Tabule

TABULE

Por Jussara Trindade

O espetáculo solo “Tabule”, apresentado no Teatro Guaporé no dia 26/11 como encerramento da II Mostra de Encenações do Dartes/UNIR, foi uma verdadeira aula de Teatro!

Em 50 minutos de magia e realidade misturados com rara maestria cênica, o ator Júnior Lopes nos (re)ensinou o que os estudos teatrais da atualidade definem como “encenação”, “atuação”, “gestualidade”, “iluminação”, “cenografia”, “figurino”, “caracterização”, “música de cena”, “texto”, “corpo”, “voz” e tantas outras coisas estudadas e praticadas anos a fio por aqueles que se entregam à dor e à delícia (como diria Caetano Veloso) de contar, poeticamente, uma história a alguém.  

E esse alguém – nós, os chamados “espectadores” – assistimos sim, mas, sobretudo, vibramos intensamente a cada peripécia vivida pela protagonista, a libanesa Zahara. Como ator, Júnior enfrenta o desafio de viver no palco uma personagem feminina; desafio a mais dessa arte milenar que mistura ingredientes díspares como dor e alegria, graça e pesar, ficção e fantasia, inspiração e técnica.

Um homem interpretar uma mulher não é coisa contemporânea… Até recentemente na história do Teatro, a proibição de a mulher apresentar-se em público se fez presente nas mais distintas culturas, do Extremo Oriente ao Novo Mundo. Cabia a esses atores levar para a cena não apenas os trajes, os gestos, as vozes das mulheres de seus tempos mas, principalmente, aqueles seus dons de iludir (Valha-me, Caetano!) que sempre fez da mulher, no imaginário masculino, um ser ao mesmo tempo nefasto e divino. Um ser maravilhoso, entre a serpente e a estrela – canta Zé Ramalho, revelando o sentimento de impotência do homem comum em lidar com o feminino, cuja essência em geral lhe escapa.

Mas não é esse o caso em Tabule; Júnior faz a necessária tarefa de nos lembrar que, para dar vida a um personagem, não basta vestir os seus trajes ou “fazer” a sua voz. Quem gosta ou vive o Teatro acaba aprendendo que representar vai muito além da mera “representação”. De modo que, em cena, não vemos um ator representando uma mulher, mas uma muçulmana contando a sua dolorosa trajetória como se não fosse assim tão dolorosa…  Cada gesto, cada palavra entoada com aquele delicioso sotaque árabe – reconhecido na fala de inúmeros imigrantes que todos nós conhecemos por este Brasil afora – é a pura presença do Feminino, não só em forma, mas principalmente em conteúdo. Os elementos de dança do ventre que o ator executa em cena extrapolam em muito o desempenho das complexas técnicas de movimento dessa arte milenar (o que já seria, em si, uma façanha e tanto!), tornando-se a metáfora de cada etapa vivida com e através do próprio corpo, trazendo para nós espectadores o sentido de que o universo reside mesmo no ventre da mulher. Com tudo o que isso pode significar em termos de tristeza, alegria ou esperança. Dançamos junto com Zahara em todos os momentos em que ela se entrega ao som contagiante de sua pátria, ainda que esta lhe seja tão dura e árida quanto o deserto.

O ator mostra-nos a cada segundo o desafio que é criar em cena uma figura feminina profundamente humana cujo desabafo, embora tão verdadeiro e atual, não se permite em nenhum momento cair nas armadilhas da lamentação chorosa ou no recurso fácil da caricatura. Ao contrário, a tragédia de uma vida repleta de episódios cruéis é tratada com a espantosa naturalidade de quem vê e vive cotidianamente a violência sobre a sua pessoa, pelo simples fato de ter nascido mulher. Violência essa, naturalizada na sociedade, instituída no lar, sacralizada nas Sagradas Escrituras.

Em sua simplicidade, Zahara percebe que há algo errado com o mundo que habita. Tenta em vão encontrar, nele, algum espaço digno para si. Então, ao constatar que não existem linhas de fuga para fora dessa realidade cruel, foge enlouquecida. Em busca de um mundo que existe apenas nas “mil e uma noites”, a protagonista atravessa oceanos… de areia! Jornada desesperada de quem, à procura de um sonho de liberdade, só encontra miragens. Por isso, aonde quer que vá, mesmo em sua terra natal, Zahara é sempre uma estranha. Ilegal. Reconhecida como socialmente incapaz de arbítrio, eternamente dependente do favor do homem – seja o pai, o irmão, o marido ou o cliente num prostíbulo – só lhe resta o desejo mórbido de explodir o mundo e, junto com ele, todo o conjunto de atrocidades que bem conhece, no corpo e na alma. Ato de puro terrorismo, do qual nós, espectadores, nos tornamos cúmplices. Afinal, quem na plateia – homem ou mulher – não seria capaz de reconhecer na fantasia de “vir para o Brasil, onde não existe violência contra a mulher”, sua própria imagem refletida ironicamente nesse jogo de espelhos?

Porto Velho, 28/11/2018

Trupe dos Conspiradores e Funcer apresentam:

 

II Mostra de Encenações do Dartes/UNIR (MEDU II)

 

Programação:

24/11/2018: 20 h – Abertura da mostra com a apresentação do espetáculo Inimigos do Povo, da Trupe dos Conspiradores, Rondônia;
25/11/2018: 19 h – Reapresentação de Inimigos do Povo;
26/11/2018: 19 h – Apresentação de Tabule, da Cia Peripécias de Teatro, Rondônia.

Retirada de ingressos no local, 1 h antes do início dos espetáculos.


O projeto Inimigos do Povo – Trupe dos Conspiradores foi contemplado pelo PRÊMIO DE TEATRO JANGO RODRIGUES – 2017 e tem o apoio do Governo do Estado de Rondônia e da SEJUCEL (Superintendência Estadual da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer).A Trupe dos Conspiradores conta também com o apoio da FUNCER (Fundação Cultural do Estado de Rondônia), da PROCEA (Pró-reitoria de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis da UNIR), do Departamento de Artes da UNIR, da Banda Tuer Lapin, da Sol Maior Escola de Música, da Panificadora Kamilly, da Arts Gesso e da Dydyo Refrigerantes.


Sinopses dos espetáculos:

Inimigos do Povo: Espetáculo teatral contemporâneo (que mistura teatro, teatro de formas animadas, dança, música, vídeos e projeções) livremente inspirado na obra “Um Inimigo do Povo” (1882), do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. O processo de montagem desse espetáculo iniciou-se dentro do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e hoje é uma ação do Projeto de Extensão Trupe dos Conspiradores: pesquisa e prática em encenação e em atuação. Nosso espetáculo traça um paralelo entre as temáticas do texto de Ibsen com acontecimentos político-sociais do Brasil atual. Por meio de Inimigos do Povo conspiramos contra a corrupção, homofobia, hipocrisia, unanimidade, racismo, machismo, partidarismo, intolerância religiosa e de gênero, ditadura, mau-caratismo, fome, reforma trabalhista, reforma da previdência e precarização da saúde e da educação.

Classificação indicativa: 14 anos

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Tabule: O espetáculo teatral Tabule, protagonizado pelo ator Júnior Lopes, tem como ponto de partida a cultura árabe e a sociedade pós 11 de setembro para dar ênfase ao cruzamento de culturas entre o pensamento “oriente” versus “ocidente”. A montagem é uma tragicomédia que apresenta, de maneira irreverente, situações propositalmente exageradas e estereotipadas sobre as percepções de cada cultura.

Classificação indicativa: 12 anos

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Tabule: a medida certa entre o cômico, o dramático e a crítica sócio-político-cultural

Tabule
Junior Lopes em Tabule – Foto de Valdete Sousa

“Tabule (em árabe: تبولة [tab·’bu·leh]) é um prato libanês de salada, freqüentemente degustado como um aperitivo. É basicamente feito de triguilho (trigo para quibe), tomate, cebola, salsa, hortelã e outras ervas, com suco de limão, pimenta e vários temperos. No Líbano, onde surgiu, é consumido por cima de folhas de alface. (…) É bastante popular  no Brasil”. (Do wikipedia).

“Tabule” é também um delicioso espetáculo de Porto Velho, montado pelo ator Júnior Lopes, professor do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, que os locais, mas também os internacionais, têm o prazer de degustar, de desfrutar, de se deliciar.

Apresentado no dia 07 de junho de 2015, dentro da”Mostra Tapiri de Breves Cenas e Monólogos”, organizado pelo “O Imaginário – de Porto Velho” e coordenado competentemente por Chicão Santos e Zaine Diniz, com a importante contribuição dos demais membros do grupo, “Tabule” é a medida certa entre o cômico, o dramático e a crítica sócio-político-cultural.

Justeza é o termo mais sensato para expressar o que Júnior Lopes consegue como ator, dramaturgo e encenador de tal trabalho. Este excelente artista viaja pelos desertos e oásis da sua imaginação distribuindo à conta-gotas o riso, o grotesco, o drama, a ironia e a sátira. A comédia de Tabule, o “camelo-chefe” da encenação, é de muito bom gosto: em nenhum momento vulgariza a arte e muito menos constrange o espectador. Muito pelo contrário: ela faz rir das situações humilhantes e degradantes pelas quais passam as pobres e desvalorizadas mulheres de certas culturas árabes machistas e retrógradas. É um efeito inverso do riso pelo riso, pois propicia à plateia a reflexão necessária para não se imbecilizar com os próprios soluços.

As gargalhadas forram verdemente o tabuleiro para a entrada do drama. Quem não se comove com as histórias de uma mulher que foi estuprada, aos nove anos, por um beduíno? (É abominável imaginar um homem adulto e cruel fazer uma criança virgem e pura deglutir o seu quibe). Qual a mulher (e que homem em sã consciência) não lamenta a expulsão de uma jovem libanesa do seu doce lar por motivos torpes e sem fundamento (a não ser o religioso machista, radical e ultrapassado)? Como não se emocionar com uma libanesa que é obrigada a atravessar o sofrível deserto dançando, ininterruptamente, sobre a corcova de um camelo? Nem uma gota de água é oferecida à pobre alma, que por pouco sobrevive para começar uma nova e árdua caminhada em país estrangeiro, cuja nova língua a faz esquecer a própria memória. Enfim, dentre outras primorosas cenas, o drama e a comédia vai e vem, numa via de mão dupla que faz o público colar nas poltronas.

A crítica social, política e cultural está explícita e descaradamente “cuspida” em nossas caras embasbacadas. Ela também não é gratuita. Não é panfletária e não pretende, em momento algum, a meu ver, desvalorizar as culturas de outrens. Ao passo que Júnior Lopes se aproxima, com profundidade, do mundo árabe, também se “aprochega” do universo machista brasileiro. As burcas que as nossas mulheres são obrigadas a usar tapam os olhos da sociedade para a má remuneração do feminino. Escondem os cabelos da subjugação impositiva à falocracia. Amarram-nas ao fogão, à geladeira, à maquina de lavar e à tripla jornada de trabalho.

Enfim, “Tabule” é um espetáculo terrorista que explode os nossos corações, diafragmas e pulmões e faz descortinar a poeira das indiferenças em relação às mulheres, sejam elas libanesas, tunisianas, egípcias, árabes e/ou brasileiras.

Justo, muito justo, justíssimo!

Luciano Oliveira

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