTÍSTICA. Associação de Cultura Artística de Piracicaba. v. 2, n. 2, 2009. Piracicaba: Associação de Cultura Artística de Piracicaba, 2009.

Abstract: Abstract: In this paper I discuss the cultural representations in the text and in the characters of “Um Baú de Fundo Fundo”, show created in 1974, by the “Giramundo Teatro de Bonecos”, of Belo Horizonte city. Therefore, I observe the concepts of culture, more specifically cultures in plural, and representation.

Keywords: military dictatorship; legends and hillbillies.


[1] Utilizo a referência APOCALYPSE, A. (Álvaro Apocalypse) para diferenciar de APOCALYPSE, B. (Beatriz Apocalypse). Beatriz é filha do casal Álvaro e Tereza Apocalypse, falecido em 2003.

[2] FREITAS, Marcel de Almeida. Para a vice-presidência? Convide um mineiro… Fonte: <://74.125.45.132/ search?q=cache:AwerJZnGlCMJ:www.achegas.net/numero/quatro/marcel_freitas.htm+mineirice&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a>. Acesso em: 05 de abr. de 2010.

[3] O termo Alterosas seria outra forma que nós mineiros utilizamos para chamar o Estado de Minas Gerais.

[4] Aqui, incluindo-se o Libório, observa-se a lista completa de personagens de Um Baú de Fundo Fundo.

[5] O mito do Saci aparece figurado em cinco espetáculos do Giramundo. A saber: Saci Pererê (1973), Cobra Norato (1979), A Redenção pelo Sonho (1998), Os Orixás (2001) e O Aprendiz Natural (2002).

METAFORMOSE – GIRINO TEATRO DE ANIMAÇÃO

No último domingo, 27 de maio de 2012, assisti à excelente montagem Metaformose, do Girino Teatro de Animação de Belo Horizonte. Dirigido pelo promissor e talentoso diretor Tiago Almeida, o espetáculo, inspirado no livro homônimo (Metamorfose) de Paulo Leminski,  trata de “uma viagem pelo imaginário do hibridismo humano, da instabilidade da linguagem, dos corpos e das formas”. (Fonte: Programa da Montagem).

Já no início do espetáculo, antes de entrarmos no teatro, fomos surpreendidos pela interessante performance de Aline Midori. Com sua bela máscara de papel, a performer nos apresentou a instabilidade e a efemeridade das formas, que se desintegram sob a presença dos elementos da natureza, como o fogo. (“Metamorfose”: na natureza nada se perde, tudo se transforma – Lavoisier).

De caráter contemporâneo, a montagem recorre a múltiplas linguagens artísticas: Teatro de Animação, principalmente ao teatro de bonecos e às máscaras; Teatro de Atores; Vídeo; Cinema de Animação e Música. Aliás, a trilha sonora do espetáculo é digna de um Óscar!

Não só as músicas merecem destaque. Visualmente, o espetáculo é muito bonito: bonecos, máscaras, figurinos, maquiagens, luz e objetos de cena. Talvez beleza não seja o melhor adjetivo para tratar o cenário, mas, com toda certeza, é um dos mais funcionais que vi nos últimos anos. Cena e cenário se encaixam perfeitamente bem. Ou vice-versa.

Os vídeos são incríveis!

E o interessante disso tudo é que o grupo Girino não possui patrocínio e muito menos incentivo das leis de incentivo (paradoxal, não?). Como adoráveis pontinhos e traçadas retas linhas, tudo foi sendo construído com os próprios recursos dos artistas do grupo. E o resultado é realmente impressionante. Fiquei pensando com os meus botões: como deve ter sido difícil e trabalhoso (no sentido manufatural da coisa) ter concebido esse honesto trabalho!

A metamorfose dos atores é muito boa. Principalmente a corporal. Iasmim Marques parece não ter esqueleto e muito menos cartilagens. Como é flexível essa atriz! Com os seus movimentos serpenteados ela criou um verdadeiro balé. Só uma coisa em seu trabalho não alcançou a justeza do hibridismo: a voz quase não sofre metamorfoses ao longo da representação! Exceto em alguns raros momentos. Isso dificulta um pouco o desenho cênico e as atmosferas propostas pelo diretor. Quanto ao Lúcio Honorato, a sua performance como o Professor é “justa, muito justa, justíssima”.

Híbrido como a Serpente, Metaformose joga muito bem a dinâmica das linguagens, que ora se sobrepõem, outrora se complementam, vez se antecipam e em momento nenhum se aniquilam.

Com um cartão de apresentação assim, o Girino sofre metamorfose, torna-se um imponente anfíbio, e entra de vez no circuito teatral de Belo Horizonte.

Luciano Oliveira

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Serviço:

Espetáculo MetaForMose
Direção: Tiago Almeida
Elenco: Aline Midori, Iasmim Marques, Lucio Honorato

Últimos dias: 02 e 03 de junho
Horário: sábados às 21horas e domingos às 20horas
Ingressos a $10,00 inteira e $5,00 meia-entrada

Local: Centro Cultural da UFMG
Av. Santos Dummont 174, Centro, BH

Dia Nacional de Combate à Violência e Abuso Sexual contra Crianças e Adolescentes

Hoje, 18 de maio, é o Dia Nacional de Luta contra o Abuso e a Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes.

O PAIR/AMAS (Associação Municipal de Assistência Social)  realizou um evento, na Praça da Estação de Belo Horizonte, objetivando estimular e encorajar as pessoas a denunciarem situações de violência sexual e criar possibilidades e incentivos para implantação de políticas públicas para enfrentar este tipo de crime.

Com sombrinhas coloridas, dezenas de pessoas formaram um “Banner Humano” com os seguintes dizeres: 18 de maio. Veja fotos em: http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2012/05/banner-humano-alerta-sobre-dia-do-combate-exploracao-sexual-em-bh.html.

Essa campanha teve a participação de diversas autoridades e personalidades mineiras, dentre elas Fernanda Takai, vocalista do Pato Fu, madrinha do evento.

O Grupo de Teatro de Mobilização Social da AMAS, do qual sou coordenador/diretor, também esteve presente. Abaixo, encontram-se algumas fotos dos artistas desse grupo juntamente com a madrinha do evento (Fernanda Takai) e com outros membros da AMAS.

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Veja uma reportagem interessante da TV Alterosa:

http://www.alterosa.com.br/html/noticia_interna,id_sessao=7&id_noticia=77500/noticia_interna.shtml

Leia o texto que Fernanda Takai apresentou, emocionada, durante o evento:

“Alguns assuntos merecem ser abordados de uma maneira mais direta e já foi se o tempo em que a gente não podia denunciar fatos agudos que acontecem perto de nós. Não é certo sermos testemunhas de atos de covardia, violência, negligência, exploração e abuso sem tomarmos uma atitude de cidadãos. É preciso dar voz aos que ainda se calam por pressão da família ou de uma realidade bruta. Aqueles que estão à deriva de carinho e atenção. Sou mãe de uma menina de 8 anos e me parte o coração saber que outras garotas e meninos da mesma idade são forçados a amadurecer de uma forma nada natural em sua sexualidade, educação e formação de caráter. Quem puder se juntar a nós a partir de hoje, vai colaborar para construção de uma sociedade solidária, atenta e disposta a se humanizar contra todas as expectativas de competição e anulação do mundo moderno. É preciso ter responsabilidade. Olhar para o outro como se  olhássemos para nós mesmos em outras épocas. Pois uma vida se constrói com amor e dedicação. Com valores de bem. Por favor, todos aqui presentes, multipliquem essa ideia de que  podemos fazer a diferença na vida do próximo. E se esse alguém for uma criança, um jovem, essa diferença será determinante para o resto de sua vida.” (Fonte: http://www.amas.org.br/)

As últimas Flores do Jardim das Cerejeiras – Grupo Oficcina Multimédia

Uau, foi de tirar o fôlego o lindo e emocionante espetáculo “As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras”, do Grupo Oficcina Multimédia, de Belo Horizonte!

Ontem (05 de maio de 2012), eu, um grupo de amigos artistas e parentes fomos assistir, no Galpão Cine Horto,  a esse surpreendente espetáculo. Além de ser fã do grupo e de sua diretora Ione de Medeiros, eu tinha uma motivo muito particular para assistir à esse trabalho: “As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras” constitui um dos objetos de estudo do meu projeto de Doutorado.

Já na sala de entrada, que antecede o local de encenação, fomos surpreendidos por um espaço liminar do espetáculo: espécie de cômodo de espera ritualístico, em que deveríamos retirar os nossos tênis e sapatos, que nos conduziu ao cenário/labirinto do poderoso e assustador Minotauro. Porém, antes da entrada no espaço de acontecimento teatral, alguns avisos importantes foram dados pela equipe de produção. Dentre eles: “se você é claustrofóbico ou possui alguma doença cardíaca crônica, sugerimos que não assista ao espetáculo que logo começará!”. Os nossos corações foram a mil, contudo, sobrevivemos, afim de contarmos essa breve e emocionante história.

“As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras” é um espetáculo com fortes traços pós-dramáticos baseado na obra “O jardim das Cerejeiras”, do dramaturgo russo Anton Tchekov. O seu mote principal gira em torno dos conflitos sociais que marcaram a Rússia do final do século XIX. A pós-dramaticidade desse espetáculo deve-se, principalmente, ao deslocamento da relação dos atores com a platéia – que se encontra encerrada num cenário/labirinto e deve percorrer o espaço para acompanhar as ações cênicas -, à ausência de diálogos, à não-linearidade da narrativa, a simultaneidade e duplicidade de cenas e à utilização de uma multiplicidade de linguagens artísticas (vídeos, projeções, teatro de animação, música, dança, performance e artes plásticas), concomitantemente ao evento teatral, que extrapola o drama.

São vários os momentos que os espectadores presenciam ao longo de 50 minutos. Primeiramente, um grupo de carpideiras lamenta a morte de uma criança. Cena forte e impactante que desloca, num ritmo propositadamente repetitivo e alongado, o olhar dos espectadores. Em seguida, os Minotauros, símbolos de morte e de destruição, devoram suas vítimas  e espreitam, com seus olhos furiosos e suas mãos cortantes de facões, o público que os cercam. Mais adiante, homens e mulheres, como o Teseu de Ariadne, são lançados numa multiplicidade de encruzilhadas e de caminhos em busca dos próximos fios do espetáculo: projeções, fumaças, vídeos e/ou ainda sonoridades. Aliás, além do encontro com imagens dinâmicas, esse espetáculo proporciona ao público um grande choque de sensações. Num dos momentos mais primorosos da encenação o público dirige-se, espontaneamente, ao centro do labirinto, e com seus pés descalços produzem estouros de plásticos bolhas que, poeticamente, aludem ao som de gotas de chuva que regam e dão vida às cerejeiras. Finalmente, um grupo de gueixas desloca-se, sensual e misteriosamente, pelo labirinto. Como num passe de mágica elas surgem, com suas máscaras subjetivas, dançando e flutuando sobre os espectadores. Escadas constituem os fios que as conduzem pelos cantos superiores do cenário. Mais uma vez, o público é deslocado do seu conforto, sendo obrigado a olhar para os céus para acompanhar o desenrolar dos novelos. Este apelo estético, a introdução de gueixas num universo político-cultural russo, que poderia ser encarado como um anacronismo, “responde a uma proposta de humanização contra a barbárie de um mundo materialista e se instala como uma nova exigência para os tempos modernos” (citação retirada do programa do espetáculo).

Para encerrar, gostaria de deixar uma pequena sugestão ao grupo: para uma melhor apreciação desse belo espetáculo, talvez fosse melhor reduzir de 50 para 30 (ou ainda 20) o número de espectadores. Dessa forma teríamos um pouco mais de conforto e não perderíamos sequer nenhuma nuance desse magnífico trabalho.

Luciano Oliveira

11º FIT-BH terá 19 espetáculos internacionais

FIT BH terá 19 espetáculos internacionais – Texto de Luciana Romagnolli

Fonte: http://www.otempo.com.br/entretenimento/ultimas/?IdNoticia=27122

O 11º Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte divulgou nesta manhã os espetáculos que se apresentarão na cidade entre os dias 9 e 24 de junho. “Este é o maior festival que a cidade já realizou”, disse a presidente da Fundação Municipal de Cultura, Thaís Pimentel. Serão 19 espetáculos internacionais – seis a mais do que na edição 2010; incluindo grupos da importância do tcheco Farm in the Cave, do peruano Yuyachkani e do italiano Fondazione Pontedera, além de trabalhos de diretores como Rodrigo García e Daniel Veronese.

Os destaques nacionais são as extensas montagens da Cia. do Latão (“Ópera dos Vivos”) e da Mundana (“O Idiota”). O festival será palco ainda da primeira apresentação em Minas da remontagem de “Romeu e Julieta”, do Grupo Galpão, que será apresentado na Praça do Papa, como foi 20 anos atrás, em sua estreia na cidade. A curadoria, dirigida por Marcelo Bones, ao lado de Grace Passô e Yara de Novaes, se pautou pelo conceito de “fronteira”, buscando espetáculos que revelassem intercâmbio com outras linguagens artísticas, diálogos com o espaço urbano e quebras de fronteiras. “Vivemos uma tensão sobre a ocupação do espaço público e achamos que o teatro pode contribuir nessa discussão”, diz Bones.

Outro foco foi radicalizar a descentralização das apresentações, que chegarão às nove regionais e aos 16 centros culturais da cidade. “É um FIT expandido sob a perspectiva da espacialização e da ocupação de territórios da cidade que ainda não tinham sido ocupados em anos anteriores”, diz o coordenador do festival, Rodrigo Barroso.

Os ingressos começam a ser vendidos no dia 21 de maio.

Confira a programação do FIT-BH 2012

* Internacionais
– Israel
“Quiet”, Arkadi Zaides Company

– Argentina
“Los Hijos se Han Dormido”, Daniel Veronese (foto)
“Tercer Cuerpo”, Timbre 4

– Itália
“Abito”, Fondazione Pontedera
“Lisboa”, Fondazione Pontedera
“Um, Nenhum e Cem Mil”, coprodução com Cacá Carvalho

– França
“Voyageurs Immobiles”, Philippe Genty
“Transfiguration”, Olivier de Sagazan

– Inglaterra
“Translunar Paradise”, Theatre Ad Infinitum

– Espanha
“Golgota Picnic”, Rodrigo García
“Domínio Público”, Roger Bernat

– Alemanha
“Time Out”, Antagon

– Guatemala
“Oxlajuj B’Aqtun”, Soltz’il Jay (foto)

– Peru
“El Ultimo Ensayo”, Yuyachkani
“Sin Tintulo – Tecnica Mista”, Yuyachkani

– Chile
“Villa + Discurso”, Teatro Playa

– Colômbia
“El Autor Intelectual”, La Maldita Vanidad
“Los Autores Materiales”, La Maldita Vanidad

– República Tcheca
“The Theater”, Farm in the Cave

* Nacionais
– Rio de Janeiro
“Estamira”, Dani Barros
“Depois do Filme”, Aderbal Freire-Filho

– São Paulo
“O Mistero Buffo”, La Mínima
“Ópera dos Vivos”, Cia. do Latão
“O Idiota”, Mundana (foto)

– Presidente Prudente
“A Farsa do Advogado Pathelin”, Rosa dos Ventos

– Fortaleza
“Por que a Gente Não É Assim? Ou por que a Gente É Assado?”, Bagaceira

– Natal
“Sua Incelença, Ricardo III”, Clowns de Shakespeare

– Salvador
“Bença”, Bando de Teatro Olodum

– Porto Alegre
“Miséria, Servidor de Estanceiros”, Oigalé

*Locais
“Romeu e Julieta”, Galpão (foto)
“Eclipse”, Galpão
“Antes do Silêncio”, Eid Ribeiro
“Nesta Data Querida”, Luna Lunera
“Sobre Dinossauros, Galinhas e Dragões”, Primeira Campainha
“A Mulher Sem Pecado”, Cia. Arlecchino
“Dressur + Play It Again”, Oficcina Multimédia
“Ressonâncias”, Quik Cia de Dança
“Naquele Bairro Encantado”, Grupo Teatro Público
“Palhaços à Vista”, Cia. Circunstância
“Medeiazonamorta”, Teatro Invertido
“A Pequenina América e sua Avó $ifrada de Escrúpulos”, Mayombe

Mais informações: http://www.fitbh.com.br/blog/

Till, a saga de um herói torto – Pequena crítica

No domingo passado, 12 de fevereiro de 2012, assisti ao espetáculo “Till, a saga de um herói torto”, do Grupo Galpão, no Grande Teatro do Palácio das Artes.

Foi uma noite agradabilíssima e muito divertida. A casa estava lotada e a platéia ria e aplaudia a todo momento. Não é por menos, pois “Till” é um grande espetáculo, animadíssimo, engraçado, lírico, colorido e muito bem montado. Eu que não sou muito adepto às comédias de Belo Horizonte, confesso que me rendi à essa deliciosa história contada pelo Galpão.

Além de possuir cenário, figurinos e iluminação competentíssimos, a música, elemento marcante dos espetáculos do grupo mineiro, é um perfume agridoce aos ouvidos. Elementos sonoros metálicos mesclam-se à doçura da flauta e ao ritmo contagiante da percussão. As cantigas, de forte apelo popular e folclórico, dão um tempero mais que especial à encenação mineira.

Quanto à interpretação, destaque para Inês Peixoto, que representou magistralmente o protagonista torto. O trio de cegos é fortíssimo e é o principal responsável pelo lirismo e pela emoção poética do espetáculo: sonhos cinzas de ternura!

Enfim, como de costume, os atores e atrizes do Galpão deram um show de interpretação. A única falta ficou por conta da ausência do magistral Rodolfo Vaz.

NOTA: ***** (5 estrelas).

A Mulher Sem Pecado – Pequena crítica ao espetáculo

Ontem, na Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de BH, assisti ao espetáculo “A Mulher Sem Pecado”, da Cia Arlecchino de Teatro, dirigido por Kalluh Araújo. Valeu a pena ter visto, pois a encenação é muito boa, com figurinos, cenário, iluminação e trilha sonora excelentes.

Kalluh Araújo é um grande diretor. Sua presença é sentida ao longo de todo o espetáculo: nas marcações dos atores, no ritmo, na cor, nos elementos visuais e sonoros da encenação, no expressionismo da cena, etc.

“A Mulher sem Pecado” tem muitos momentos de tirar o fôlego como, por exemplo, a abertura do espetáculo. Mas, devido à verborragia do texto nelsonrodriguiano, possui algumas passagens um pouco cansativas, principalmente no I ATO. Em conversa com um grande amigo e mestre, também diretor, tivemos a sensação, mais uma vez, que o contexto histórico, o tempo psicológico e a narrativa das peças de Nelson Rodrigues estão batidas por demais, sendo necessárias adaptações das mesmas para o contexto mais atual.  Contudo, essas “barriguinhas” no ritmo do espetáculo (devidas aos bifões discursivos das personagens Olegário e Lídia) não tiram em nada o mérito da montagem, que possui direção impecável (limpíssima!, disse meu amigo), interpretações maduras e consistentes, e um visual deslumbrante!

Recomendo!

NOTA: **** (4 estrelas).

Por fim, não façam como eu: comprem os seus ingressos antecipadamente, pois na bilheteria do Palladium, pelo menos para o espetáculo de ontem (A Mulher sem Pecado) e o de hoje (Dolores), os ingressos custam R$ 30,00. Nada populares!

Luciano OLiveira

38ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Belo Horizonte

Respeitável público! Vai começar a 38ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Belo Horizonte.

Esse é um dos maiores eventos, em números de espetáculo e de público, das Artes Cênicas do Brasil. Do dia 04 de janeiro  até o dia 1º de março de 2012 serão apresentados 145 espetáculos em diversos teatros, salas, espaços culturais e ruas da capital mineira.

Dentre os grupos que se apresentarão, destacam-se o Galpão, o Luna Lunera, o Armatrux e o Grupo Encena. Os espetáculos são divididos por  categorias (dança e teatro) e por gêneros: rua, comédia, adultos, absurdo, contemporâneo, teatro dança, bonecos, drama, drama cômico, musical, stand up, romance, tragédia, etc. Entretanto, apesar da diversidade de gêneros, são predominantes, mais uma vez, as comédias.  E muitas delas são figurinhas repetidas, ou seja, já foram apresentadas nas campanhas anteriores, como é o caso de “O espírito baixou em mim” e “Parente não é Gente”.

Quanto aos espetáculos teatrais, recomendo: “Till, a Saga de um Herói Torto”, “A Idade da Ameixa”, “Flicts” (infantil, direção de Wilson Oliveira), “Brasil das Gerais”, “Um Inimigo do Povo” (direção de Walmir José), “A mulher sem pecado”, “Aqueles Dois” (foto abaixo), “Morte e Vida Severina”,  “No pirex” (Teatro de Animação), “Nossa Cidade”, “Sobre Dinossauros, Galinhas e Dragões” e “Te quero como queres, me queres como podes”.

Tentarei assistir ao máximo possível de espetáculos teatrais e escrever um pouco sobre cada um deles, partindo do ponto de vista da direção e da interpretação. Entretanto, já de início, deixo uma crítica aos produtores da campanha: os preços dos ingressos não estão tão populares assim (podem custar até R$ 30,00), ainda mais se pensarmos que o evento é produzido com fontes provenientes de Leis de Incentivo à Cultura. Fora isso, a minha expectativa é imensa, pois a 38ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Belo Horizonte contribuirá, sobremaneira, para a consolidação das Artes Cênicas mineiras no cenário nacional e internacional.

Os ingressos estão à venda nos postos do Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas (Sinparc), que fica no Mercado das Flores, próximo ao Parque Municipal, na Av. Afonso Pena, no centro da cidade; no Shopping Cidade e no Minas Shopping; ou ainda na internet, no seguinte sítio eletrônico:  http://www.sinparc.com.br/ingressobh/index.php

O espetáculo Aqueles Dois, da Cia Luna Lunera, é destaque no evento
O espetáculo Aqueles Dois, da Cia Luna Lunera, é um dos
destaques do evento (Foto: Diego Pisante/Divulgação)

Como curiosidade, no ano passado, mais de 300 mil pessoas compraram ingressos para assistir aos espétáculos do festival.

Por fim, para ver a programação completa da 38ª Campanha  acesse o site do Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas (Sinparc).

Não percam!

Luciano Oliveira

– diretor, ator, professor e produtor de teatro –

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