Mitologia dos orixás: um estudo dramatúrgico a partir da obra Os Orixás do Giramundo Teatro de Bonecos[1]

Artigo publicado na Revista Aluá – Revista de Cultura e Extensão Aluá. Ano 1 – N. 1 – 2017. p. 84 – 99. Pró-Reitoria Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis da Fundação Universidade Federal de Rondônia 

Fonte das figuras: GIRAMUNDO. Arquivos: Baú e Os Orixás. Coletânea organizada por Rogério Sarmento. Belo Horizonte: Museu Giramundo, abr. de 2010. CD-ROM, 1 unidade física.

 

RESUMO: Neste artigo lanço um olhar sobre alguns mitos representados, dramaturgicamente, no espetáculo teatral Os Orixás, montado em 2001, em Belo Horizonte, pelo grupo de teatro de animação Giramundo. Este grupo, ao longo de quase cinquenta anos de existência, já representou, em seus trabalhos, distintas mitologias e lendárias do país: desde os contos da Iara, do Rio São Francisco – do norte de Minas Gerais -,  até as histórias do Boto da Amazônia. Contudo, as figurações mitológicas afrobrasileiras só foram aprofundadas quando da montagem desse trabalho. Entrementes, para compreendermos melhor tais mitos faz-se necessária, em primeiro lugar, uma observação sobre a escravidão de africanos no Brasil Colônia e sobre as contribuições dos negros para o surgimento e consolidação das crenças afrobrasileiras. Depois, importa observar como o culto aos orixás tornou-se o centro destas crenças e, por fim, de que maneira se deu a entrada do diretor Álvaro Apocalypse nesse universo, apropriando-se de aspectos mitológicos do culto aos orixás para elaborar a dramaturgia de tal espetáculo, baseando-se, principalmente, em mitos narrados no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi.

 

Palavras-chave: teatro de bonecos, divindades, candomblé, umbanda, terreiro.

 

ABSTRACT: This article takes a look at some myths dramaturgically represented in the theatrical spectacle “Os Orixás”, mounted in 2001 in Belo Horizonte, in Giramundo Animation Theatre Group. This group for almost 50 years of existence, has represented in his works, different mythologies and legends of the country: the tales of Iara, the São Francisco River – from the north of Minas Gerais – to the stories of Amazon Boto. However, the mythological african-Brazilian figurations were only deepened when assembling this work. Meanwhile, to better understand these myths is necessary, first, a note about the enslavement of Africans in colonial Brazil and about the contributions of black people to the emergence and consolidation of african-Brazilian beliefs. Then it should be noted as the worship of orishas became the center of these beliefs and, finally, how was the entry of the director Álvaro Apocalypse in this universe, appropriating of mythological aspects of the cult of the orishas to develop the dramaturgy of such spectacle, mainly based on myths narrated in the book “Mitologia dos Orixás”, authored by Reginaldo Prandi.

Key words: puppet theater, deities, candomblé, umbanda, yard.

 

 Escravidão negra no Brasil

Em síntese, a escravidão de negros africanos no Brasil parece ser contemporânea à colonização do país, ocorrida no século XVI. Entretanto, o grande tráfico negreiro, conforme a historiadora Nina Rodrigues (1982), iniciou-se pouco menos de uns cinquenta anos após a chegada dos portugueses à nova Colônia. Nos séculos posteriores, o comércio colonial de escravos aumentou de forma acelerada, principalmente com a descoberta de ouro em Minas Gerais. Estima-se que até o final do século XVIII mais de um milhão de escravos foram introduzidos em nossas terras. Com eles vieram as suas culturas, seus valores, suas crenças e os seus deuses. De acordo com o pesquisador Volney Júnior Berkenbrock (1999), os escravos provinham das mais diversas culturas e povoados do continente africano, especialmente da costa ocidental. Segundo ele, isso provocou, antes mesmo da chegada dos escravos à Colônia, grandes misturas e confusões étnicas, culturais, religiosas e linguísticas. Tais misturas, somadas às separações familiares feitas pelos senhores de engenho, às dificuldades de comunicação entre membros das diferentes tribos, às proibições religiosas impostas pela Igreja Católica, dentre outras, causaram nas comunidades negras que chegaram ao Brasil Colônia muitas perdas, como foram, por exemplo, perda de parte dos rituais religiosos coletivos. Entretanto, o culto aos orixás, mesmo que individualmente — haja vista, segundo Berkenbrock (1999), o critério étnico não ser mais um fator determinante para a organização da nova sociedade na qual os negros se encontravam[2] —, se manteve após a abolição da escravatura, ocorrida no final do século XIX. Desse modo, a veneração aos orixás atravessou as primeiras décadas do Brasil República, e, novamente ganhando força coletiva dentro de pequenas comunidades constituídas principalmente nos centros urbanos — nas quais foram criados os primeiros terreiros —, chegou — por exemplo, por meio do candomblé e da umbanda — aos dias atuais.

Entretanto, para esse autor, apenas alguns poucos das centenas de orixás cultuados na África tornaram-se conhecidos no Brasil. E um número menor ainda foi cultuado. Além disso, aqui ocorreu uma aglutinação de funções religiosas que na África eram exercidas por pessoas distintas. O brasileiro, diferentemente do africano, assumiu sozinho o culto a variados ou a todos os orixás. Portanto, “o sistema africano de comunidades que se dedicavam ao culto de uma única entidade desapareceu completamente no Brasil. Em seu lugar, surgiram comunidades onde são cultuados diversos Orixás” (Berkenbrock, 1999, p. 113). Essas comunidades foram responsáveis pela fundação de inúmeras religiões, como o candomblé e a umbanda, que se transformaram, no território nacional, em religiões afrobrasileiras.

Mas afinal, o que são os orixás?

 O professor e pesquisador Alexandre Magno Teixeira de Carvalho traz em sua tese uma síntese bem interessante sobre os significados do termo. Assim, para ele, os orixás são

Divindades iorubás cultuadas nos Candomblés. (…) ancestrais divinizados, antigos reis ou heróis, e considerados como representações das forças da natureza (…); Divindades iorubá cultuadas nos candomblés, Xangôs, batuques, umbandas, isto é, nas religiões de matriz africana no Brasil. Seu equivalente Fom [Jejê] é Vodum, em Angola é Inquice. São também chamados de “santos” (…); Essas equivalências são imperfeitas, pois, ao passo que uns são forças da natureza, outros são espíritos que retornam sob a representação de animais, enquanto outros são ainda espíritos ancestrais (…); nome genérico das divindades, que são intermediárias entre Olorum, o deus supremo, e os mortais (…). (CARVALHO, 2004, p. 225).

Além disso, de acordo com Prandi (2001, p. 20), os iorubás[3] tradicionais e os seguidores de sua religião nas Américas acreditam que

os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum, (…), o Ser Supremo, a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana.

Esse autor diz ainda que os iorubás acreditam que os seres humanos são descendentes desses deuses. Assim, cada um herdaria do orixá de que procede suas impressões e particularidades, tendências e desejos. Isto tudo de forma parecida ao contado em seus mitos. Talvez estejam aí as explicações para os múltiplos temperamentos dos humanos.

Finalmente, para o pai-de-santo Dagoberto Silva, na obra Magia e Rituais de Umbanda, os orixás, na umbanda, não são deuses, mas “apenas ministros de OLORUN, delegados divinos encarregados de resolver os problemas humanos” (SILVA, 196-?, p. 09).

Apresento agora mais duas questões: como os orixás se manifestam e onde podem ser encontrados?

Em suma, conforme o que é narrado em alguns mitos afrobrasileiros, essas entidades podem se revelar no corpo dos humanos, nos elementos da natureza (como em raios, trovões, tempestades, ventos, chuvas, arco-íris, névoas, etc.), em espíritos que tomam forma de plantas e animais ou até mesmo em espíritos de ancestrais, e assim por diante. Como os orixás são muitos, e de certa forma são oniscientes e onipresentes, podemos sentí-los — ou até mesmo vê-los — em diversos lugares: nas margens dos oceanos, rios e lagos; nas cidades; nos campos e florestas; nas pedreiras; nos hospitais; nos funerais; nos cemitérios; nas encruzilhadas; nas fontes de água; nas festas; na força dos materiais, como os instrumentos agrícolas e armas; nos formigueiros; em fogueiras; nos terreiros; etc.

Diga-se de passagem, conforme o pesquisador, fotógrafo e etnólogo franco-brasileiro Pierre Verger (2000), o culto a essas entidades, chamadas na língua iorubá de Oriṣa,[4] são dirigidas, inicialmente, às forças naturais, por meio de antepassados transformados em deuses, e constituiriam um amplo sistema que liga os mortos e os vivos de forma ininterrupta. Destarte, por ser a ligação mística entre os orixás e os humanos sempre constante e ativa, nada se faz, aqui na terra, sem consultá-los e sem ter por certo suas proteções. Para tanto, é preciso agradá-los, caso contrário, destruições sem tamanho podem acontecer, pois “os deuses são terríveis e temíveis, mas se convenientemente tratados, adorados, proporcionam ajuda e proteção a seus fiéis. Basta conformar-se à lei, à regra, e não se sofrerá as conseqüências”. (Verger, 2000, p. 16). O Giramundo, antes das apresentações do espetáculo Os Orixás, parece agradar a esses deuses, com a prática de incensamento do espaço de representação, evitando, desse modo, maiores constrangimentos durante o acontecimento teatral.

Quanto aos principais locais de adoração aos orixás aqui no Brasil, pelo notado nos autores mencionados, são os terreiros. Ao que parecem, estes espaços lidam bem com as diferenças: aceitam adeptos de todas as cores de pele, profissões, classes sociais e crenças religiosas. Assim, os artistas Álvaro Apocalypse e sua filha Beatriz Apocalypse não encontraram muitas dificuldades para serem aceitos pelo Grupo Espírita Estrela do Oriente – Casa Raiz do Bate Folha[5]. Tampouco se depararam com obstáculos para receberem ajuda de Henrique Neto (Tateto Kitulangê), zelador ou pai-de-santo[6] desse centro, para a montagem da peça teatral Os Orixás, em 2001. Esse babalorixá os municiou de informações relativas à umbanda e ao candomblé: mitos, cantos, instrumentação, orixás representados e seus arquétipos. Logo, Tateto Kitulangê foi elevado à condição de assessor da montagem, para os assuntos relativos às mitologias iorubás.

Enfim, foi numa sexta-feira que Álvaro e Beatriz Apocalypse se encontraram e se encantaram, no terreiro do Estrela do Oriente, com Oxalá, o deus da criação.

 

Uma rápida viagem pela encenação do Giramundo

 Em suma, isto nos conta Álvaro Apocalypse, por meio de Os Orixás: Olodumaré, o deus supremo, pede a seu filho Oxalá, o grande orixá, para criar a Terra, o homem e a mulher. No entanto, aproveitando a embriaguez do irmão Oxalá, causada por Exu, o dono das encruzilhadas e guardião do Portal de Orum (o Além), Oduduá, deusa da Criação, pega o saco da criação e dá existência ao universo. Aborrecido, enciumado e com medo de não ser lembrado na história da História, Oxalá se reporta ao pai, que o autoriza a criar um casal de homem e mulher. Depois de criá-los, o casal — Okunrin (que significa homem) e Obinrin (o mesmo que mulher) — se afasta por intriga de Exu. Uma mãe-de-santo (Ialorixá[7]) convoca Exu e lhe oferece um Ebó (oferta ou sacrifício) para que ele junte o casal que separou. Novamente juntos, o casal tem um filho: Omobinrin. Finalmente, a Terra ficava cada vez mais povoada, deixando Olodumaré tão contente que inundou o mundo de luz.

Os Orixás é o trigésimo trabalho do Giramundo e a última montagem de Álvaro Apocalypse, falecido em 2003. Além da concepção do texto e da cenografia, ele também fez a direção geral, enquanto a sua filha Beatriz Apocalypse fez a direção de cena.

Espécie de tributo às culturas afrobrasileiras a partir de seus aspectos artístico-culturais e mitológicos, Os Orixás, sem proselitismos, narra mitos provenientes do panteão de deuses africanos sobre a gênese da criação: do universo, da terra e das primeiras vidas, principalmente dos seres humanos. Grosso modo, a peça aborda, também, as paixões que moveram as atitudes desses deuses. Além disso, de certa maneira, destaca ainda a importância dessas culturas para a constituição das culturas brasileiras: suas músicas, danças, culinárias, religiões, línguas, etc. Ademais, completaria um ciclo de espetáculos do Giramundo que representam, de forma objetiva, elementos culturais do Brasil. Tal ciclo ter-se-ia iniciado com o Saci Pererê (1973) e se estenderia para Um Baú de Fundo Fundo (1975), Cobra Norato (1979), Auto das Pastorinhas (1984), O Guarani (1986), Tiradentes (1992) e A Redenção pelo Sonho (1998).

Álvaro Apocalypse, justificando a escolha do tema da nova peça, disse o seguinte:

A cultura negra é muitas vezes excluída (…). Os índios, por exemplo, são constantemente lembrados, recebendo nomes de ruas e afins. Mas os africanos são mais esquecidos. Eles também formaram nações, com identidade, língua e costumes próprios. Eles deixaram vários traços em nossa cultura.[8]

Com tal afirmação, Apocalypse parecia mostrar que, em Belo Horizonte, pelo menos no que se refere aos nomes de ruas do centro da cidade, as culturas africanas não foram devidamente lembradas. Enquanto determinadas ruas foram homenageadas com nomes indígenas, como, por exemplo, Rua dos Tupis, dos Guaranis, dos Guaicurus, dentre tantas outras, não se nota nenhuma menção a topônimos africanos, pelo menos nessa região. Dessa forma, a montagem de Os Orixás, além dos aspectos anteriormente mencionados, também parece cobrir um pouco esse vazio, ademais de preencher uma lacuna no palco das marionetes do Giramundo. Contudo, ao decidir montar esse espetáculo, um dilema parece ter tirado o sono do diretor: “como contar uma história que não se conta, que é vivida; em outras palavras, que só é dita por quem a entende e só é entendida pelos que não a querem desvelar?”.[9] Talvez seja por este motivo que o encenador recorreu a Henrique Neto, babalorixá do Grupo Espírita Estrela do Oriente: “Passei a ele várias lendas, costumes e tradições […]”.[10]

Beatriz Apocalypse, em entrevista, disse que o seu pai, ao decidir montar Os Orixás, queria retratar a mitologia africana e não a religião, como muitos acreditavam:

Algumas pessoas, às vezes, confundem com a religião, mas ele não quis retratá-la. Fez um período de estudo da mitologia dos orixás, da mitologia aplicada. (…) Então, foi um longo estudo. Um período bem interessante: as lendas são maravilhosas, os deuses são lindos. E a gente quis transpor isso para o espetáculo, para, de certa forma, homenagear os negros e levar para as pessoas que isso não é macumba, espiritismo, mas sim mitologia. (APOCALYPSE, B., 2009, entrevista concedida ao autor).

            Em relação a esse aspecto mitológico de Os Orixás, Beatriz Apocalypse tem certa razão. O seu pai se preocupou muito mais em narrar os mitos do que propriamente retratar os aspectos religiosos da umbanda, do candomblé e/ou do espiritismo. Ele também se atentou aos elementos artísticos dos cultos aos orixás: às indumentárias, às cores, aos paramentos, às armas e jóias utilizadas pelos deuses, assim como às gestualidades recorrentes em suas danças.

            Ainda sobre os estudos para a criação do espetáculo Os Orixás, Helvécio Carlos (2001), jornalista do jornal Estado de Minas, disse que Álvaro Apocalypse encontrou os fundamentos para sua pesquisa em obras como as de Pierre Verger. É dado que as investigações do diretor duraram aproximadamente dois anos: de 1999 a 2001. E foi nesse período que ocorreu uma surpresa: “Na hora que comecei a mexer foram aparecendo diversos livros sobre o candomblé, [como o] Mitologia dos Orixás”,[11] pondera o dramaturgo Apocalypse. Aliás, esta obra, escrita pelo sociólogo Reginaldo Prandi, foi lançada em dezembro de 2000, conforme informação disponível no sítio eletrônico[12] do próprio autor. Justamente pelo motivo de o espetáculo ter estreado um pouco mais tarde, em 11 de maio de 2001, além do fato de existirem várias versões do texto Os Orixás, o que demonstra dificuldades de Apocalypse nas escolhas dos mitos a serem representados, e finalmente pelos atrasos na produção e finalização da montagem, surge a hipótese de que a obra Mitologia dos Orixás tenha sido primordial para a finalização daquele texto.

Durante as pesquisas que realizei no Museu Giramundo, em Belo Horizonte, encontrei sete versões do texto Os Orixás. Contudo, somente uma delas, não sendo possível definir exatamente qual versão é, possui data: 04 de setembro de 2000. Encadernada a uma dessas variantes encontra-se o livro Orixás (1955), de Pierre Verger. Porém, neste livro, não se notam descrições de mitos, o que reforça ainda mais a hipótese de que a obra de Prandi foi fundamental para Álvaro Apocalypse.

O recém-inaugurado Teatro Giramundo, em Belo Horizonte, foi o “terreiro” que recebeu a nova peça, que ali cumpriu uma temporada quase que ritualística de mais ou menos dois meses: sempre às sextas, sábados e domingos. Mais tarde, alguns dias depois da morte de Álvaro Apocalypse, ocorrida em setembro de 2003, a filha Beatriz e os artistas Marcos Malafaia e Ulisses Tavares (outros integrantes do grupo) apresentaram uma remontagem da peça no Festival Mundial de Marionetes da UNIMA, em Charleville-Mezières, França.

 

A história de uma dramaturgia tecida pelos fios de mitos

 Agora, observarei de que maneira Álvaro Apocalypse dispôs, no texto Os Orixás, alguns mitos dos orixás, recriando e representando, textualmente, uma coleção mitológica afrobrasileira. Ademais, compararei as narrativas trazidas pelo artista com mitos contados por Prandi (2001), a fim de compreender melhor a influência deste último sobre a construção textual do primeiro.

Como vimos, Apocalypse fez um longo estudo sobre essa coleção e ainda acompanhou os ritos ao culto aos orixás, num terreiro da capital mineira, para tecer as linhas e enredar as histórias do seu texto. Assim, ao que tudo indica, além das inspirações em Mitologia dos Orixás, possivelmente o diretor registrou, em sua memória, narrativas que ouviu serem contadas e viu serem representadas, em forma de cultos, durante as reuniões do Grupo Estrela do Oriente.  

É difícil, senão quase impossível, reconstruir as pesquisas de Apocalypse e verificar todas as obras lidas e mitos coletados por ele para compor a coleção presente nas vinte e sete cenas do seu texto. De acordo com Malafaia (2009), foi muito grande o volume de leituras realizado pelo diretor. Em toda a cidade a que ia procurava por obras raras relativas aos mitos em sebos e livrarias. Mesmo a mitologia africana sendo muito extensa e complexa, ele “conseguiu fazer uma síntese que valoriza e contribui para o registro dos principais mitos desse panteão” (Malafaia, 2009, entrevista concedida ao autor). Nessa síntese constam, ao todo, histórias de dezessete orixás: Exu, Iansã, Iemanjá, Logum Edé, Nanã, Obaluaê/Omulu, Oxalá (Obatalá), Odé/Oxossi, Oduduá, Ogum, Olokun, Orumilá, Orungã, Ossaim/Katendê, Oxum, Oxumarê (serpente) e Xangô. Em cada uma das vinte e sete cenas de Os Orixás, o encenador/dramaturgo retratou uma ou mais narrativas relacionadas a esses deuses e às ações deles, e também apresentou ritos prestados a essas entidades. Entretanto, vale ressaltar que, além do texto, os ritos também são notados na partitura de ações dos bonecos/personagens e nas cantigas do espetáculo.

O texto Os Orixás é um dos elementos-chave da encenação do Giramundo. Contudo, ele não se nutre da lógica aristotélica, no sentido de encadeamento linear das ações (princípio, meio e fim), e não busca assertivas no mundo real. Tanto o texto quanto a encenação parecem se articular em torno de dois tempos principais: um mítico (atemporal) e outro narrativo.

Constituído por um único ato, se enovela por saltos espaciais e temporais — em forma de pequenos esquetes — e pauta-se, principalmente, em narrações: as figuras de dois narradores (um homem e uma mulher) revezam-se — ora um ora outro, ambos os dois — nos relatos dos fatos ocorridos e na apresentação dos mitos. Enfim, apresento e narro, resumidamente, alguns mitos representados no texto Os Orixás, relacionando-os, e por ora comparando-os, com mitos figurados em Prandi (2001). Além disso, teço comentários das cenas que considero mais relevantes.

As sete primeiras cenas de Os Orixás trazem mitos referentes à criação do universo e dos seres humanos e também sobre o surgimento de alguns orixás. São elas, respectivamente: “Ni Igba Kan[13], “Exu”, “Oduduá”,  “Okikishi e Iyê”, “Nanã”, “Egum” e “Obaluaê”. Por sua vez, estas encontram respaldos nos seguintes mitos narrados por Prandi (2001): “Orinxalá cria a Terra”, “Obatalá cria o homem”, “Nanã fornece a lama para a modelagem do homem”, “Nanã tem um filho com Oxalufã” e “Nanã esconde o filho feio e exibe o filho belo”.[14]

Mais ou menos assim começam as cenas: havia o nada antes da criação. Olodumaré/Olorum/Olodum (ser absoluto e inatingível), em quatro partes o mundo sonhou: Olokun (o Mar), Orumilá/Ifá (o Destino), Oduduá (a Terra) e Obatalá (o Céu). Olodum chama o filho Oxalá: “Êpa Babá, Oxalá[15]”; dá-lhe o saco da criação e pede para ele o mundo criar. Mas “Oxalá devia cumprir obrigação. Para ir além do Além, Orum. Pôs-se a caminhar. E encontrou Exu, guardião do Portal de Orum”.[16] No entanto, Oxalá, altivo e orgulhoso, passa direto pelo Portal e não deixa nenhuma oferenda para Exu. Logo, o guardião do Portal se vinga de Oxalá, causando nele uma grande sede. Este, sedento, vê um pote de vinho de palma e bebe sem parar, até ficar bêbado. Sonolento, o orixá deixa cair de suas mãos o saco da criação, perdendo-o.

Esperta, Oduduá pega o saco e semeia a semente da criação. Cria montinhos de terra e coloca uma galinha para ciscar, esparramando-a: “Um morro aqui. Um riozinho ali. Um lago. E lá adiante, uma cidade. Onde Okó, o homem, um dia há de morar.[17] Oduduá cria a Terra (Ilê-Aiyê), a água (Olokun), a terra firme (Aganju), o céu (Ojo Orum) — repleto de estrelas e de ar — e o fogo de derreter e esquentar.

Em outro momento, o deus Oxalá, depois do triste despertar, pergunta ao seu pai: “o mundo está pronto pronto, o que falta faltar?”[18] E Olodum responde: “Falta Okikishi, o sal da Terra, que chamarão: o Homem. Falta Iyê, a vida, que chamarão: Mulher. Pega então desta argila que te dou e modela o corpo de Okurin e Obinrin. E no calor do fogo, ponha os dois para secar”.[19] Então, Oxalá modela o barro e põe para queimar. Por um lado, o homem queima demais e fica preto. Por outro, a mulher queima pouco e fica branca. Em seguida, o curioso Orungã, o Vento, vem ver a obra de Oxalá. Ele venta tanto que racha o barro. E assim nasce a mulher. Mas foi Nanã, a mãe das águas paradas, dos lagos e dos pântanos, que deu a Oxalá, o seu esposo, o barro para fazer o homem. Todavia, quando a alma (Egum) do homem se for, Nanã pedirá o barro de volta.

 

NARRADORA: Nanã Buruquê domina o Egum,

Egum espírito do morto que morreu

E não foi pra lugar nenhum. (APOCALYPSE, A., 2010, p. 7).

Mais adiante, Oxalá pede para Nanã dividir com ele o poder sobre Egum Egum. Mas ela diz para Oxalá que o poder vem deles e não dela. Logo, não é possível realizar a partilha. Insistentemente, Oxalá tenta dominar os eguns, ao passo que acaba descuidando do seu casamento com Nanã. Ela então faz um feitiço: “Vinho de palma e cento e um caramujinhos. E um filho de Oxalá este feitiço vai me dar”.[20]

O feitiço faz efeito, nasce Obaluaê ou Omulu, “orixá da varíola, das pestes, das doenças contagiosas”.[21] Entretanto, ele nasceu feio, deformado, torto. Desesperada, a mãe atira o filho, nu, ao mar. Mas Okurin e Iawô (esposa jovem)[22] o salvam, tecendo para ele um manto de palha da costa chamado ganzé: “[…] com ele Obaluaê se cobriu e assim saiu da noite onde se escondeu. Tomou do Xaxará[23] e saiu pelo mundo com a missão de curar os enfermos e debelar as epidemias pelo resto das eras, épocas e tempos”.[24]

Comparemos o último mito, narrado por Apocalypse, com o mito “Nanã esconde o filho feio e exibe o filho belo”, transcrito por Prandi (2001, p. 197)). Os mesmos se diferem um pouco:

Conta-se que Nanã teve dois filhos. Oxumarê era o filho belo e Omulu, o filho feio. Nanã tinha pena do filho feio e cobriu Omulu com palhas, para que ninguém o visse e para que ninguém zombasse dele. Mas Oxumarê era belo, tinha a beleza do homem e tinha a beleza de todas as cores. Nanã o levantou bem alto no céu para que todos admirassem a sua beleza. (…) E lá ficou Oxumarê, à vista de todos. Pode ser admirado em seu esplendor de cores, sempre que a chuva traz o arco-íris. (Grifos meus.).

Já na cena XI (“Exu exige Ebó”), Ialorixá explica para o casal Obinrin e Okurin que Exu Elegbará[25] exige uma oferenda, para que eles possam entrar em Aruanda, seu reino. O Ebó que Exu exige é cachaça, charuto ou vela preta. Mas, por serem pobres, eles não têm nada para oferecer. No entanto, Ialorixá reafirma a necessidade da oferta. Então, para se vingar, Exu aparece e faz o casal brigar, por discordância exacerbada da cor do seu chapéu: branco ou vermelho? Por fim, o casal se separa.

Existe uma narrativa de Prandi (2001) chamada “Exu provoca a rivalidade entre duas esposas”,[26] em que as mulheres brigam justamente por causa de uma história de chapéu. Contudo, ao que parece, a Cena XI foi baseada no mito “Exu leva dois amigos a uma luta de morte”:[27] eles se matam por causa de uma discussão sobre a cor do boné do desconhecido Exu: branco ou vermelho?

Em seguida, na cena XII (“Ogun e Okunrin”), Okurin, depois da separação, perde-se nas trevas e clama por luz. Surge, então, Ogum, orixá guerreiro e caçador: “Quem te enfiou nesta cabeça oca que tu, Mortalzinho preto, mereces alcançar a luz?”[28] Mais adiante, Ogum pergunta para dois habitantes do Irê se ele estava no Reino de Irê. Como eles nada responderam, o violento orixá lhes cortou as cabeças. Dentro em pouco, Okurin informa ao deus Ogun que em dia de santo os humanos têm que ficar calados: “Ogum estremeceu, deu um berro e desapareceu chão adentro numa nuvem de fumaça”.[29]

Não restam dúvidas que esta cena foi baseada no mito “Ogum mata seus súditos e é transformado em orixá”[30].

Okurin continua pedindo luz, isto, já na cena XIII (“Camarinha” [31]). Nesse instante, aparece Ialorixá e diz que ele precisa de luz tanto por fora quanto por dentro. Assim, ela indica os passos rituais para que ele se torne um iaô, ou seja, um filho-de-santo:

IALORIXÁ: Cê tira 21 dias desta vida, cê entra pra camarinha e de lá não sai. É procê ter humildade, pra seguir a lei dos Orixás [sic]. Okurin precisa aprender a cantar rezas e cantigas da tradição. Okurin tem precisão de conhecer as ervas que curam o corpo e a alma do teu irmão. (…) Okurin vai dar bori[32] de Oxalá. Okurin vai dar a salva[33] de Obaluaê. Okurin vai dar a salva de Nanã. Ah, Muzenza! (…) Cê raspa seu cabelo. Cê lava sua cabeça nas águas de Oxalá. Cê toma banho de amaci[34] na madrugada.  (APOCALYPSE, A., 2010, p. 19.).

Finalmente, Okurin aparece vestido como um iaô: de chita, pintado de todas as cores.

Mais histórias de Exu e mitos de Xangô — “orixá do trovão e da justiça”[35] — e de Oxum — “orixá do rio Oxum; deusa das águas doces, do ouro, da beleza e da vaidade; uma das esposas de Xangô”[36] —  são encontrados nas cenas XV, XVI e XVII: “Xangô”, “Xangô e Exu” e “Prisão na Pedreira”. Em suma, Xangô quer se casar com Oxum. Todavia, ela não aceita o convite, pois do seu velho pai Oxalá precisa cuidar. Desta feita, Xangô diz que de Oxalá cuidará, levando-o em seu pescoço. Logo, o deus Xangô manda dois servos (Biri, as trevas, e Fefé, o vento)[37] buscarem um colar de contas[38] vermelhas misturadas com contas brancas. Assim que o colar chega, Xangô o pendura no pescoço e diz para Oxum que ele carrega o seu pai. Mas ela não aceita esta assertiva, pois não vê seu pai no pescoço do rei Xangô. Súbito, ele enfurece. Chega, então, Exu, para proteger Oxum e impedir que o irmão Xangô se case com ela. Os dois brigam e Exu sai derrotado. De imediato, o deus das trovoadas prende Oxum numa pedreira. Mas Exu não desiste e pede ao pai Obatalá para libertar Oxum. Logo, ela é transformada em uma pomba branca, que voa para longe.

Essas três cenas encontram referências nos mitos prandianos “Xangô vence Exu e conquista Oxum” e “Oxum transforma-se em pombo”.[39]

As cinco cenas seguintes — intituladas “Odé”, “Oxóssi”, “Katendê”, “Oxum” e “Logum Edé” — discorrem, grosso modo, sobre o amor entre o caçador Odé e a bela Oxum, e sobre a morte[40] e reencarnação de Odé: o humano Odé, “rei das matas e dos caçadores”,[41] falece e volta como o orixá Oxóssi, “rei dos índios e dos caboclos”.[42]

Assim transcorrem as ações mais relevantes destas cenas: no dia de Ifá, o Destino, Odé matou uma serpente. Entretanto, Ifá proíbe a caça em seu dia:

NARRADOR: A serpente que Odé matou, picou e comeu, é Oxumarê, filho de Nanã e Oxalá. Oxumarê, a serpente, é o arco-íris que leva água da Terra pro Céu de Olodum. Por isso Odé foi castigado. Sete anos se passaram e sete anos Oxum chorou, pedindo pra Odé voltar. Olodumaré, compadecido, perdoou Odé e permitiu sua volta a Terra como orixá: Oxóssi (…). (APOCALYPSE, A., 2010, p.27).

Por conseguinte, Oxóssi foi enfeitiçado por Katendê/Ossaim, orixá mago que “faz mágica com flores e ervas e feitiço com raízes e folhas”,[43] e ficou eternamente na floresta. Ali, Oxum vai sempre visitá-lo, murmurando carinhos e carícias em seus ouvidos.

Não obstante, com o intuito de entrar no palácio proibido para amar Oxum, Oxóssi se vestiu de mulher e se passou por sua amiga. Ficaram horas a sós: “O amor voa de Oxóssi para Oxum. […] O amor nada de Oxum para Oxóssi”.[44] Assim nasceu Logum Edé, “orixá da caça e da pesca”.[45] Mas, porque Oxóssi usou saia, Logum Edé desenvolveu-se meio homem meio mulher. Durante seis meses vive com o seu pai, alimentando-se de caça: é Oxóssi. Nos seis meses restantes vive debaixo d’água, comendo peixe: é Oxum.

Todas estas cenas esbarram nos seguintes mitos prandianos: “Odé desrespeita proibição ritual e morre”, “Oxóssi é raptado por Ossaim”, “Logum Edé nasce de Oxum e Erinlé”, “Logum Edé é salvo das águas”, “Logum Edé é possuído por Oxóssi”.[46]

Concluindo, talvez o fato de o comandante do Giramundo ter se baseado, para escrever a maioria das cenas de Os Orixás, em mitos narrados na obra Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, e/ou também em histórias ouvidas, vistas e vivenciadas por ele no terreiro do Estrela do Oriente, ou ainda em obras lidas por ele — às quais, por algum motivo, não tivemos acesso —, gere dúvidas sobre a originalidade e autoria do texto. Mas o que realmente aconteceu foi que o dramaturgo Álvaro Apocalypse se inspirou livremente nessas referências para tecer e enredar o seu próprio entendimento dos mitos afrobrasileiros, relacionando-os com histórias acessadas em sua imaginação. Tais inspirações não configuram, de modo algum, uma terceira autoria do texto Os Orixás. Ao que tudo indica, ele pegou emprestado de Oxalá o saco da criação, semeando as sementes em forma de letras. Assim surgiram as palavras, as rimas, os pontos e os versos desse belo texto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APOCALYPSE, Álvaro. Os Orixás (2001). Belo Horizonte: Museu Giramundo, 2010.

APOCALYPSE, Beatriz. A era Beatriz Apocalypse no Giramundo: remontagem de Um Baú de Fundo Fundo, Cobra Norato e Os Orixás. Entrevista oral concedida a Luciano Oliveira. Belo Horizonte, 22 de jul. de 2009. Entrevista não-publicada.

ATINÚKÉ: A Cerimônia de Batismo, Nomes Yorùbá e a Concepção da Morte na Cultura Yorùbá. (Artigo). Belo Horizonte: Instituto de Arte e Cultura Yorùbá, 2009, p. 12. Disponível em: <http://www.institutoyoruba.com&gt; Acesso em: 11 ago. 2010.

BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no Candomblé. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

CARLOS, Helvécio. Álvaro Apocalypse aprofunda sua pesquisa sobre a brasilidade e mergulha nos mitos e na religiosidade africana para criar ‘Orixás’, o 30º trabalho do grupo Giramundo. Estado de Minas. Belo Horizonte, terça-feira, 08 de maio de 2001. Em Cultura.

CAMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

CARVALHO, Alexandre Magno Teixeira de. O sujeito nas encruzilhadas da Saúde: um discurso sobre o processo de construção de sentido e de conhecimento sobre sofrimento difuso e realização do ser no âmbito das religiões afro-brasileiras e sua importância para o campo da Saúde Coletiva. 2004. Tese (Doutorado em Ciências/área de Saúde Pública). Escola Nacional de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 2004. 340 f. Disponível em: <http://bvssp.icict.fiocruz.br/pdf/carvalhoamtd.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2010.

MALAFAIA, Marcos. Mestiçagem e culturas em Os Orixás, Cobra Norato e Um Baú de Fundo Fundo. Entrevista oral concedida a Luciano Oliveira. Escola Giramundo, Belo Horizonte, 30 de jul. de 2009. Entrevista não-publicada.

MARTINS, Alexandra. Giramundo, Saravá!  Tempo. Belo Horizonte, terça-feira, 20 de fevereiro de 2001. Magazine.

_____________________.“Os Orixás” homenageia cultura afro. Tempo. Belo Horizonte, sexta-feira, 11 de maio de 2001. Magazine – Fim de semana. p. 13.

MORAIS, Mariana Ramos de. O Candomblé na metrópole: A construção da identidade em dois terreiros de Belo Horizonte. 2006. 132 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.

PAULO, João. Giramundo transforma em teatro a criação do mundo narrada pelos Orixás. Estado de Minas. Belo Horizonte, quinta-feira, 21 de junho de 2001. Em Cultura/Crítica Teatro.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Revisão e prefácio de Homero Pires; notas biobibliográficas de Fernando Sales. 6. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.

SILVA, Dagoberto. Magia e rituais de Umbanda. Curitiba: A.M. Cavalcante & Cia Ltda, [196-?].

VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.  

 

Sites pesquisados:

 

<http://www.baradoloju.xpg.com.br/dicionario_yp.htm>. Acesso em: 28 de jul. 2010.

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<http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/>. Acesso em: 04 set. de 2010.

 

NOTAS:

[1] O Giramundo Teatro de Bonecos foi fundado no final da década de 1960, em Lagoa Santa, cidade da região metropolitana de Belo Borizonte. Pelas mãos firmes que seguram os remos, pelas bússolas e pelos astrolábios mágicos dos “remadores”, artistas plásticos e professores da Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG, Álvaro Apocalypse (nascido em 1937 e falecido em 2003), Tereza  Apocalypse (nascida em 1936 e falecida também em 2003) e Maria Vivacqua Martins (nascida em 1945), a Madu, o grupo começou a girar e navegar, primeiro por Minas Gerais, depois pelo Brasil e, por fim, pelo mundo.

[2] “A organização étnica africana não é esquecida, mas não é mais o âmbito que serve de parâmetro para a organização social. O indivíduo e sua posição social têm aqui um papel mais importante que a pertença a um determinado grupo étnico. Em termos de religião, há aqui uma transferência de responsabilidade menos apoiada no grupo e mais acentuada para o indivíduo. [Logo], o culto aos Orixás, parte muito importante e ponto de apoio das religiões afrobrasileiras, não perdeu nesta transferência da África para o Brasil a sua importância e centralidade, mas perderam-se partes do culto”. (BERKENBROCK, 1999, p. 112.).

[3] Câmara Cascudo (2000, p. 606), diz que se conhece o iorubano ou nagô “como todo negro da Costa dos Escravos que falava ou entendia o ioruba. […] Abundantemente exportados para o Brasil, os nagôs tiveram prestigiosa influência social e religiosa entre o povo mestiço, conservando, com os processos de aculturação, seus mitos e tradições sacras. Localizados, em maior porção, na Bahia […], [é] o grupo negro mais conhecido em seu complexo social vivo. A persistência nagô determina o candomblé, macumba, catimbó, xangôs, sinônimo do primeiro vocábulo, reunião do seu cerimonial”.

[4] Nas citações extraídas de Verger (2000), optei por manter a grafia dos vocábulos iorubás conforme citado por ele. Assim, nos depararemos com certas palavras escritas nessa língua.

[5] Segundo Morais (2006), esse grupo pertence à nação angola, de tradição banta, cujos fiéis praticam o candomblé e também são adeptos da umbanda, religião afrobrasileira igualmente sincrética: com elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista e das culturas indígenas e africanas. Um dos elementos comuns a essas duas religiões, dentre vários, é o culto aos orixás. E uma das diferenças está na forma de rezar. No candomblé, há um predomínio de expressões africanas. Na umbanda, as cantigas são cantadas em português.

[6] “Autoridade máxima de um terreiro (quando se trata de um homem) e dirigente do culto no Candomblé”. (BERKENBROCK, op. cit., p. 440).

[7] Ialorixá é a mesma coisa que mãe-de-santo. Todavia, no espetáculo do Giramundo, o nome Ialorixá, além de se referir à função exercida por determinada pessoa, também indica o nome de uma personagem.

[8] APOCALYPSE, Álvaro. In: MARTINS, 2001. Magazine – Fim de semana. p. 13.

[9] PAULO, 2001. Em Cultura/Crítica Teatro.

[10] NETO, Henrique. In: MARTINS, Alexandra, 2001. Magazine.

[11] APOCALYPSE, Álvaro. In: CARLOS, Helvécio, 2001. Em Cultura.

[12] Informação disponível em: <http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/>. Acesso em: 04 set. de 2010.

[13] “Nos princípios”. Tradução minha realizada por meio de fragmentos encontrados no dicionário Yoruba – Português. Disponível em: <http://www.baradoloju.xpg.com.br/dicionario_yp.htm>. Acesso em: 28 de jul. 2010.

[14] Prandi, op. cit., p. 196-198 e 502-506.

[15] Oriki (saudação ou evocação) da umbanda para Oxalá: “Êpa, papai Oxalá”. Tradução minha a partir de SILVA (196-, p. 40). O oriki citado encontra-se em: APOCALYPSE, A. (2010, p. 1).

[16] APOCALYPSE, A., 2010, p. 2.

[17] Ibid, p. 3.

[18] Ibid, p. 5.

[19] Ibid, loc. cit. Itálicos meus.

[20] Ibid, p. 7.

[21] Prandi, op. cit., p. 567.

[22] Prandi (op. cit., p. 566) menciona o nome Iaô (iyawó): “esposa jovem; filha ou filho-de-santo; grau inferior da carreira iniciática dos que entram em transe de orixá”. Contudo, o nome Iawô, no texto Os Orixás, foi dado por Álvaro. Assim, parecem existir pequenas contradições nesse texto: enquanto na cena IV é mencionado que os humanos criados por Oxalá são Okurin (homem) e Obinrin (mulher), na cena XXVI o casal que é juntado por Exu é Okurin e Iawô.

[23] “Vassoura-cetro de Omulu” (ibid., p.570).

[24] Apocalypse, A., op. cit., p. 8.

[25] Prandi (2001) aponta vários nomes para Exu: Exu Bará, Exu Eleguá, Exu Legbá e Exu Elegbará. Esse fato é devido à representação deste orixá em mitos de diversas nações africanas: como, por exemplo, as nagôs e jejês.

[26] Prandi, op. cit., p. 75.

[27] Ibid., p. 48.

[28] Apocalypse, A., op. cit., p. 17.

[29]  Ibid., p. 18.

[30] Prandi, op. cit., p. 89-91.

[31] Camarinha ou roncó: “Termo pelo qual se designa o aposento destinado à reclusão dos neófitos durante o processo de iniciação. É conhecido também como aliaxé ou ariaxé, […] ou ainda axé” (CARVALHO, op. cit., p. 238.).

[32] Segundo Berkenbrock (op. cit., p. 440), bori quer dizer, literalmente: “dar de comer à cabeça. É o segundo rito no processo de iniciação no Candomblé e tem por objetivo fortalecer a cabeça do iniciando para receber o Orixá”.

[33] Saudação.

[34] Na umbanda, “o ‘amaci’ é uma infusão de ervas maceradas em água, cujo preparo obedece a preceitos rigorosos, destinada à lavagem periódica da cabeça dos médiuns”. (SILVA, op. cit., p. 66.).

[35] Ibid, p. 570.

[36] Ibid., loc. cit.

[37] Apocalypse, A., op. cit., p. 23.

[38] Fio-de-contas – “Nome dado, no Candomblé, aos colares rituais, nas cores dos orixás. Quando o colar tem 16 fios é dito dilogum, sendo arrematado com uma “firma” (conta cilíndrica) do orixá”. (CARVALHO, op. cit., p. 216).

[39] Prandi, op. cit., p. 273 e 332.

[40] “Para os Yoruba a morte não é o fim, ou melhor, a morte não representa uma extinção eterna de vida humana. Acredita-se que há vida após a morte e que [os] membros que partiram, foram para descansar. Quando os antepassados quiserem voltar para ilé ayé – o mundo, eles podem reencarnar [na] mesma família”. (ATINÚKÉ: A Cerimônia de Batismo, Nomes Yorùbá e a Concepção da Morte na Cultura Yorùbá. (Artigo). Belo Horizonte: Instituto de Arte e Cultura Yorùbá, 2009, p. 12. Disponível em: <http://www.institutoyoruba.com&gt; Acesso em: 11 ago. 2010. Para acessar este artigo é preciso fazer um cadastro no site).

[41] Apocalypse, A., op. cit., p. 26.

[42] Ibid., p. 27.

[43] Ibid., p. 28.

[44] Ibid., p. 29.

[45] Prandi, op. cit., p. 567.

[46] Ibid., p. 114, 120, 136, 137 e 140.

Crônicas de um festival

 

 

Durante os dias 21 e 27 de outubro de 2017 aconteceu, em Porto Velho, Cacoal, Rolim de Moura, Guajará-Mirim, Ji-Paraná e Vilhena o III Festival Unir Arte e Cultura da Fundação Universidade Federal de Rondônia. Tal festival é uma ação da Pró-Reitoria de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis dessa universidade e tem como coordenadora geral a Pró-Reitora Marcelle Regina Pereira. Eu sou o Coordenador do Eixo Circo/Teatro/Dança de Porto Velho. Além disso, enquanto artista e escritor/pesquisador, contribuí com diversas atividades culturais. Gostaria, neste post, de relatar e analisar criticamente algumas delas.

Para a abertura do evento, ocorrida no Teatro Guaporé, com a preciosa contribuição do iluminador Edmar Leite e do Coordenador de Eixo Música Márcio dos Anjos, o trabalho realizado foi a direção de palco dos shows e concertos musicais apresentados. Das 08:00 às 22:00 hs concentramos nossos esforços para que a iluminação e a entrada e saída de artistas do palco fosse harmoniosa e precisa. Contudo, a primeira apresentação artística do festival aconteceu no Saguão do Teatro. Trata-se de “Das Dores”, teatro performativo desenvolvido pela atriz/performer Taiane Sales, sob minha direção artística e orientação acadêmica, pois esse espetáculo é o Trabalho de Conclusão de Curso da aluna defendido junto ao Curso de Licenciatura em Teatro da UNIR. Concentrada e emocionada, a aluna-atriz realizou uma das suas melhores apresentações. O público se emocionou com a história de “Das Dores”, que figura e apresenta variados tipos de violências pelas quais passam as mulheres.

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Das Dores, com Taiane Sales. Foto: Anne Salles.

Já no dia seguinte, domingo, além de “Das Dores”, foram apresentadas ainda, no CEU  (Centro de Artes e Esportes Unificados) Zona Leste, a performance “Pela Pele da Mulher”, da atriz e performer Jaqueline Luquesi, sob direção de Taiane Sales, e “O Poder do Mosquito na Sociedade”. Este último é um mini espetáculo de Lambe-Lambe, voltado para crianças e adultos, de Vavá de Castro (Tia Vavá dos Bonecos), apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso, sob minha orientação, para o encerramento do Curso de Teatro da UNIR. O público para essas apresentações foi pequeno, mas importante, pois sempre digo aos meus alunos que a quantidade de espectadores não pode influenciar na qualidade da execução artística da obra apresentada. E foi isto que aconteceu: tanto Taiane como Jaqueline e Vavá se entregaram de corpo e alma ao seu público. Aliás, aproveito o momento para agradecer a todos os monitores que acompanharam as atividades do dia, em especial a Edmar Leite (que cuidou, sozinho, da iluminação!), Victor, Ádamo Teixeira e Stéphanie Santos. Um muito obrigado também ao Jacim, coordenador do CEU, que, juntamente com toda a equipe, nos recebeu com muito carinho e profissionalismo.

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Pela Pele da Mulher, com Jaqueline Luquesi. Foto: Agenda Porto Velho.
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Tia Vavá em apresentação de Lambe-Lambe na UNIR. Foto: extraída do Facebook da atriz-manipuladora. Sem referência a autoria.

Ainda no domingo, porém, no período noturno, realizei o lançamento de dois livros no SESC Esplanada: “Representações Culturais no Giramundo Teatro de Bonecos” e “Eid Ribeiro e o Armatrux em Processo: o objeto flutuante entre a poética e a estética teatral”. O primeiro é resultante da minha pesquisa de mestrado. Já o segundo da minha pesquisa de doutorado. Ambas realizadas no Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, sob orientação de José Ronaldo Faleiro (e coorientação de Vera Colaço) e Brígida Miranda (e coorientação de Wagner Cintra), respectivamente. 

 

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Saindo um pouquinho do Eixo Artes Cênicas, e adentrando o Eixo Audiovisual, na segunda-feira, 23/10/17, foi exibido o documentário “Rondônia: um Estado de Delícias Culinárias”. Para este trabalho escrevi o roteiro e fiz a direção de atuação. A direção geral foi de Ivan Souza. Protagonizando o documentário encontra-se Cassandra, personagem do espetáculo “Cassandra, BR-trans-amazônica”, interpretada pelo ator Junior Lopes. Muitos alunos do Curso de Licenciatura em Teatro da UNIR participaram como elenco de apoio. Enfim, trata-se do meu primeiro documentário enquanto roteirista e diretor. Foi muito prazeroso participar do processo de gravação desse trabalho, que será exibido também nos Estados Unidos, em Framingham, dentro da programação da “Feira Cultural Brasil & Estados Unidos: the Best of Brazil and USA”.

Documentário

Voltando às Artes Cênicas, na terça-feira, 24/10/17, na Sala do Piano da UNIR Centro, aconteceram três apresentações: A Velhinha que Dava Nome às Coisas, com encenação de Vavá de Castro e atuação de Téo Nascimento; La, espetáculo de dança contemporânea do Coletivo Aurora; e um Ensaio Aberto de “Inimigos do Povo”, da Trupe dos Conspiradores, sob minha encenação.  O primeiro trabalho, uma cena curta, criado nas disciplinas de encenação do Curso de Teatro da UNIR, das quais sou professor, tem ganhado asas e voado lindamente. A encenação de Vavá de Castro está cada vez mais madura e a atuação de Teo Nascimento ainda mais delicada e humana.  A boa notícia é que as duas artistas resolveram transformar a cena curta em um espetáculo e agraciar o público de Porto Velho, e quiçá o de Rondônia e do Brasil, com reflexões acerca da terceira idade, dentre outras temáticas.

20140104_1995512470668328_5121261047668435017_nTeo Nascimento em A Velhinha que dava nome às coisas. Encenação: Vavá de Castro. Foto sem referência a autoria.

La é um interessantíssimo espetáculo de dança contemporânea em processo de criação. O Coletivo Aurora (de Porto Velho, já que existem outros de mesmo nome espalhados pelo Brasil), que tem entre os seus membros as dançarinas Andréa Melo, Aline Monteiro e Rebeca Moriae, coloca em cena corpos femininos decididos, independentes, belos e resistentes. A temática feminista dá o tom (preto, branco e vermelho) do espetáculo!

 

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O último trabalho apresentado na terça-feira foi o ensaio aberto de Inimigos do Povo, da Trupe dos Conspiradores. Como o espetáculo de dança La, esse espetáculo teatral também está em processo de gestação e conta com a contribuição de diversos artistas de Porto Velho. A saber:

Encenação e dramaturgismo – Luciano Oliveira

Assistência de Encenação – Sheila Souza

Direção e produção de vídeo – Ivan Souza

Cenografia – Elcias Villar

Indumentária – Selma Pavanelli

Produção – Flaw Naje

Iluminação – Edmar Leite

Preparação Corporal – Luiz Lerro

Diagramação: Leandro Almeida

Elenco: Ádamo Teixeira,  Andrelina Lúcia de Paiva,  Enderson Vasconcelos, Jamile Pereira Soares, Stephanie Dantas e Vavá de Castro.

A Trupe dos Conspiradores está montando, há oito meses, Inimigos do Povo, espetáculo de estética contemporânea livremente inspirado na obra Um Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, que trata do conflito existente entre o indivíduo, o Dr. Stockmann, e a coletividade, a população de uma pequena cidade-balneário da Noruega, que transforma o único médico local em um inimigo do povo. Isso por acreditar que as águas que serviam os banhos públicos, fonte de riqueza para toda a cidade, estavam contaminadas. O médico se sente na obrigação de propagar a verdade. Todavia, a sua denúncia, a ser publicada em forma de carta no “Jornal A Voz do Povo”, poderá fechar o balneário por dois anos. O lucro da população com o turismo, principalmente o dos poderosos, estaria comprometido. Porém, não denunciar o fato vai contra as suas aspirações. A poluição das águas é uma metáfora para denunciar a sujeira na estrutura social daquela cidade. A teimosia do Dr. em fazer triunfar a verdade faz dele uma pessoa não grata, ainda mais após dizer que os valores da cidade estão amparados na mentira e de afirmar que o povo, ao contrário do que diz o senso comum, não tem a razão. Ele se torna um inimigo do povo, vítima da maioria e da unanimidade.

A montagem que propomos, além das temáticas notadas no texto de Ibsen, desenha um paralelo com a atual situação político-econômico-social brasileira. De modo parecido ao que pensava Brecht, teatrólogo alemão, cremos que o teatro diverte e faz o espectador refletir, criticar e mudar a realidade social da qual integra. Nesse sentido, o teatro se faz urgente e necessário!

 

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Na quarta-feira, 25/10, “O Poder do Mosquito na Sociedade”, de Vavá de Castro, foi apresentado na Laio Escola de Música (Zona Sul da capital). E, no dia seguinte, se não fosse a agressividade e grosseria de um sujeito mal educado, que expulsou todos os artistas e o público que estava no local, baixando, antes do horário, as portas metálicas do mercado, o Teatro Lambe-Lambe de Tia Vavá dos Bonecos também aconteceria no Mercado Cultural.

Por fim, e não menos importante, uma apresentação surpresa, na quarta-feira, da performance/instalação “Quem?”, encenada por Andrelina Paiva e performada por Sheila Souza, no Museu da Memória Rondoniense. Pelo fato do trabalho ter agradado tanto à coordenação do Museu, em especial à Ednair Rodrigues (a quem muito agradecemos!), fomos convidados a apresentar mais duas vezes lá: na quinta e sexta-feira, dias 26 e 27 de outubro. Uma plateia escolar de adolescentes animou, no último dia, a apresentação da intrigante “Quem?”.

 

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Texto, censuras e cesuras: na superfície, na alma e no fundo de Um Baú de Fundo Fundo

Resumo expandido comunicado no VIII Congresso da ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas) – GT Teatro Brasileiro, realizado em Belo Horizonte, de 31/10 a 04/11/2014.

___________________________

OLIVEIRA, Luciano. Texto, censuras e cesuras: na superfície, na alma e no fundo de Um Baú de Fundo Fundo. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina; CAPES; bolsista de Doutorado; José Ronaldo Faleiro. Diretor, ator, professor e produtor de Teatro.

RESUMO

 

Um Baú de Fundo Fundo é um espetáculo infantil, ainda ativo, montado em 1975 pelo Giramundo Teatro de Bonecos. No seu texto, ocorre a representação escrita e oral do modo de falar, de pensar e de viver típicos dos habitantes do interior de Minas Gerais. Além disso, é notória a figuração de personagens representantes da ditadura militar brasileira e do desejo de liberdade de expressão e de pensamento. Madu, que escreveu algumas passagens desse texto, que é de autoria de Álvaro Apocalypse, dá informações preciosas dos seus processos de escrita, além de pontuar como burlaram os cortes feitos pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Estado de Minas Gerais. Enfim, neste artigo é feita ainda uma breve análise de consequências dos anos de chumbo para o teatro brasileiro.

Palavras-chave: Teatro político infantil. Crítica. Emílio Garrastazu Médici.

ABSTRACT

 

Um Baú de Fundo Fundo” is an active child spectacle nowadays, created in 1975 by “Giramundo Teatro de Bonecos”. In its text it is seen, a written and oral representations in a manner of speaking, thinking and living of a typical Minas Gerais state´s  people. Beyond that, the figuration of representatives’ characters of   Brazilian military dictatorship and the desire for freedom of expression and thought is very clear. Madu, who wrote passages for this text, which is authored by Álvaro Apocalypse, gives valuable information of their writing processes, as well as mocked the cuts made by the “Divisão de Censura de Diversões Públicas” (DCDP) of Minas Gerais. Finally, it is made a brief analysis from the consequences for the hard years of   Brazilian theater throughout this article.

Keywords: Political child theater. Criticism. Emílio Garrastazu Médici.

Um palhaço chamado Libório chega para fazer uma apresentação em Pedra Furada, uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. No entanto, ele é proibido pelo Delegado Godofredo de se apresentar, pois, nesta cidadezinha, não se podia cantar, não se podia ler poesia, não se podia fazer coisa nenhuma. Além de delegar, Godofredo também acumulava os principais cargos públicos da cidade, criando uma ditadura que impedia a liberdade de expressão e coibia o direito de ir e vir da população. Onde se ia, o Guarda, braço direito de Godofredo, estava a postos para fazer cumprir o regulamento. Todos os lugares eram vigiados, dia e noite. Mas, no fundo de um baú de fundo fundo, uma espécie de caixa de surpresas e de magia, trazida pelo palhaço Libório, encontravam-se as ideias e manifestações artístico-culturais que, enfim, abririam a cabeça do tirano “pedrafuradense”. Esta é a história que nos conta Álvaro Apocalypse e Maria Vivacqua Martins (Madu)[1], com a peça Um Baú de Fundo Fundo (1975).

Esse texto, quase em sua totalidade, foi escrito por Álvaro Apocalypse. Entretanto, o trecho a seguir, em que o palhaço Libório se apresenta ao público, foi elaborado por Madu:

 LIBÓRIO: Cheguei. Enfim cheguei. (Salta para fora do baú). Ai, cheguei […] Isso aqui é uma cidade… e naturalmente sou um boneco, como todos podem observar. E um boneco é um ser especial, real, evidentemente, embora viaje em baús e se alimente do sonho, do riso e da fantasia! Ah, tenho também um coração, pequeno por dentro, mas imenso por fora. Um verdadeiro coração de boneco: sem cola, sem pregos e sem parafusos – tesouro ilimitado que herdamos da natureza humana. […]. (APOCALYPSE e MARTINS, 1974, p. 02).

 Para a elaboração desse texto, que tem várias versões disponíveis no Museu Giramundo, Madu disse que ela e Álvaro partiram das pesquisas que fizeram acerca das culturas mineiras e brasileiras:

Nós conhecíamos um folclorista, […] que nos deu vários livros e histórias que ele recolhia. Então nos baseamos nisso. Porque você tem que buscar as histórias que existem no imaginário, né? Mas alguém tem que escrevê-las. Aí usamos as linguagens da Iara […]. Começamos a procurar alguns desses esquetes e fizemos, por exemplo, o Pescador do São Francisco. Procurávamos por situações brasileiras e por algumas coisas do imaginário popular. (MARTINS, 2009, entrevista).

 Diferentemente do que Madu disse, nessa cena do Pescador, nota-se a figuração da lenda da Mãe d’água e não da Iara.

Das inúmeras cópias de Um Baú de Fundo Fundo encontradas, escolhi uma datilografada que contém a marca de um carimbo com uma assinatura de um censor da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Departamento de Polícia Federal (DPF) do Estado de Minas Gerais. Além disso, essa cópia traz, em diversas páginas, marcações e indicações de cortes feitos pela DCDP mineira. Creio que essa intervenção da censura se deu dias antes da estreia do espetáculo, que ocorreu em junho de 1975. De acordo com Madu, nessa época era muito comum a apresentação de espetáculos exclusivamente para a avaliação dos censores, dois ou três dias antes da estreia.[2] Contudo, é difícil precisar corretamente o dia da ação da censura haja vista o carimbo da DPF não conter nenhuma menção à data.

As figuras 1 e 2 ilustram alguns cortes indicados pela DCDP mineira a serem feitos pelo Giramundo. A primeira delas constitui um carimbo − com um visto − que mostra o número da folha. Já na segunda figura observamos um retângulo feito à caneta pelos censores, além da palavra corte, também à caneta, escrita na vertical.

Carimbo da censura corte

Figuras 1 e 2: Carimbo da censura prévia da DCDP (folha 2) e corte na nona página do texto Um Baú de Fundo Fundo (1974-1975). Fonte: APOCALYPSE e MARTINS, 1974, p. 02 e 09.

Apesar dos cortes indicados, Madu disse que o Giramundo fez o espetáculo na íntegra:

[…] Tínhamos que conseguir um dia só para fazer pra “bosta” da censura. Sentavam dois idiotas lá na frente, ficavam perguntando e cortando as coisas. Mas fazíamos do mesmo jeito. (Risos). […] Se a gente conseguisse explicar iríamos conseguir a liberação. [Mas], se tivéssemos que montar com os cortes da censura, não faríamos. E é um texto imenso. […] Nunca obedecemos. A gente sempre fez. Cortaram, mas fizemos. […] Nunca tivemos problemas porque eles [não] iam aos teatros. (MARTINS, 2009, entrevista).

  Um Baú de Fundo Fundo é um texto politicamente ativo, pois os autores fazem uma crítica muito inteligente e divertida aos atentados contra a liberdade de expressão e de pensamento que ocorriam durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Os personagens Libório, Delegado e Guarda são bons exemplos disso. Já no início do texto, como num interrogatório policial, o Delegado Godofredo passa em revista, junto ao Guarda, a situação da cidadezinha Pedra Furada:

GUARDA: [Imitando um trem de ferro] Tudo em ordem, tudo em paz, tudo em ordem, tudo em paz, tudo em ordem, tudo em paz… (entra o Delegado).

DELEGADO: Alto lá.

GUARDA: Cheguei no horário […].

DELEGADO: […] Como está a cidade?

GUARDA: Tudo em ordem, tudo em paz […].

DELEGADO: E o povo da cidade?

GUARDA: Em casa, conforme o regulamento.

DELEGADO: […] E as pessoas? […] Como se comportaram?

GUARDA: Acordaram, tomaram café, foram para o trabalho, trabalharam, almoçaram, tornaram a trabalhar, voltaram para casa, jantaram, deitaram, dormiram. Como ontem, como sempre.

DELEGADO: […] Ninguém cantou?

GUARDA: Não ouvi.

DELEGADO: Bem. Uma cidade como deve ser: todo mundo em casa, sem meninos nos muros, nada de cantorias, versos e outras maneiras de perder tempo que os poetas inventaram. Um dia de trabalho, uma noite de sono. Eis o nosso lema, soldado. (APOCALYPSE e MARTINS, 1974, p. 1).

O Baú de Fundo Fundo foi escrito durante a ditadura civil-militar do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), que governou o Brasil entre 1969 e 1974. Entretanto, o espetáculo foi estreado quando da presidência do general Ernesto Geisel (1907-1996), que ocorreu entre 1974 e 1979. Geisel deu continuidade a uma abertura política “lenta, gradual e segura” (SILVA apud LINHARES, 1990, p.374) no Brasil. Essa transição levou 15 anos para ser completada, estendendo ainda mais o período ditatorial. Tanto que, em 1979, o espetáculo Cobra Norato do Giramundo, por exemplo, ainda seria censurado.

A ditadura civil-militar no Brasil teve início em 1964, com um golpe que depôs o então presidente João Goulart (1919-1976), o “Jango”, e levou ao poder o general Humberto de Allencar Castelo Branco (1897-1967), que se tornou o primeiro presidente do regime militar brasileiro. Iniciou-se, assim, um período de mais de 20 anos de arbitrariedades, nos quais vários militares revezaram-se na presidência do país.

Dentre as ações arbitrárias, nos primeiros anos da ditadura, destacam-se: ocupação e destruição de sedes de rádios, jornais, sindicatos trabalhistas, organizações estudantis (como a União Nacional dos Estudantes – UNE) e universidades. Ao mesmo tempo, morte e desaparecimento de inúmeras lideranças sindicais, estudantis e camponesas, assim como a deposição de governadores eleitos. E, por fim, a dissolvição de partidos políticos.

A partir de 1968, de acordo com Silva (apud LINHARES, 1990, p.370), “o regime se institucionalizou”. Isso fez com que a resistência civil se tornasse mais forte e ocupasse as ruas das cidades, os palcos e as salas de aula. Inúmeros conflitos de rua sucederam-se. Em resposta a esses conflitos é editado o Ato Institucional nº 5, “instrumento básico, doravante, da ação da ditadura, que fecha o Congresso, cassa inúmeros mandatos parlamentares, estabelece a censura prévia, os inquéritos militares sigilosos” (SILVA apud LINHARES, 1990, p.368).

Agora, permita-me um aparte, um anacronismo e uma experiência: colocarei o palhaço Libório como um militante que participa de movimentos de resistência à ditadura civil-militar, nas ruas de uma supostamente pequena Belo Horizonte, no final da década de 1960:

LIBÓRIO: (Vai para o meio da rua) Povo desta cidade, neste baú eu tenho um remédio para vocês! Basta somente que…

DELEGADO: Alto lá! Alto lá!

LIBÓRIO: Epa!

DELEGADO: Quem é o senhor, de onde vem, para onde vai? Apresente seus documentos, ande, depressa. Idade? Profissão? Número do CPF. Rápido. Rápido!

LIBÓRIO: Documentos?

DELEGADO: Sim, documentos. Carteira profissional, imposto, seguro…

LIBÓRIO: Mas que documentos? Não sou gente, sou um boneco. […] Nunca vi bonecos com documentos. Documento.

DELEGADO: Alto lá. Eu também sou boneco e tenho documentos. […] Nota fiscal é documento. […] Ora essa. De-sa-ca-to! Puro desacato. (APOCALYPSE e MARTINS, 1974, p. 5).

Voltando à ditadura civil-militar. Em 1969, um “golpe dentro do golpe” (SILVA apud LINHARES, 1990, p. 371) leva ao poder o general Médici. Assim, os cinco anos seguintes constituiriam a fase mais radical do regime militar, na qual o desaparecimento de oponentes políticos, militares, artistas, jornalistas e escritores suceder-se-iam com frequência. Logo, a repressão abate-se, também, sobre os intelectuais, artistas de diversas áreas e estudantes, principalmente universitários. Obras teatrais foram proibidas, teatros foram invadidos e teatrólogos, como Augusto Boal, em 1971, foram expulsos do país. Aliás, Álvaro Apocalypse, em 1969, precisou sair do país, conforme atesta Martins (2009, entrevista):

O Álvaro foi para a Europa praticamente fugido, porque estava listado para ser preso. Por sorte, e isso foi uma coisa de Deus, ele ganhou uma bolsa para o Salão da Cultura Francesa e a Teresa ganhou outra para o Salão Universitário. Porque ele não tinha dinheiro para fugir pro exterior não.

A ditadura civil-militar no Brasil só terminou em 1985, com a eleição indireta[3] para presidente de Tancredo Neves (1910-1985), após o movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil: o “Diretas Já” (1983-1985).

É claro que, permitindo-me uma licença poética, Libório participou desse movimento, mesmo que de forma indireta, pois, nesse período, o Baú ainda girava pelos palcos brasileiros. Mas o Delegado, que também era o prefeito, o promotor e o juiz de Pedra Furada na alma, tentou impedir que as ideias libertárias do palhaço chegassem até os cidadãos pedrafuradenses, proibindo as suas apresentações artísticas:

DELEGADO: O que há neste baú?

LIBÓRIO: Não posso dizer.

DELEGADO: Tem que dizer.

LIBÓRIO: Não posso porque é surpresa. Faz parte do espetáculo.

DELEGADO: Surpresa não existe e espetáculos são proibidos a esta hora. (APOCALYPSE e MARTINS, 1974, p. 6).     

       

E será que o Delegado Godofredo e o seu comparsa conseguiram impedir Libório de libertar Pedra Furada da opressão?

Muito pelo contrário, foi o palhaço, com o seu otimismo e com mensagens de amor, arte e imaginação — que lembram frases do escritor francês Saint-Exupéry (1900-1944) — que conseguiu mudar o caráter do ditador e fez com que as pessoas da cidade voltassem a sorrir, festejar e contar histórias. Logo, a cidadezinha ficou mais florida e mais colorida e pode abrir suas portas para as representações artísticas que há muito não aconteciam.

 

NOTAS:

[1] Madu, Álvaro Apocalypse e Tereza Veloso foram os fundadores do Giramundo Teatro de Bonecos, no final da década de 1960, em Lagoa Santa, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte. Um Baú de Fundo Fundo foi o quarto espetáculo do grupo, estreado em 1975. Contudo, o texto foi escrito alguns anos antes, no início da década de 1970.

[2] Madu me passou essa informação por telefone, no dia 15 de abril de 2010, por volta das 11 horas.

Referências bibliográficas

 

APOCALYPSE, Álvaro; MARTINS, Maria do Carmo Vivacqua. Um Baú de Fundo Fundo: peça para teatro de bonecos (texto datilografado). Giramundo Teatro de Bonecos: Lagoa Santa, 1974.

MARTINS, Maria do Carmo Vivacqua (MADU). Processos criativos, cultura, identidade e nacionalismo em Um Baú de Fundo Fundo e em Cobra Norato. Entrevista oral concedida a Luciano Oliveira. Lagoa Santa, 25 de jul. de 2009. Entrevista não-publicada.

SILVA, Francisco C. T. A Modernização Autoritária: do Golpe Militar à Redemocratização 1964/1984. In: LINHARES, Maria Yedda (org.) et al. História Geral do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.

Breve Histórico do Giramundo Teatro de Bonecos

Pinocchio
Pinocchio – Foto de Pedro Motta

Artigo publicado nos anais eletrônicos da Memória ABRACE Digital (ISSN: 2176-9516), em virtude da VII Reunião Científica da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE)

 Disponível em: <http://www.portalabrace.org/memoria/viireuniaoteatrobrasileiro.htm>. Acesso em 06/05/2014.

 

OLIVEIRA, Luciano. Breve Histórico do Giramundo Teatro de Bonecos. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina; CAPES; bolsista de Doutorado; Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro. Diretor, ator, professor e produtor de Teatro.

 

RESUMO

 

Este artigo é um subitem do primeiro capítulo da dissertação Representações Culturais no Giramundo Teatro de Bonecos: um olhar de Brincante sobre os textos, personagens e trilhas sonoras de Um Baú de Fundo Fundo, Cobra Norato e Os Orixás; defendida, em 2010, na UDESC. O Giramundo, importante grupo brasileiro de Teatro de Animação, foi fundado no final da década de 1960, na cidade de Lagoa Santa, Minas Gerais, pelos artistas plásticos Álvaro Apocalypse, Teresinha Veloso e Maria Vivacqua Martins e também professores da Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG. Desde 1976, o grupo encontra-se sediado em Belo Horizonte. Com 44 anos de existência, já montou 36 espetáculos, destacando-se, dentre outros, o Cobra Norato (1979), espetáculo ganhador de vários prêmios e que representou o Brasil em inúmeros festivais internacionais de teatro.

 

Palavras-chave: Escola Giramundo. Museu Giramundo. Teatro Giramundo.

 

ABSTRACT

 

This article is a subitem of the first chapter of the dissertation “Representações Culturais no Giramundo Teatro de Bonecos: um olhar de Brincante sobre os textos, personagens e trilhas sonoras de Um Baú de Fundo Fundo, Cobra Norato e Os Orixás”; defended, in 2010, at the “Universidade do Estado de Santa Catarina”. The “Giramundo”, a important Brazilian group of Animation Theater, created in the late 1960s, in Lagoa Santa city, Minas Gerais state, by plastic artists Álvaro Apocalypse, Teresinha Veloso and Maria Vivacqua Martins and also professors of the School of Fine Arts of “Universidade Federal de Minas Gerais” (UFMG). Since 1976, the group is headquartered in Belo Horizonte city. With 44 years of existence, has already set up 36 spectacles, highlighting, among others, the “Cobra Norato” (1979), spectacle that won numerous awards and represented Brazil in several international theater festivals.

Keywords: School Giramundo. Museum Giramundo. Theatre Giramundo.

As primeiras incursões do Giramundo ocorreram nos idos da década de 1960, em Lagoa Santa, Minas Gerais. Pelas mãos firmes que seguram os remos, pelas bússolas e pelos astrolábios mágicos dos “remadores”, artistas plásticos e professores da Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG, Álvaro Apocalypse (nascido em 1937 e falecido em 2003), Tereza  Apocalypse (nascida em 1936 e falecida também em 2003) e Maria Vivacqua Martins (nascida em 1945), a Madu, o Giramundo começou a navegar.

Segundo Malafaia (2006) o Giramundo sempre esteve ligado ao trabalho e pensamento de Álvaro: artista plástico, ilustrador, diretor de teatro, cenógrafo, professor, muralista, museólogo e publicitário. Entretanto, ao lado desse grande artista, nascido na mineira Ouro Fino, sem cessar — e incondicionalmente — estiveram Tereza Apocalypse, a sua eterna e amada esposa, e Madu, “filha adotiva”, oriunda da EBA.

Para Apocalypse (1981), o Giramundo nasceu da ideia de se estudar o teatro de bonecos como linguagem cênico-visual, ou seja, como maneira de se pesquisar a forma em movimento.

Quanto ao lugar onde o grupo inicialmente lançou âncoras, foi numa casa de campo em Lagoa Santa. Ali também ficava a oficina onde foram produzidos os primeiros bonecos, ainda toscos, da companhia. De acordo com Sampaio (2001), os recursos eram mínimos: martelo, serrote, arame, prego, papel, cola, madeira e retalhos de tecidos. Contudo, pelo que parece, todas as coisas eram feitas com muito entusiasmo. Isso, durante os sábados e domingos, haja vista as atividades semanais da tríade na EBA, em Belo Horizonte. Conforme Malafaia (2006, p. 183), os bonecos, ou melhor, as “cabeças espetadas em cabos de vassouras”, se misturavam aos filhos e sobrinhos da família, plateia primeira do que viria a ser um dos mais importantes grupos do Teatro de Animação brasileiro.

Desse modo, sem maiores pretensões, começavam as descobertas iniciais do barquinho que conquistaria mares inimagináveis: “Queríamos apenas divertir a meninada, com uma brincadeira diferente. Mas o sucesso foi imenso, e a novidade foi passada de boca em boca. [Todos queriam ver, disse Álvaro].” (SAMPAIO, 2001, p.02).

Por meio das diversões e travessuras com aqueles bonecos rústicos, “mas, desde já com a marca que faria do Giramundo um estilo e uma referência importante no Teatro de Bonecos: o desenho que antecipa e a concepção do boneco como obra de arte” (MALAFAIA, 2006, p. 183), surgiu A Bela Adormecida, primeira montagem do grupo, estreada no Teatro Marília, em 5 de maio de 1971. Nesse mesmo ano, ela integrou a mostra Collection Brésil, Cité Internationale, em Paris. Aí começaram as excursões internacionais do Giramundo, pequena embarcação, hoje belo-horizontina, mas com alma e coração lagoassantense, que rapidamente giraria o mundo: Argentina, Uruguai, França, Bulgária, Estados Unidos, Itália, Suíça, Venezuela e assim por diante.

Até 1976 o Giramundo concentrou as suas produções na casa de campo em Lagoa Santa. Ao todo foram seis montagens: A Bela Adormecida (1971), Aventuras no Reino Negro (1972), Saci Pererê (1973), Um Baú de Fundo Fundo (1975), A Bela Adormecida (remontagem de 1976) e El Retablo de Maese Pedro (1976). Essa fase, chamada por Malafaia (2006) de “período Lagoa Santa”, foi de fundamental importância para a sobrevivência e para o crescimento do grupo, pois Álvaro, Tereza e Madu conseguiram desenvolver mecanismos próprios de autogestão da companhia.

Madu, em entrevista concedida a mim, contou um pouco sobre como faziam para manter o grupo naquela época:

Trabalhamos durante muitos anos sem receber nada. E o que ganhávamos, repúnhamos para o próprio grupo. Foi assim que conquistamos um acervo, holofotes… O Giramundo era independente. A gente ia se apresentar e levava a nossa tralha toda, não necessitávamos de nada do local. Até porque o teatro de bonecos estava nascendo no Brasil e era muito difícil de conseguir montar um espetáculo sem estar com a sua tecnologia debaixo do braço. (MARTINS, 2009, entrevista).

Além do financiamento das montagens com recursos próprios, outra característica desse período, ainda conforme Malafaia (2006), foi a aproximação de novos colaboradores ao Giramundo, principalmente a do iluminador Felício Alves.[1] Finalmente, para esse mesmo autor, a criação de textos por Álvaro — e, acrescento, por Madu —, o destaque especial dado à cultura popular brasileira e o uso de trilha sonora gravada caracterizaram os momentos consecutivos do grupo.

Em seguida, devido ao grande sucesso de El Retablo de Maese Pedro, apresentado no Festival de Inverno de Ouro Preto, promovido pela UFMG, em 1976, o Giramundo foi convidado a instalar sua oficina em espaço anexo à EBA. Essa seria a segunda fase da trajetória do grupo, denominado por Malafaia (2006) de “período universitário”(1976-1999).O barquinho já não comportava tanta gente e tantos bonecos: era preciso expandir-se.

Madu fala um pouco sobre esse período:

Em 77 foi feito um convênio da universidade com o Giramundo que nos permitiu usar parte do nosso tempo para produzir o grupo. [Entretanto] a universidade nunca patrocinou o Giramundo, como se diz muito por aí. Mas ela nos permitiu que utilizássemos esse tempo para pesquisa e nos deu um espaço. (MARTINS, 2009, entrevista).

Durante os vinte anos em que os comandantes e fundadores do Giramundo estiveram juntos[2] na UFMG, deram vida a centenas de personagens, aprimoraram as técnicas de construção e de manipulação de formas animadas, sistematizaram métodos e produziram espetáculos de excepcional qualidade técnica, que elevaram a companhia a um patamar de excelência mundial. Muitos desses espetáculos foram aclamados pela crítica e pelo público, outros agradaram somente a crítica e, por fim, alguns contentaram apenas o público. A saber: El Retablo de Maese Pedro (1976),Cobra Norato (1978-1979), As Relações Naturais (1983), Auto das Pastorinhas (1984), O Guarani (1986), Circo Teatro Maravilha (1985), Giz (1988), O Diário (1990), A Flauta Mágica (1991), Tiradentes e Le Journal (1992), Pedro e o Lobo (1993), Antologia Mamaluca (1994), Ubu Rei (1995), Carnaval dos Animais (1996), O Guarani (remontagem – 1996), Diário de um Louco (1997), O Diário (remontagem – 1997) e A Redenção pelo Sonho (1998).

Todavia, os vinte e três anos na UFMG não foram apenas de flores e fantasias no universo dos bonecos do Giramundo. Apesar de todo prestígio, inclusive internacional, o barquinho, que havia crescido, dispunha de pouco espaço físico para atracar. Além disso, os seus marinheiros, para se deslocarem, precisavam tirar dinheiro do próprio bolso. Dessa maneira, Tereza Apocalypse desabafou: “Já quis desistir muitas vezes, é dinheiro nosso que colocamos; tenho de largar as minhas pinturas, temos de dar aulas, ir a reuniões. São 18 anos de luta, que país é este?”[3] Já Beatriz[4], filha do casal Apocalypse, que era uma das crianças que riram e se emocionaram com A Bela Adormecida no quintal da casa de campo em Lagoa Santa, disse o seguinte: “(…) ensaiávamos num cantinho da oficina, com barulho de martelo e com gente entrando. Era uma loucura! O Pedro e o Lobo foi ensaiado numa sala minúscula”. (APOCALYPSE, B, 2009).

Em 1999, subitamente, o grupo foi avisado pela UFMG da necessidade de desocupação do espaço cedido a ele. Essa notícia foi um choque, principalmente para Álvaro, um dos fundadores da EBA, que ficou extremamente decepcionado. Mas, para Madu, que na época já havia abandonado o barco, a saída de lá pode ser vista com outros olhos: “Isso foi um ponto positivo, porque o grupo cresceu muito depois que arranjou endereço próprio. E aí, os jovens também já haviam crescido. As crianças daquela época, hoje, são os membros do atual Giramundo.” (MARTINS, 2009, entrevista).

O endereço a que Madu se refere é a Avenida Silviano Brandão, localizada no bairro Floresta, em Belo Horizonte. O grupo esteve neste local até 2003, enquanto um imóvel adquirido em 1988, que hoje é sede do grupo, estava sendo reformado.

Os primeiros anos subsequentes à saída da UFMG foram muito conturbados para o grupo: faltava um lugar adequado para guardar o grande acervo de bonecos, a infraestrutura era precária e divergências de pensamentos fizeram com que alguns tripulantes abandonassem o navio. Mas a tempestade parecia passageira. Malafaia (2006) diz que no início dos anos 2000 o grupo foi salvo por pequenos contratos comerciais, exposições, vendas de espetáculos e pelo surgimento de alguns projetos. Desta forma, estava começando a terceira fase do Giramundo: o “período institucional”, caracterizado pela montagem do triângulo “museu-teatro-escola”.

Álvaro Apocalypse, preocupado, mas feliz, escreveu em seu diário sobre a inauguração do Teatro Giramundo, no dia 12 de outubro de 2000. Entretanto, meses depois, por motivos financeiros, o teatro foi fechado. Mais uma vez uma brisa fria soprou na proa da nau. Porém, para alívio e comoção de Álvaro — e creio para o de toda a sua equipe — ele anota, nas páginas envelhecidas do Diário de 2001, a data de abertura do Museu Giramundo: quarta-feira, 26 de setembro de 2001: “Dia glorioso onde um grande sonho de muitos foi realizado. (…) Uma verdadeira multidão de amigos, impossível nomear todos (…). Foi emocionante a demonstração de carinho do pessoal, muitas pessoas choraram ao me cumprimentar”. (PIVA, 2006. p. F4).

Por fim, em 2004, a Escola Giramundo, que funciona no mesmo local do museu, iniciou suas atividades por meio da Oficina Teatro de Bonecos, da qual fui aluno em 2008. Contudo, Álvaro e Tereza não puderam comemorar.

Resumindo, o barquinho de 1970 se tornou uma grande empresa de cunho artístico-educativo-cultural: organizada, produtora de projetos arrojados e com um número razoável de funcionários contratados. Incentivado pelas leis de fomento à cultura, durante as décadas de 1990 e os anos 2000, o agora naviogerou várias montagens: O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá (1999), Gira Gerais (2000), Os Orixás (2001), Miniteatro Ecológico O Aprendiz Natural (2002), Miniteatro Ecológico ­Mata Atlântica e Cerrado (2003), Pinocchio (2003), Miniteatro EcológicoJardim Botânico e Amazônia, Miniteatro EcológicoCaatinga (2006), Vinte Mil Léguas Submarinas (2007) e Aventuras de Alice no País das Maravilhas (2013).

Todavia, como nós, marinheiros e tripulantes, não somos imortais, como são os bonecos, os comandantes Álvaroe sua esposa, além de não poderem assistir às atividades da escola que tanto almejaram criar,também deixaram o filho Pinocchio órfão, à deriva, inacabado. Primeiro ela partiu, depois ele. Ambos em 2003. O nevoeiro voltou a se instalar nas engrenagens do Giramundo. Contudo, tirando força das adormecidas caldeiras, e remando contra uma maré de lágrimas, Beatriz e Adriana Apocalypse, lídimas filhas do casal que partira para as “terras-de-um-sem-fim”, somadas às energias dos companheiros de navegação, continuaram a fazer a embarcação Giramundo seguir viagem mundo a fora.

 

 REFERÊNCIAS

 

APOCALYPSE, Álvaro. Memorial (memórias recentes de um velho louco por desenho). Belo Horizonte: [s.n], 1981.

APOCALYPSE, Beatriz. A era Beatriz Apocalypse no Giramundo… Belo Horizonte, 22 de jul. de 2009. Entrevista.

GIRAMUNDO: Nem tudo é fantasia no mundo dos bonecos. Diário da Tarde. Caderno 2. Belo Horizonte: segunda-feira, 9 de maio de 1988.

MALAFAIA, Marcos. Giramundo: Memórias de um teatro de bonecos. In: Móin-Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, ano 2, v. 2, 2006.

MARTINS, Maria do Carmo Vivacqua (MADU). Processos criativos, cultura, identidade e nacionalismo em Um Baú de Fundo Fundo e em Cobra Norato. Lagoa Santa, 25 de jul. de 2009. Entrevista.

OLIVEIRA, Luciano Flávio de. Representações Culturais no Giramundo Teatro de Bonecos… 2010. 192 p. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.

PIVA, Soraia. Intervenção de Soraia Piva sobre ilustrações de Álvaro Apocalypse.O Tempo. Belo Horizonte: Domingo, 23 de abril de 2006. Magazine, p. F4.

SAMPAIO, Márcio.Giramundo Teatro de Bonecos. In: Giramundo Teatro de Bonecos. Coordenação de projeto de Fernando Pedro e Marília Andrés Ribeiro. Belo Horizonte: C/Arte Projetos Culturais, 2001. CD-ROM, 1 unidade  física.

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NOTAS:

[1] Felício Alves, além de iluminador é cenotécnico. Em meados de 1970 foi chamado pelo Giramundo para trabalhar na montagem de Um Baú de Fundo Fundo. A partir daí realizou dezenas de trabalhos com o grupo.

[2] Madu saiu do Giramundo em 1996, mas ainda hoje presta serviços à companhia, fazendo restaurações dos bonecos e construindo objetos de cena para os espetáculos.

[3] GIRAMUNDO: Nem tudo é fantasia no mundo dos bonecos. Diário da Tarde. Caderno 2. Belo Horizonte: segunda-feira, 9 de maio de 1988.

[4] Beatriz Apocalypse nasceu em Belo Horizonte, em 13 de fevereiro de 1969. Ela herdou algumas das funções dos pais, entrando no Giramundo em novembro de 1985.

 

Um Baú de Fundo Fundo: e esse baú nunca acaba?

Um Baú de Fundo Fundo
Um Baú de Fundo Fundo – Foto de divulgação

ARTIGO PUBLICADO, EM OUTUBRO DE 2013, NA BELÍSSIMA REVISTA PITÁGORAS 500 (UNICAMP): Disponível em: <http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/view/149>

 

 Resumo: Neste artigo, analiso as representações culturais presentes no texto e nos personagens de Um Baú de Fundo Fundo, espetáculo criado em 1974 pelo Giramundo Teatro de Bonecos, de Belo Horizonte. Para tanto, observo os conceitos de cultura, mais especificamente culturas no plural, e de representação.

Palavras-chave: ditadura militar; lendas e capiais.

 

Um palhaço chamado Libório chega para fazer uma apresentação em Pedra Furada, uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. No entanto, ele é proibido pelo Delegado Godofredo de se apresentar, pois, nesta cidadezinha, não se podia cantar, não se podia ler poesia, não se podia fazer coisa nenhuma. Além de delegar, Godofredo também acumulava os principais cargos públicos da cidade, criando uma ditadura que impedia a liberdade de expressão e coibia o direito de ir e vir da população. Onde se ia, o Guarda, braço direito de Godofredo, estava a postos para fazer cumprir o regulamento. Todos os lugares eram vigiados, dia e noite. Mas, no fundo de um baú de fundo fundo, uma espécie de caixa de surpresas e de magia, trazida pelo palhaço Libório, encontravam-se as ideias e manifestações artístico-culturais que, enfim, abririam a cabeça do ditador “pedrafuradense”. Esta é a história que nos conta Álvaro Apocalypse (1937-2003) e Madu (Maria do Carmo Vivacqua Martins), do Giramundo Teatro de Bonecos, de Belo Horizonte, com a peça Um Baú de Fundo Fundo (1975).

Quando Madu, Álvaro e Tereza Apocalypse (1936-2003) voltaram da França — onde apresentaram As Aventuras do Reino Negro no I Festival Mondial des Théâtres de Marionnettes de Charleville-Mézières (1972) —, resolveram mergulhar pela primeira vez na temática das culturas mineiras. Assim, montaram o espetáculo Saci-Pererê, em 1973. Todavia, foi em 1974 e 1975, durante a montagem de Um Baú de Fundo Fundo (ou Baú, como é carinhosamente chamado), que eles realmente aprofundaram a temática.

O Baú foi a quarta montagem do Giramundo, estreando no dia 05 de junho de 1975, no Teatro Marília de Belo Horizonte. Como novidade, primeiramente, um horário de estreia incomum para apresentações de teatro de bonecos, pelo menos naquela época: às 21 horas. Isso denotou, antes mesmo do El Retablo de Maese Pedro (1976), o interesse do grupo em montar espetáculos teatrais também para o público adulto.

Para Álvaro Apocalypse, autor do texto junto com Madu, e diretor da montagem,

O Baú foi um acontecimento na história do Giramundo. (…) No Baú de Fundo Fundo, aproveitamos principalmente as canções do grupo de serestas João Chaves, de Montes Claros, e um texto retirado dos livros do escritor Saulo Martins. Tem uma velhinha muito interessante, avançadíssima, que discutia muito. De repente ela parava a peça, e falava assim: ‘Receita! Pegue meio quilo de farinha… bata bem…’ e dava a receita de um bolo sem quê nem pra quê. (….)” (APOCALYPSE, A[1]. Depoimento sobre o espetáculo. Fonte: <http://www.giramundo.org/teatro/ bau.htm>. Acesso em 18 mar. de 2010).  

Essa receita dada pela vovó, que na realidade é de um peixe e não de um bolo como afirma Apocalypse, alude às receitas de bolo que eram publicadas, no período da ditadura brasileira, em alguns jornais, como, por exemplo, o Estado de São Paulo, para dar ciência ao leitor de que a matéria que deveria estar naquele espaço havia sido censurada.

Por fim, se comparadas com Cobra Norato (1979) — a obra mais importante e renomada do grupo mineiro —, são poucas as informações sobre o Um Baú de Fundo Fundo, espetáculo mais modesto, porém, mineiramente gostoso, divertido e inteligente. Entretanto, encontrei algumas preciosidades nos fundos dos baús do Museu Giramundo, somadas às entrevistas realizadas em Belo Horizonte e em Lagoa Santa, Minas Gerais, e a certas notícias de jornal, que me auxiliaram a contar essa breve história.

  1. UM BAÚ PODE ESCONDER MUITOS SEGREDOS: O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO EM RELEVO

VELHA: (…) Moço! Quer fazer o favor de me dizer o que é que tem dentro deste baú?

LIBÓRIO: Han? Ah… tem muitas coisas…

VELHA: Que coisa? Conta!

LIBÓRIO: Tem música, tem dança, cantigas, estórias… (…) O segredo do baú é que ele não tem fim… quase ninguém sabe, mas ele não tem fim. É como a nossa cabeça, onde podemos guardar na lembrança os dias, as coisas e as pessoas que nos fazem felizes. (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p.11 e 21.).

Esse baú pode ser uma caixa de música, de sonho, de imaginação… Ou uma caixa de brinquedos que guarda as principais recordações da nossa infância. Como um berço, ele aquece, embala e nina os bonecos pequeninos que confundem realidade e ficção, passado e presente. O Baú do Giramundo não tem fundo e nele cabe tudo o que quisermos e o que imaginarmos. Enfim, “tirar (…) do baú as lembranças encantadas, histórias, lendas, cantigas que a cidade grande faz esquecer é a proposta de Libório, o boneco que comanda o espetáculo Um Baú de Fundo Fundo”. (O ESTADO de Minas, 11 de jun. de 1975, p. 04).

Contudo, fazer ver os índices, os sinais e as representações que se encontram entranhados nesse espetáculo é um desejo meu, artista-pesquisador-brincante que joga com as palavras e com as ideias. Por isso, trago à tona o conceito de representação, termo que Pesavento (2004) disse configurar uma mudança epistemológica para a História e reorientar a postura do historiador.

Primeiramente, vejamos o que Chartier (2002, p.20), importante historiador cultural francês, relata sobre esse termo:

(…) As definições antigas do termo (…) manifestam a tensão entre duas famílias de sentidos: por um lado, a representação dando a ver uma coisa ausente, o que se supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro, a representação como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou alguém. No primeiro sentido, a representação é instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma “imagem” capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é. (…).

A este primeiro sentido ― “aquilo que representa e aquilo que é representado”―, pode-se acrescentar alguns exemplos, como a fotografia de um boneco/personagem do Giramundo e o próprio boneco/personagem de madeira construído pelo grupo. A imagem fotográfica de um boneco não é, em si, o boneco, mas está no lugar dele, representando-o. Já, pensando em termos de representação teatral, o boneco/personagem (o Delegado Godofredo, do Baú, por exemplo), mesmo não sendo a figuração da realidade, contém uma parte simbólica desta realidade. Assim, essa figuração pode ser apreendida como a representação contextual de uma época ― a ditadura brasileira ― e, do mesmo modo, como uma ideia daqueles sujeitos opressores, ferramentas sistemáticas do período ditatorial no Brasil.

Continuando com o conceito de Chartier (2002, p. 20-21), ele diz também que algumas imagens podem ser pensadas num registro diferente:

(…) o da relação simbólica que, para Furetière, consiste na “representação de um pouco de moral através das imagens ou das propriedades das coisas naturais (…) O leão é o símbolo do poder; a esfera, o da inconstância; o pelicano, o do amor paternal”.

Transpondo essa relação simbólica para o universo representacional artístico e “irreal” dos bonecos do Giramundo, e contrapondo com o simbolismo do Delegado Godofredo, podemos dizer que o palhaço Libório, no espetáculo Baú, é o portador do discurso da liberdade, ainda mais por possuir em sua cabeça, morando em seu chapéu, um passarinho que vive e canta livremente.

Para finalizar esta abordagem de Chartier (2002, p. 17), importa mencionar a função das representações enquanto “lutas de representações [que] têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio”.

Ainda sobre a categoria representação, pode-se dizer, num sentido mais abrangente, que o homem produz representações para conferir sentido ao real. Ou melhor, indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio de representações que constroem sobre a realidade. E essas representações, de acordo com Pesavento (2004, p. 39-43), podem ser

expressas por normas, instituições, discursos, imagens e ritos (…). Representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência. A ideia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença. (…) A representação não é cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele. [Por fim], a construção do sentido [das representações] é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas [culturais, artísticas, etc.]”.

Todavia, as representações não pressupõem verdades absolutas, mas se enquadram num estatuto de verossimilhança e credibilidade, ou seja, são baseadas no real ou até mesmo num real imaginado. Por isso tornam-se críveis. E, por assim dizer, são carregadas de parcelas de verdades, muitas vezes ocultas.

Consequentemente, desde a antiguidade, o homem, cada qual em seu tempo, vem produzindo representações (imagens, estatuárias, pinturas, máscaras, objetos, bonecos, músicas, danças, teatros, discursos, personagens, textos, fotografias, vídeos, etc.) para expressar a si próprio, as suas crenças, os seus sonhos e o mundo ao qual pertence. Assim, a representação é feita do homem para o homem. Nela está contida uma ideia de homem e uma noção que temos de nós mesmos, da natureza e da vida. Logo, ao representarmos imageticamente alguma coisa, estamos fazendo isso para os indivíduos que se assemelham a nós.

1.1 REPRESENTAÇÕES CULTURAIS EM UM BAÚ DE FUNDO FUNDO: MINEIROS, SUAS MINEIRICES E MINEIRIDADES

Antes de discutir as representações culturais em Um Baú de Fundo Fundo, trago a categoria conceitual culturas. Contudo, não farei uma divisão do conceito em camadas, porque, de acordo com Chartier (2002), é preciso rever os usos clássicos da noção de cultura popular. Segundo ele, essa ideia não mais parece resistir a três dúvidas fundamentais:

Antes de mais nada, deixou de ser sustentável pretender estabelecer correspondências estritas entre [dicotomias] culturais e hierarquias sociais, relacionamentos simples entre objetos ou formas culturais particulares e grupos sociais específicos. Pelo contrário, o que é necessário reconhecer são as circulações fluidas, as práticas partilhadas que atravessam os horizontes sociais. (…) Por outro lado, também não parece ser possível identificar a absoluta diferença e a radical especificidade da cultura popular a partir de textos, de crenças, de códigos que lhe seriam próprios. Todos os materiais portadores das práticas e dos pensamentos da maioria são sempre mistos, combinando formas e motivos, invenção e tradições, cultura letrada e base folclórica. Por fim, a oposição macroscópica entre popular e letrado perdeu a sua pertinência. (CHARTIER, 2002, p. 134).

            De outro modo, o que esse historiador parece dizer é que o conceito de cultura, ainda no século XXI, continua sendo dividido verticalmente e relacionado sobremaneira às classes sociais e organizações de grupo. Assim, tem-se: cultura erudita (da elite, principalmente financeira e intelectual), cultura popular (do povo “letrado”), folclore (do povo “iletrado”) e por fim, cultura tradicional (dos indígenas, dos ciganos, dos agricultores e pescadores, etc.). Como as culturas são móveis, atravessam fronteiras, estão dadas também nas diferenças, misturam-se, chocam-se, antagonizam-se, superpõem-se ― “em ritmos que às vezes são lentos e outras vezes são velozes, de maneira harmoniosa e/ou conflituosa, dependendo de épocas e de regiões, dos protagonistas e de seus objetivos” (PAIVA, 2001, p. 32) ―, não podemos mais lidar com essas divisões arcaizantes.

Igualmente para Canclini (2008, p. 19), essa oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo (no sentido de cultura e de meios de comunicação), não funciona. Para ele,

É necessário demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente: a história da arte e a literatura que se ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva. Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente. (Grifos do autor).

Desta feita, o termo folclore só será utilizado neste artigo no sentido empregado pelo folclorista Luis da Câmara Cascudo e pelos fundadores do Giramundo: Álvaro Apocalypse e Madu. Ademais, utilizarei a expressão “popular” no sentido de “do, ou próprio do povo, ou feito por ele” (Ferreira, 2008, p. 642). Sendo que, ainda em acordo com Ferreira, entendo por povo o conjunto de indivíduos que, geralmente, falam a mesma língua, estão situados num mesmo território, têm hábitos e costumes parecidos, além de possuírem uma história e práticas comuns.

Mas, afinal, qual seria o conceito de culturas?

Primeiramente, parto do princípio de que as culturas estão vivas, em constantes movimentos, e que continuamente inventam novas expressões e linguagens. Por esse motivo, creio que o conceito sofreu transformações ao longo dos anos — desde o final do século XIX, por antropólogos, historiadores culturais, sociólogos, filósofos, literatos, artistas etc. — e tornou-se polêmico, amplo, difícil e impreciso. Conforme Burity (2002), os pesquisadores ligados aos estudos culturais iniciaram um diálogo com antropólogos e sociólogos, no sentido de construir uma nova ideia de cultura. Destarte,

(…) boa parte deles chama atenção para os perigos da utilização do termo cultura no singular, enfatizando a impossibilidade de unir de forma harmônica e generalizante as manifestações culturais das várias esferas da sociedade. Cultura deveria, portanto, ser um termo empregado no plural, já que não se constitui num complexo unificado coerente, mas sim, num conjunto de “significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados”, que são construídos socialmente, variando, portanto, de grupo para grupo e de uma época a outra. (BURITY, 2002, p. 15).

 

Desse modo, pelo menos no meu discurso, não mais se notará a utilização da palavra cultura, mas sim, culturas.

Pelo que parece, a palavra foi cunhada em uma sociedade basicamente agrícola e origina-se de colere: cultivar, habitar, criar e preservar. Na sociedade romana, o termo associava-se ao cuidado da terra, referindo-se ao trato do homem com a natureza.

Para o historiador Antônio Rodrigues, a ideia de cultura pode ser apreendida “como resultado das simbolizações que os homens fazem, em tempos e espaços particulares, de suas experiências de viver e que atribuem, nesse movimento, sentidos e significados às coisas que estão no mundo” (In: PAIVA & MOREIRA, 1996, p. 59).

Por fim, parafraseando o poeta e filósofo britânico Eliot (2005) — mas tentando não ser tão tradicional, eurocentrista e elitista como ele — o termo culturas incluiria as atividades, interesses e manifestações (espirituais, intelectuais, políticas, sociais, etc.) características de um povo. Exemplos: as linguagens e expressões linguísticas; as crenças religiosas; as festas com ou sem animais (como as cavalgadas, vaquejadas, folguedos, etc.); as lendárias e mitologias (Mãe d’água, Mulher de Algodão, Cobra Norato, Saci-pererê, etc.); as arquiteturas das cidades (como o barroco do século XVI e as casas coloniais mineiras); os festivais e manifestações artísticas (teatros, danças, literaturas, circos, músicas, pinturas, esculturas, desenhos, fotografias, cinemas, vídeos, artesanatos, etc.); os campeonatos esportivos; as datas comemorativas (cívicas, históricas, sociais, etc.); os pratos típicos e os pratos cotidianos (feijoada, feijão tropeiro, tutu à mineira, arroz carreteiro, frango com quiabo, arroz com pequi, pato ao tucupi, buchada de bode, peixe amanteigado ao forno da vovó, etc.), os jogos de baralhos no boteco ou nas praças das cidades; as brincadeiras e jogos infantis; os provérbios e as adivinhações; e daí por diante.

Dadas essas questões acerca do termo culturas, retomo agora a discussão sobre algumas representações das culturas mineiras em Um Baú de Fundo Fundo. Aliás, essas representações serão chamadas também de mineirices e mineiridades. Sobre a mineirice, “Jânio Quadros, no seu ‘Novo Dicionário Prático da Língua Portuguesa’ de 1977 (…), coloca que ‘ser um bom mineiro’ é se mostrar prudente, desconfiado, astuto, mas aparentemente ingênuo”.[2] Já a mineiridade, pressupõe “a maneira especial de pensar, sentir e agir da população das ‘Alterosas’”[3] (MEGALE, 2003, p. 152).

Começo então pelo texto do espetáculo.

 

1.1.1 Texto, censuras e cesuras: na superfície, na “alma” e no fundo do Baú

Para a elaboração desse texto, que tem várias versões disponíveis no Museu Giramundo, Madu disse que ela e Álvaro partiram das pesquisas que fizeram acerca das culturas mineiras e brasileiras:

Nós conhecíamos um folclorista, que nos deu vários livros e histórias que ele recolhia. Então nos baseamos nisso. Porque você tem que buscar as histórias que existem no imaginário, né? Mas alguém tem que escrevê-las. Aí usamos as linguagens da Iara (…). Começamos a procurar alguns desses esquetes e fizemos, por exemplo, o Pescador do São Francisco. Procurávamos por situações brasileiras e por algumas coisas do imaginário popular. (MARTINS, 2009, entrevista).

Diferentemente do que Madu disse, na cena do Pescador nota-se a figuração da lenda da Mãe d’água e não da Iara.

Das inúmeras cópias de Um Baú de Fundo Fundo encontradas, foi escolhida uma datilografada que contém a marca de um carimbo com uma assinatura de um censor da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Departamento de Polícia Federal (DPF) do Estado de Minas Gerais. Além disso, essa cópia traz, em diversas páginas, marcações e indicações de cortes feitos pela DCDP mineira. Creio que essa intervenção da censura se deu dias antes da estreia do espetáculo, que ocorreu em junho de 1975. De acordo com Madu, em conversa telefônica, nessa época era muito comum a apresentação de espetáculos exclusivamente para a avaliação dos censores, dois ou três dias antes da estreia. Contudo, é difícil precisar corretamente o dia da ação da censura haja vista o carimbo da DPF não conter nenhuma menção à data. Apesar dos cortes, Madu disse que o grupo fez o espetáculo na íntegra.

Um Baú de Fundo Fundo é um texto politicamente ativo, pois os autores fazem uma crítica muito inteligente e divertida aos atentados contra a liberdade de expressão e de pensamento que ocorriam durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Os personagens Libório, Delegado e Guarda são bons exemplos disso. Já no início do texto, como num interrogatório policial, o Delegado Godofredo passa em revista, junto ao Guarda, a situação da cidadezinha Pedra Furada:

GUARDA: [Imitando um trem de ferro] Tudo em ordem, tudo em paz, tudo em ordem, tudo em paz, tudo em ordem, tudo em paz… (entra o Delegado). (…).

DELEGADO: (…) Como está a cidade?

GUARDA: Tudo em ordem, tudo em paz (…).

DELEGADO: E o povo da cidade?

GUARDA: Em casa, conforme o regulamento.

DELEGADO: (…) Ninguém cantou?

GUARDA: Não ouvi.

DELEGADO: Bem. Uma cidade como deve ser: todo mundo em casa, sem meninos nos muros, nada de cantorias, versos e outras maneiras de perder tempo que os poetas inventaram. Um dia de trabalho, uma noite de sono. Eis o nosso lema, soldado. (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 01).

O Baú foi escrito durante a ditadura do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), que governou o Brasil entre 1969 e 1974. Contudo, o espetáculo foi estreado quando da presidência do general Ernesto Geisel (1907-1996), que ocorreu entre 1974 e 1979.

1.1.2 Falares e regionalismos: adivinhas, provérbios, cantigas, causos e receitas de mineiros

Além desses ideais de democracia, no texto Um Baú de Fundo Fundo são figuradas ainda inúmeras mineirices e mineiridades, principalmente o modo sonoro de falar dos mineiros, tanto os do interior quanto os da capital do Estado.

Para começar, a utilização de diminutivos, que pode ser percebida em alguns nomes de personagens: Godofredo vira Godô – que faz confundir com o Godot de Samuel Beckett; José Adolfo transforma-se em Zé Adolfo e depois unicamente em ; Maria Cecília muda para Cecília e também para ; e finalmente, José Legalidade torna-se Zé Legalidade. Esse último nome pode ser também um apelido que expressaria a moralidade ou a imoralidade do , personagem que representaria um tipo malandro.

Por sua vez, dadas personagens não são chamadas pelo nome, mas sim por metonímias: sejam elas funções que as figuras exercem; ou então por algum tipo de objeto que usam ou materiais que são constituídos; ou ainda por detalhes que as caracterizam: o fantasma é Pano-de-prato; o policial chama-se Guarda; temos também 3 meninos, Vovó, Sanfoneiro, Moça das Fitas, Sambista (Zé Legalidade), Baiana, Pescador, Mãe d’água,  5 congadeiros, 2 pererecas, Passarinho e peixes.[4]

As supressões e diminutivos também ocorrem nas falas de certas personagens. Estas caracterizariam parte do imenso repertório das expressões sociolinguísticas dos mineiros. Vejamos então alguns exemplos dessas supressões e diminutivos, e também de certos sotaques, expressões e modos de dizer típicos da população das “Alterosas”:

LIBÓRIO: (…) Nesta cidade não tem ninguém. Que cidade esquesita… tudo parado. (dirige-se à casa mais próxima). Ó, de casa!

VOZ: Ó de fora!

LIBÓRIO: Vem cá.

VOZ: Não é hora!

LIBÓRIO: (noutra parte) Ó, de casa!

VOZ II: (…) Tá doido? Não.

LIBÓRIO: Tá acordado?

VOZ II: Não.

LIBÓRIO: Ó, ocê quer saber de uma coisa?

VOZ II: Não.

(…) PESCADOR: Eta pesqueiro bão!… É água só e água pura. Se eu fosse peixe, nem duvidava: ia morar aqui nesta gostosura. A cambada de peixe deve de estar lá embaixo, nadando pra-lá e pra-cá e imaginando: hoje estou doido para comer uma minhoquinha. (…) Mas que desaforo!  Até peixe está abusando dos pobres. Enjeita até minhoca. (…) E os meninos lá de casa tão com a barriga vazia. Vou rezar. Agarrar com os Santos e pedi pra mode eles me dar um peixe bem gordo. (reza).  Meu Santantone, me dá um peixe pra mios fiim cumê, apois eles inda num quebraro jejum! (…). (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 18. Grifos meus).

Na cena em que Zé Adolfo e Cecília namoram num banco da praça da cidade e brincam de adivinhas (“o que é o que é?”), percebo a presença de regionalismos linguísticos (em itálico), dois provérbios e uma réplica (em negrito), e também de uma cantiga de roda (sublinhado):

CÊ: (…) Você viu meu vestido novo?

ZÉ: Não. Cadê?

CÊ: Aqui, olha, bobão. Não enxerga nada. Só quer namorar.

ZÉ: Quero mesmo. Vem cá.

CÊ: Sai pra lá! Daí tá bom.

ZÉ: Eh, lasquera. Namoro de longe, amor esconde.

CÊ: O apressado pega o bonde errado.

ZÉ: (…) Tá danado.

: Fui na fonte do tororó, beber água não achei, achei linda morena que no tororó deixei. (senta-se) O que é o que é? Caixinha de bom parecer, não há carapina que saiba fazer?

ZÉ: (…) Amendoim.

CÊ: O que é, o que é? Joga pra cima é prata, cai no chão é ouro?

ZÉ: (…) Ovo. (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 15).

Outra cantiga de roda que aparece no texto é a Ciranda Cirandinha: “CRIANÇAS: Ciranda Cirandinha / Vamos todos cirandar / Vamos dar a meia volta / volta e meia vamos dar. (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 11).

Por fim, uma personagem que representa bem os contadores de “causos” mineiros é a Vovó, que também é adepta do didatismo e da receita caseira. Como vimos, esta é uma crítica feita por Álvaro e pela Madu à censura dos jornais.

VELHA: (…) Aqui na vila tinha um moço bonito, de chapeuzinho de palha meio de banda, lenço xadrez no pescoço, uma simpatia. (…) Ele tocava sanfona. Juntava um povão de gente. (…) Agora vou ler pra vocês uma linda história. Pois era uma vez… (…) Era uma vez um barranqueiro… (…) Barranqueiro é o homem que mora na beira do Rio São Francisco e vive de pesca. Era um pescador muito pobre e empencado de filhos, que um dia pegou o barco e saiu para pescar. (…) Esta estória do pescador sempre me dá apetite. Receita: pegue o peixe, tire a escama e lave bem. Pegue 30 gramas de manteiga, salsa bem picadinha e alho socado. Faça uma pasta bem batidinha.  (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 11,12, 17 e 20.).

1.1.3  Personagens: lenda, fantasma e capiais − Mãe d’Água: lenda ou mito?

Mito não é o mesmo que lenda. Muitos autores confundem esses termos, trazendo-os, erroneamente, como sinônimos. Para Megale (2003), as lendas são inspiradas em fatos históricos (ou relacionam-se a eles), transformados pelo imaginário social, e referem-se geralmente a fatos reais, em torno dos quais a imaginação cria uma série de coisas irreais e até inverossímeis. Já para Câmara Cascudo (2000) a lenda é localizável no espaço e no tempo e está ligada a um local ou à vida de um herói. Sendo assim, diferentemente da lenda, o mito atingiria uma área geográfica mais ampla e não seria necessariamente fixado no tempo e no espaço. Logo, temporal e espacialmente, as lendas de Barba Ruiva, de Santo Antônio, dos cangaceiros e dos tesouros escondidos, diferenciam-se dos mitos de Édipo, de Aquiles e de Medusa.

Novamente para Megale (2003), os mitos seriam narrativas fantásticas ou fabulosas, relacionadas a determinada cultura, crença ou religião, transmitidos por gerações dentro de uma estrutura tradicional. Eles teriam por finalidade fornecer uma explicação plausível para a origem e para o motivo das coisas, como para os fenômenos naturais e cósmicos: ciclos das estações do ano, do dia e da noite, da vegetação, da vida e da morte … e para os fenômenos históricos. Portanto, encontramos mitos relacionados às origens do homem, da flora e da fauna; mitos de destruição; mitos aquáticos, zoológicos e florestais; mitos de heróis e de salvadores; e assim por diante. Alguns deles, como o do Saci-Pererê,[5] que é conhecido no nosso país e em outras regiões do mundo, têm funções morais e didáticas.

Um conjunto de mitos e dos seus referidos estudos formam as mitologias; e um conjunto de lendas forma um lendário. Assim, o lendário brasileiro seria originário da mistura de lendas indígenas, com lendas de origem negra e daquelas provenientes da Península Ibérica.

Veja-se o exemplo da lenda da Mãe d’Água, que seria resultante da fusão da Iara indígena, da Iemanjá africana e da Sereia europeia. Segundo Câmara Cascudo (2000, p. 532), “em todo o Brasil conhece-se por mãe-d’água [sic] a sereia europeia, alva, loura, meia [sic] peixe, cantando para atrair o enamorado que morre afogado querendo acompanhá-la para bodas no fundo das águas”. Ao contrário, no Baú, o Giramundo representa essa lenda com os cabelos verdes, talvez na tentativa de aproximar a sua iconografia de uma monstruosa serpente aquática esverdeada, que seria uma espécie de mãe d’água amazônica.

Também de maneira diversa da Sereia europeia, a Mãe d’água do Baú não afoga o enamorado, que no caso do Giramundo seria o Barranqueiro. Para encerrar, observo uma passagem do texto que ilustra isso, na qual o pescador, à espera do peixe, tira um cochilo e sonha com a rainha das águas doces:

PESCADOR: (…) Por que que gente não pode morar no fundo do rio?

VOZ: O fundo do rio tem dono, é o reino da mãe d’água. Cuidado, pescador, lá vem ela. Mãe d’água e seu canto de encantar. (…) Cuidado, barranqueiro, mãe d’água te encanta e te prende pra sempre no fundo do rio. Te fecha no seu castelo de pedra até você criar escamas e virar peixe. Aí, canoeiro, pescador vai te pescar. (…) Acorda, canoeiro! Acorda! (…) (APOCALYPSE, A; MARTINS, 1974, p. 19).

1.1.3.2 À base de remendos, nasce um fantasma e vários capiais

Pano-de-prato é um “pobre” e remendado fantasma do interior de Minas. Pela ótica do Giramundo, é um fantasma desacreditado, pois não consegue assustar mais ninguém. Também é desajeitado e ingênuo, porém, segundo o palhaço Libório, é divertido e simpático. Esse “fantasmão” adora assombrar os capiais de Pedra Furada, principalmente o medroso casal de enamorados caipiras Cecília e Zé Adolfo.

Para Megale (2003), o ato de se acreditar em fantasmas, duendes, bruxas, e assim por diante, faz parte da manifestação do folclore espiritual de um povo: são as crendices.

Assim, o surgimento abrupto de um fantasma pode causar assombração num indivíduo. Câmara Cascudo (2000, p. 112), diz que assombração é o “terror pelo encontro com entes fantásticos, aparição de espectros (…); casa mal-assombrada, onde aparecem almas de outro mundo”. Desta feita, o casal de caipiras, quando tranquilamente namorava e brincava de adivinhas num banco da praça da cidade, foi literalmente assombrado pelo Pano-de-prato. Logo, como resultado do grande susto, o casal fica com as vozes embargadas e tremendo de medo. Zé, covardemente, foge desesperado. Cecília, atordoada, sem saber o que fazer e com as suas tranças arrepiadas pelo seu ator-manipulador, corre sem rumos para ambos os lados do cenário. Isso até o final da cena, quando as luzes se apagam e fazem com que Cecília desapareça no escuro.

Além do fantasma Pano-de-prato, existem mais cinco bonecos/personagens que representam os capiais (ou caipiras) mineiros: Barranqueiro/Pescador, Zé Adolfo, Maria Cecília, Moça-de-Fitas e Sanfoneiro. Em suma, o nome caipira, conforme Vilela (2009, p. 69), vem “do tupi caapira, que quer dizer montador ou capinador de matto [sic]. [Por conseguinte, os caipiras mineiros], em expressiva parte, [têm suas raízes nos] protagonistas do bandeirismo paulista [do] século XVII”.

Já para Câmara Cascudo (2000, p. 223), o caipira é o “homem ou mulher que não mora na povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público. [É o] habitante do interior, canhestro e tímido, desajeitado, mas sonso”. Esta visão de Câmara Cascudo sobre o caipira se aproxima bastante do Jeca Tatu de Monteiro Lobato (1882-1948).

Por sua vez, as representações caipirescas do Giramundo distanciar-se-iam dos pensamentos cascudianos e lobatenses e aproximar-se-iam do contexto representacional de Almeida Júnior, que em suas telas de temáticas caipiras figurava cenas típicas do ambiente rural e os costumes das pessoas que viviam no campo. Desse modo, além do linguajar e do lugar de moradia, características comuns identificam os principais caipiras do Baú: a indumentária dos homens é simples, apresentando remendos, e indicam os seus ofícios: a lida na roça, seja ela o cultivo de alimentos ou até mesmo a pesca. O chapéu de palha dos senhores, incluindo-se o Sanfoneiro, é um item obrigatório e possui dupla função: serve tanto para proteger o rosto (do sol, dos insetos, de fezes de aves…) quanto como componente integrante do figurino nos momentos de lazer. Por outro lado, a utilização de chitas, tecido de algodão estampado a cores, e de fitas coloridas, por parte das senhoras e senhoritas, é recorrente, principalmente durante as festas e encontros amorosos.

Enfim, a utilização de múltiplas cores (principalmente as quentes) nos figurinos, cenários e adereços de Um Baú de Fundo Fundo faz deste um espetáculo alegre, divertido, colorido, atraente aos olhos das crianças e dos adultos e um notável representante dos tons das culturas de Minas Gerais.

           

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante os seus mais de 40 anos de existência e de atividades, o Giramundo montou 35 espetáculos, participou de inúmeros festivais de teatro e de exposições, tanto no Brasil, quanto no exterior, e também ministrou variados cursos e oficinas. Por isso, dentre outros motivos, tornou-se uma importante instituição artístico-cultural e educativa, formada pelo eixo teatro-museu-escola: Giramundo Teatro de Bonecos, Museu Giramundo e Escola Giramundo. Assim, o grupo mineiro foi reconhecido, em 2005, pelo seu valor cultural significativo e simbólico, conforme o ofício 550/04 da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural da Comarca de Belo Horizonte e da Coordenação do Grupo Especial das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural das Cidades Históricas de Minas Gerais – GEPPC (ID 213.979 – Relatório Cultural Grupo Teatro de Bonecos Giramundo), como Patrimônio Cultural Mineiro com relação aos modos de fazer e pelas formas de expressão cênica. Foi declarado também como Patrimônio Cultural Imaterial em nível nacional, pelo Ofício ou Modo de Fazer Bonecos. Já o museu, que tem mais de 850 bonecos, tornou-se Lugar de Memória. E os bonecos, bens móveis de valor cultural, foram considerados como Patrimônio Cultural Municipal e Estadual de Minas Gerais.

Em relação a Um Baú de Fundo Fundo, também possui significativos valores culturais, simbólicos e materiais. Além disso, são inúmeras as representações culturais presentes no seu texto e nos seus personagens, assim como nas trilhas sonoras, que aqui não foram analisadas.

Resumidamente, neste artigo apresentei os conceitos de representação e culturas no plural, notei — no texto do espetáculo — a figuração escrita e oral do modo de falar (como a utilização de diminutivos e de metonímias), de pensar e de viver típicos das populações de Minas Gerais: as mineirices e mineiridades. Do mesmo modo, percebi, no fundo do Baú, críticas à ditadura militar brasileira e às censuras e cortes impostos ao texto pela DCDP do Departamento de Polícia Federal (DPF) de Minas Gerais. E dentre os principais bonecos/personagens dessa peça observei: uma figura lendária (Mãe d’água), um fantasma (Pano-de-prato), uma contadora de “causos” e de histórias (Vovó), vários caipiras (Pescador, Sanfoneiro, Moça-de-fitas e casal de namorados da pracinha), artistas do cancioneiro popular (Congadeiros), personagens representantes da repressão militar (Delegado e Soldado) e um palhaço que sugere a liberdade de pensamento e de expressão (Libório).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APOCALYPSE, Álvaro. Depoimento sobre o espetáculo Um Baú de Fundo Fundo. Fonte: <http://www.giramundo.org/teatro/ bau.htm>. Acesso em 18 mar. de 2010).

BURITY, Joanildo A. (org.). Cultura e identidade: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

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Abstract: Abstract: In this paper I discuss the cultural representations in the text and in the characters of “Um Baú de Fundo Fundo”, show created in 1974, by the “Giramundo Teatro de Bonecos”, of Belo Horizonte city. Therefore, I observe the concepts of culture, more specifically cultures in plural, and representation.

Keywords: military dictatorship; legends and hillbillies.


[1] Utilizo a referência APOCALYPSE, A. (Álvaro Apocalypse) para diferenciar de APOCALYPSE, B. (Beatriz Apocalypse). Beatriz é filha do casal Álvaro e Tereza Apocalypse, falecido em 2003.

[2] FREITAS, Marcel de Almeida. Para a vice-presidência? Convide um mineiro… Fonte: <://74.125.45.132/ search?q=cache:AwerJZnGlCMJ:www.achegas.net/numero/quatro/marcel_freitas.htm+mineirice&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a>. Acesso em: 05 de abr. de 2010.

[3] O termo Alterosas seria outra forma que nós mineiros utilizamos para chamar o Estado de Minas Gerais.

[4] Aqui, incluindo-se o Libório, observa-se a lista completa de personagens de Um Baú de Fundo Fundo.

[5] O mito do Saci aparece figurado em cinco espetáculos do Giramundo. A saber: Saci Pererê (1973), Cobra Norato (1979), A Redenção pelo Sonho (1998), Os Orixás (2001) e O Aprendiz Natural (2002).

ANTROPOFAGIA, MESTIÇAGEM, IDENTIDADE E NACIONALISMO NO COBRA NORATO DO GIRAMUNDO TEATRO DE BONECOS

Luciano Flávio de Oliveira[1]lucianodiretor@gmail.com

Artigo apresentado no Simpósio Internacional de História: Cultura e Identidades, da ANPUH-GO/UFG (Faculdade de História).

Simpósio Temático 19: Performances Culturais: Memórias e Representações da Cultura: Festas, Performances, Música, Teatro…

 RESUMO: Objetiva-se, com este artigo, apontar, analisar e confrontar — com os processos de criação dos bonecos de Cobra Norato, montagem de 1979 do Giramundo Teatro de Bonecos — algumas categorias conceituais caras à História e à História Cultural. A saber: representação e identidade cultural, antropofagia, imaginação social, nacionalismo e mestiçagem. Para tanto, observar-se-á como o grupo mineiro se apropriou das cores nacionais, das linhas, dos regionalismos, dos causos e histórias, e, ademais, da iconografia de criaturas da cultura popular brasileira para a construção estética e plástica de alguns bonecos dessa montagem.

Palavras-chave: Representações culturais. Processos criativos. Bonecos.

ABSTRACT: The objective of this article is point, examine and confront — with the processes of creating of the puppets of “Cobra Norato”, assembly of 1979 of the “Giramundo Puppet Theater”— some conceptual categories faces to the history and cultural history. Namely: representation and cultural identity, anthropophagy, social imagination, nationalism and racial miscegenation. To this end, will be observed how the Giramundo group appropriated of the national colors, of the lines, of the regionalism, of the tales and stories, and, moreover, of the iconography of creatures of Brazilian popular culture for the aesthetics construction and plastic of some puppets of this assembly.

Keywords: Cultural representations. Creative processes. Puppets.

Breve ode ao Giramundo e ao Cobra Norato

          Foi criado na pequena Lagoa Santa, região da conurbarda Belo Horizonte, nos idos da década de 1960, pelas mãos e pincéis dos artistas plásticos Álvaro Apocalypse, Teresinha Veloso e Maria do Carmo Vivacqua Martins. Nas suas quase quatro décadas de vida, o Giramundo Teatro de Bonecos vem consolidando-se como um dos grupos de referência na representação da brasilidade — sentimento de amor ao Brasil — e do intenso colorido nacional. Nesse sentido, valendo-se das mais diversas técnicas e linguagens do Teatro de Animação[2], o grupo montou 33 espetáculos, muitos deles com temáticas patrióticas, dentre estes, Cobra Norato, em 1979, baseado no poema homônimo do modernista Raul Bopp (1898-1984).

          Em razão disso, Álvaro Apocalypse (19372003), diretor da montagem, utilizou esse enigmático poema quase que em sua forma integral, fazendo com que a montagem, do mesmo modo que a obra de Bopp, figurasse elementos[3] conformadores de uma cultura “genuinamente tupiniquim”. Desta feita, no processo de transposição de linguagens (da linguagem literária para a linguagem cênica) da obra de Bopp, Apocalypse fez determinadas alterações no texto original. Vejam-se algumas delas: distribuição dos versos às personagens elaboradas a partir do poema “boppiano”; supressão de alguns termos; enxertos e deslocamentos de linhas de uma estrofe para outra; transformação de certos versos em músicas; acréscimo de rubricas com indicações de entrada e saída das personagens (bonecos); repetições de interjeições; adaptações de palavras como, por exemplo, de “vira-mundo” (BOPP, 2009:18) para “gira-mundo” (APOCALYPSE, 197?.:19); dentre outras. Entretanto, acredita-se que essas modificações não alteraram o sentido, a poética e nem a importância do poema modernista.

Não obstante, esse mineiro de Ouro Fino, chamado por alguns de Álvaro ou somente “Alvo”, sempre buscou valorizar e preservar as manifestações culturais populares e também o folclore[4] do Brasil e de Minas Gerais. Para tanto, a todo tempo, ele misturava — com os seus vastos pincéis e com os seus olhares afinados de criador teatral — “o verde, o amarelo, o branco e o azul”, concebendo belamente os espetáculos e os bonecos do Giramundo. Logo, do mesmo modo que os modernos de 1922, ele também buscou os tons da “Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!”.

Então, por debaixo de um arco-íris de quatro cores nasceu o Cobra Norato: a obra mais renomada do grupo, a mais premiada e considerada um marco na história do teatro de bonecos do Brasil, ocorrendo nela a introdução de motivos africanos e indígenas. Assim, são várias as intenções da peça: produzir um espetáculo de bonecos “essencialmente” brasileiro, comemorar os 50 anos do Manifesto Antropofágico[5] e homenagear o autor do Rio Grande do Sul. O Giramundo, segundo Apocalypse[6], trabalhou com uma “forma nacional”, ou seja, formas simples e indígenas, portanto, com bonecos de origens brasileiras.

Quanto ao Cobra Norato, poema emblemático da primeira fase do modernismo[7] brasileiro, “escrito [por volta de 1921 por Bopp] sobre o substrato de relatos míticos populares e de conhecimento geral” (ROCHA, 2000:10), perpassado constantemente por vozes, sussurros, lembranças, andanças, superstições, crendices e por fantasias da Amazônia, “terras de um Sem-fim”, diz-se que ele descreve a trajetória de um herói mestiço[8], travestido na pele de uma cobra amazonense, em busca da branca européia de olhos azuis, a filha da Rainha Luzia, que habita as lonjuras da suposta civilizada, industrializada e evoluída Belém do Pará. Assim, o objetivo de Honorato parece ser, simplesmente, o de se casar. Ademais, isso sugeriria a união entre a “barbárie” brasileira e a civilização européia.

Herói e narrador, Honorato é um boneco que veio à luz a partir da confluência das três etnias que dão origem aos brasileiros: o índio, o europeu e o africano. O protagonista representaria o próprio poeta gaúcho vestido de pele de cobra que, com seu companheiro de andanças, o Tatu, atravessa “[florestas] de hálito podre e parindo cobras (…), raízes desdentadas [que] mastigam lodo (…) [e] beiras de um encharcadiço, um plasma visguento (…)” (BOPP, 2009:09 e 11) em busca de sua amada, a filha da Rainha Luzia.

Do mito, Cobra Norato ou Honorato, pode-se relatar, de acordo com Cascudo (2002:292-293), que é um mito serpentário pertencente ao rico folclore amazônico, no qual se incluem várias lendas. Uma delas diz que uma Cunhã foi engravidada por uma Boiúna (uma espécie de boto), tendo então dois filhos: Honorato e Maria Caninana. Incentivada por um pajé, a mãe joga as duas pobres crianças à margem do rio Tocantins onde elas foram encantadas, transformando-se em cobras. Maria Caninana era má e provocava naufrágios. Por outro lado, Honorato era bom e viu-se obrigado a matar a irmã. Como penitência, ele, à noite, passou a transformar-se num rapaz bonito e sedutor, deixando a sua pele à margem do rio. Conta-se ainda que um soldado do Tocantins conseguiu a façanha de “desencantar” o Honorato, pingando leite na boca da cobra e sangrando a sua cabeça. Daí, ele nunca mais se transformou numa serpente.

Por sua vez, no espetáculo do Giramundo, o Honorato é representado de três maneiras: ora como uma cobra; outrora como meio homem, meio cobra; e, finalmente, como um homem. Além disso, o espetáculo Cobra Norato possui também outras representações que povoam o nosso imaginário[9]. Ele traz, por exemplo, figurações de canções, danças, lendas — como a da Cobra Grande, da Boiúna e da Cobra de Óbidos —, mitos — como o do Saci-Pererê —, crenças religiosas e regionalismos ― quais as cerâmicas[10] do Vale do Jequitinhonha de Minas Gerais.  Em síntese, o Giramundo materializa diversos elementos e criaturas da cultura nacional e do folclore mineiro. Dessa forma, esse espetáculo sobrepassaria o poema de Bopp, elencando temas regionais — de Minas — que não são contemplados nessa obra modernista.

Por fim, pretende-se, com este artigo, notar como o grupo Giramundo se apropriou dessas figurações e representações para a construção estética e plástica de dois bonecos “Honorato”, de um “Saci-Pererê” e de um “Casal de bailarinos de cerâmica”. Para tanto, propõe-se, em seguida, uma análise iconográfica de cada um desses bonecos.

 Honorato: branco, mestiço ou índio?

 

Primeiramente, antes de se iniciar a análise do boneco Honorato, faz-se necessária a definição do termo mestiçagem. Para Canclini, a palavra pode designar as fusões raciais ou étnicas de um indivíduo ou de uma cultura:

A mistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de ingleses, com indígenas americanos, à qual se acrescentaram escravos trasladados da África, tornou a mestiçagem um processo fundacional nas sociedades do chamado Novo Mundo. (…) Mas a importante história de fusões entre uns e outros requer utilizar a noção de mestiçagem tanto no sentido biológico — produção de fenótipos a partir de cruzamentos genéticos — como cultural: mistura de hábitos, crenças e formas de pensamento europeus com os originários das sociedades americanas (CANCLINI, 2008:XXVII).

Desse modo, dentre as diversas representações do boneco Honorato, realizadas pelo Giramundo, encontra-se um mestiço, como nota-se na imagem 1.

Adiante, a síntese dos materiais com os quais ele foi construído: madeira, tecidos, tintas e massa corrida. Depois, quanto a sua iconografia, tem-se: a) quase a totalidade do seu corpo é composto por madeira; b) as mãos, os pés, o pescoço e o peito do boneco são recobertos por uma tinta de cor quase que esbranquiçada, porém, ela não é branca; c) os seus cabelos, castanhos escuros, denotam uma aparência crespa; d) no seu rosto, notam-se olhos pretos estilizados, tipo orientais, com pálpebras esverdeadas (alusão aos olhos verdes europeus?), bochechas e bocas avermelhadas e, ademais, barbas de um tom verde claro; e) o pescoço é ornamentado por um colar, tipo africano, de madeirinhas verticais marrons; f) por ser um boneco de balcão[11], Honorato possui, dentro de um sulco em suas costas, um mecanismo — espécie de barra de madeira e metal, somada a um gatilho — que faz movimentar a boca e outras partes flexíveis do seu corpo; g) finalmente, as partes ocas internas — “os órgãos, músculos e ligamentos” — desta figura, parecem ser preenchidas por minúsculas partículas de elétrons, armazenadas em forma de uma espécie de energia potencial, e à espera de uma “coisa-mente” — o manipulador — que as despertem, produzindo assim, trabalho, ou melhor, diferentes movimentos e ações no interior da representação teatral a qual se integra como personagem.

Assim, a idéia do Honorato completo e que existiria como plano na mente do seu artista bonequeiro e/ou projetista, parecia ser a de um boneco brasileiro, mestiço e representante de uma suposta desordem nacional.

Por outro lado, a próxima figura do Honorato se dá pela aproximação de sua iconografia com a de um indígena brasileiro, como pode ser visto na segunda imagem. Dessa forma, o Giramundo parecia ir em busca de uma identidade nacional perdida. Ou melhor: esquecida por causa do progresso e dos meios modernos de comunicação, que desintegram o patrimônio da nação e fazem os povos perderem suas identidades culturais[12].

Ainda sobre a identidade, cita-se mais uma vez Canclini, que diz que

ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse lugar se tornasse idêntico ou intercambiável. Nesses territórios a identidade é posta em cena, celebrada nas festas e dramatizada também nos rituais cotidianos (CANCLINI, 2008:190).

Dessa forma, como “signos de identidade” (CANCLINI, 2008:234) têm-se a língua, a vestimenta e o sistema de cargos religiosos. Não obstante, ocorre que a língua falada do Honorato índio, por causa de sua aculturação, também é o português, apresentando um leve sotaque mineiro, que os ouvidos mais atentos podem reparar quando escutam a trilha sonora da peça. Quanto à indumentária desse boneco, também manipulado pela técnica de balcão, observa-se que é constituída por figuras geométricas pintadas de cores marrons, brancas e negras. Ademais, as suas mãos e os seus pés são recobertos por tiras de barbantes de algodão. Além disso, brincos constituídos por penas brancas e azuis e, também por sementes vegetais vermelhas, amarelas e rosas colorem as suas falsas orelhas. Logo, um pequeno colar de madeirinhas marrons ornamenta o seu pescoço. Por outro lado, diferentemente do Honorato mestiço, os seus cabelos são uma massa de tinta compacta e negra, fato que parece aproximar ainda mais a iconografia desse boneco à de um índio da Amazônia brasileira. Entretanto, a exceção fica por conta da cor de sua pele, que também é branca. Daí pergunta-se: seria essa uma forma de embranquecimento do índio, por parte do Giramundo, ou somente um fato não notado pelo grupo?  Finalmente, quanto à sua religião, atente-se que é recheada de danças folclóricas e de crendices e, também, de superstições populares, como nota-se na passagem seguinte:

COBRA NORATO: Ai pai-do-mato

Quem me quebrou com mau olhado

e virou o meu rasto no chão?

Ando já com os olhos murchos

de tanto procurar a filha da rainha Luzia (APOCALYPSE, 197?.:06).

 

 Saci-Pererê, de onde vem: da África, da América ou da Europa?

 

Antes de qualquer coisa, algumas palavras sobre as origens do Saci-Pererê: o mito parece ter surgido, no Brasil, no final do século XVIII ou meados do século XIX, pois “os cronistas [do período] colonial não o mencionam” (CASCUDO, 2000:794). Durante a escravidão, as amas-secas e os caboclos velhos assustavam as crianças com os relatos das suas travessuras. Desde então, ele encontra-se profundamente enraizado no imaginário dos brasileiros, sendo sua história propagada por todo o país.

Existem muitas lendas em torno dessa figura. Algumas, por exemplo, tentam explicar a existência de uma só perna no pequeno ligeiro. Uma das mais interessantes diz que, antes de se tornar um Saci, um escravo teria perdido o membro lutando capoeira. Sobre o mesmo assunto, Anastasia (2002:382) cita o escritor Olívio Jekupé, afirmando que uma entidade indígena foi transformada no Saci-Pererê pelos africanos que a mesclaram com Ossaim, negro de uma perna só, filho pequenino de Oxalá e Iemanjá, orixá das folhas, da magia e da cura.

Por outro lado, o nome Saci — “o olho doente” (CASCUDO, 2002:127) ­— é encontrado desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul, porém o mito não é o mesmo em todas as regiões brasileiras, como em São Paulo, onde usa um boné vermelho no lugar da carapuça e habita os brejos. Entretanto, o Saci-Pererê pequenino, de uma perna só, de pele e cabelos pretos, usando na cabeça um barrete vermelho e mágico e fumando um cachimbo, seria mais comum no folclore do Sul[13] do Brasil, não havendo, portanto, o Saci-Pererê no Norte nem no Nordeste.

Ademais, o Saci brasileiro possui características parecidas com alguns mitos de outros países. Chamado de “Yacy Yateré” (ANASTASIA, 2002:128) no Paraguai e na Argentina, é, muitas vezes, encontrado como um anãozinho vermelho de duas pernas, nu, de cabelos dourados (em alguns momentos com barba), usando um chapéu de palha na cabeça e trazendo uma varinha mágica ou bastão de ouro em suas mãos.

Logo, em muito estas representações lembram o Saci nacional, porém nenhuma delas é tão parecida quanto a do Fradinho da Mão Furada português, que, além da carapuça vermelha e a mão furada, tem um jeito muito peculiar de invadir os quartos: ele entra pelo buraco da fechadura da porta e escarrancha-se em cima das pessoas que dormem com a barriga para cima, provocando nelas enormes pesadelos. Depois de causar pesadelos nos dorminhocos, ele revira as gavetas dos armários e dos guarda-roupas, deixando o quarto todo bagunçado. Por fim, Cascudo (2002:131) refere-se a Elfos, Gobelins, Lamias, Pulpicans, Trolls, etc., todos eles seres míticos europeus que possuem características ou comportamentos semelhantes ao esperto e misterioso Saci-Pererê.

Ser mestiço habitante das florestas, dos redemoinhos e das margens dos rios, nascido em “sacizeiros” (LOBATO, 2005:18), inimigo do sol e filho das trevas, originário de lendas indígenas, principalmente dos Tupis-Guaranis, misturadas com crendices e superstições africanas e mitos europeus, o Saci não é bom, nem mau. Daí, o mito pode ser também interpretado como sendo o senhor das matas, principalmente do sertão, como curandeiro e como símbolo da liberdade, por portar uma carapuça vermelha semelhante ao Pileus romano, que, na Roma Antiga, identificava os escravos livres.

Em seguida, descritas essas representações, cabe agora discutir os assuntos propriamente relacionados à figuração desse mito no espetáculo Cobra Norato. Antes disso, porém, faz-se necessária uma pequena análise da categoria representação.

Num sentido mais abrangente, podemos dizer que o homem produz representações para conferir sentido ao real, sendo que “essa construção do sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas” (PESAVENTO, 2004:43). Dentre as várias formas por meio das quais as representações acontecem, podemos citar as que ocorrem no teatro de bonecos, como é o caso do grupo mineiro, que figura em seus espetáculos imagens de deuses, mitos, lendas e de elementos da flora e da fauna brasileira. Enfim, mais dois exemplos de representações: conforme Paiva (2002:50) a romã ou o cacho de uvas são símbolos da fertilidade associados à Virgem Maria, e, de acordo com Anastasia (2002:389), o Saci-Pererê pode representar o sertanejo e o sertão; e as suas diabruras, os elementos desestabilizadores e incontroláveis do cotidiano sertanejo. Assim, o Saci-Pererê, do Cobra Norato, pode ser visto como a (re)figuração do Saci que se encontra presente figurativamente no imaginário do brasileiro: um menininho negro, nu, perneta, astuto e com um cachimbo na boca.

Mestiço, ele aparece bem rapidamente neste espetáculo, inclusive não tendo nenhuma fala. Sua função, na peça, seria a de aludir ao mito dentro do folclore da região norte do Brasil e a mistura de etnias, como podemos notar na sua composição: ele utiliza um lenço vermelho (europeu?) no lugar do tradicional barrete e traz, no pescoço, um denso colar dourado (africano?). Por fim, é importante salientar que Bopp não faz menção, em seu poema, ao Saci-Pererê. Dessa forma, a representação do mito na peça do Giramundo é uma licença poética do grupo.

Adiante, descreve-se a rápida participação da personagem na montagem: Honorato, em sua saga, necessitando atravessar a floresta, pede licença ao Curupira[14], deixando-lhe um pedaço de fumo. Então, quem surge rapidinho para pegar e fugir com a oferenda é o esperto do Saci-Pererê, desaparecendo, em seguida, no meio da escuridão.

Para concluir, observa-se que, em Cobra Norato, o Saci é robusto, lembrando um adulto baixinho que se recusou a crescer, qual o Peter Pan do escritor escocês James Matthew Barrie (18601937). Suas características físicas parecem fazer dele o mais africano de todos os sacis[15] do Giramundo, cujo rosto possui traços semelhantes a algumas máscaras ritualísticas desse continente.

Regionalismo: a presença de Minas num contexto nacionalista.

Em Minas Gerais, de acordo com Martins (1991:69), o artesanato existe desde os tempos de capitania, início do século XVIII, notadamente no mobiliário e em outras utilidades domésticas, bem como em acabamentos de igrejas e residências e peças destinadas ao culto; assim como nas máscaras utilizadas nas representações durante os festejos da Semana Santa e da Folias de Reis.

Desta feita, fortemente presente no Vale do rio Jequitinhonha e no Vale do rio São Francisco, ambos em Minas, principalmente em cidades como Caraí, Itaobim, Taiobeiras, Pedra Azul, Salinas, Montes Claros e Januária, a cerâmica mantém viva a tradição do artesanato mineiro, constituindo-se como elemento identitário e patrimonial dos povos e comunidades locais. Além disso, por ter recebido uma influência indígena marcante, ademais dos portugueses e dos africanos, pode-se dizer que ela traz também, em suas formas, a memória dos antepassados que habitaram essas regiões.

Aliás, com todo esmero em preservar as habilidades adquiridas e que foram passando de pai para filho — por diferentes gerações — os artífices, no processo de moldar as cerâmicas, continuam a usar fornos a lenha, a técnica dos roletes (cobrinhas), além de placas e ferramentas primitivas. Também foi mantida a técnica de se extrair — da argila encontrada nas muitas jazidas da região — os pigmentos naturais usados na pintura.

Desse modo, quanto à modelagem das personagens de cerâmica do Cobra Norato, cabe lembrar que o Giramundo, possivelmente, tenha se preocupado com a inserção desse elemento — presente na cultura popular mineira, ou seja, cultura de caráter regional — dentro de uma atmosfera e de um contexto da cultura nacional. Assim, nessa obra, como, por exemplo, na animada cena da festança que acontece na residência do “Casal de bailarinos”, além da cerâmica, notam-se representações de outros elementos da cultura popular e do folclore que, também, podem ser encontradas no cotidiano do sertão de Minas Gerais. A saber: canções e ritmos da moda de viola; crendices e superstições; personagens com sotaques caipiras; e, por fim, objetos que lembram o interior pobre das casas sertanejas, como uma cumbuquinha de barro posta ao lado de um litro de cachaça, ambos decorando uma mesinha de madeira coberta por um gracioso forrinho de mesa.

Com o fito de conclusão, apresenta-se a festança: a bailarina, com cabelo engomado, corpo perfumado e sobrancelhas feitas, vem chegando com um vestidinho tipo chita estampado. Pendendo das suas orelhas, brincos grandes e densos, cujos desenhos combinam com as estampas de flores do vestido. E mais, sapatinhos leves e baixos para o fácil bailar. Assim parece ser o traçado de uma jovem dona de casa, do norte seco e infértil de Minas. Receptiva, simpática e boa cozinheira, desde cedo, deixou pronto o tutu, o arroz, a couve e o torresmo, para bem aproveitar, ao lado do seu marido ou prometido, o grande baile da noitezinha quente. Também cheiroso e de banho tomado, com a cara maciinha pela barba cortada, o bailarino chega alinhado: camisa de gola com gravata, calça de linho com cinto de couro polido — arranjando com os sapatos marrons reluzentes. Porta em sua cabeça um chapéu de pele curtida, em acordo com a gravata, com o cinto, com os punhos e com os preciosos sapatos engraxados. Daí chega, então, Cobra Norato e o seu companheiro de andanças:

COBRA NORATO – (fora): A festa parece animada, compadre.

 TATU: Vamos virar gente pra entrar?

COBRA NORATO: Então vamos.

COBRA NORATO GENTE: Boa-noite.

DONO DA CASA: Bua-nuite. (…) Se for de bem pode entrar.

COBRA NORATO [GENTE]: Então peço licença para quebrar um verso pra dona da casa…

COBRA NORATO [GENTE] (cantando): Angelim folha miúda que foi que te entristeceu?

FIGURANTES (dançando): Tarumã.

COBRA NORATO [GENTE]: Flor de Titi murchou logo nas margens do igarapé.  FIGURANTES: Tarumã (…)

COBRA NORATO [GENTE]: Puxe mais um chorado na viola, compadre.

DONO DA CASA: Mano, espermente um golinho de cachaça ardosa pra tomar sustança.

COBRA NORATO [GENTE](CANTANDO): Tajá da folha comprida não pia perto de mim.

TODOS: Tajá (…)

COBRA NORATO [GENTE]: Tajá que traz mau agoiro não pia perto de mim.

TODOS: Tajá (…). (APOCALYPSE, 197?.:37-40).

 

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MEGALE, Nilza Botelho. Folclore Brasileiro. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. 2. ed. ver. e ampl. Belo Horizonte: UFMG, 1991.

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PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. Coleção História &… Reflexões. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

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ROCHA, Helenice Maria Reis. Sinais de Oralidade: transfiguração da voz em Cobra Norato. 2000. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

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NOTAS:

[1] Mestrando em Teatro pela UDESC; Especialista em História da Cultura e da Arte pela UFMG; Bacharel em Artes Cênicas — habilitação em Direção Teatral — pela UFOP.

[2] Conforme Amaral (1997:15), Teatro de Animação ou Teatro de Formas Animadas é um gênero teatral que inclui bonecos, máscaras, objetos, formas e sombras.

[3] Elementos que foram largamente defendidos, frente à invasão da cultura européia, pelos artistas “antropófagos” da Semana de Arte Moderna de 1922.

[4] Segundo Megale (2003:21-22), o folclore do Brasil pode manifestar-se na sabedoria popular (medicina rústica), nas representações (autos e mamulengos), na música (cantigas de roda, modinhas e dorme-nenês), na dança (frevo, maxixe, Congada e Folia de Reis), nas práticas diversas (festas religiosas, candomblés e umbanda), nos mitos e lendas (Saci-Pererê, Lobisomem, Mula-sem-cabeça), etc.

[5] O Manifesto Antropofágico foi escrito por Oswald de Andrade (1890-1954) e publicado em maio de 1928, no 1º número da Revista de Antropofagia. O movimento antropofágico brasileiro tinha por objetivo a deglutição/incorporação transformada e abrasileirada — sem mimetização — das influências européias (a cultura do outro externo) e afrodescendentes (a cultura do outro interno).

[6] Cf. o depoimento de Álvaro Apocalypse no site http://www.giramundo.org/teatro/cobra.html.

[7] “O modernismo, [no Brasil], se conjuga com o interesse por conhecer e definir o brasileiro. [Porém], os modernismos, [em geral], beberam em fontes duplas e antagônicas: de um lado, a informação internacional, sobretudo francesa; de outro, ‘um nativismo que se evidencia na inspiração e busca de nossas raízes (também nos anos vinte começam as investigações do nosso folclore)’” (AMARAL, 1985:270-281. Apud CANCLINI, 2008:79).

[8] De acordo com Paiva (2002:54), mestiço é um termo utilizado para designar os mulatos, pardos, cabras e caboclos brasileiros. Um bom exemplo da mestiçagem racial do Brasil seria a figura do importante artista do Barroco Mineiro, o Antônio Francisco Lisboa ― Aleijadinho ―, filho de um construtor português e de uma escrava negra. Finalmente, para o mesmo autor, “o gênio e o ethos nacionais eram mestiços” (Id.:79).

[9] Conforme Pesavento (2004:43), o imaginário seria um sistema de idéias, de sentimentos e de imagens — representações coletivas — que estão profundamente enraizadas na maneira de ser, de agir e de pensar das pessoas.

[10] Matéria prima pela qual foram confeccionados os bonecos “Bailarinos”.

[11] Bonecos de balcão são aqueles — geralmente — manipulados num balcão ou superfície plana.

[12] Conforme Hall (2006:08), identidades culturais são aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais. Assim, um bom exemplo para a identidade cultural seriam as diversas expressões sócio-linguísticas do português brasileiro, que caracterizariam cada Estado e região. Vejam-se algumas, de acordo com Horta (2000:39, 91, 131, 175 e 209): “‘uai’ (interjeição que vale para tudo) e ‘trem’ (coisa), para os mineiros; ‘ser pidonho’ (estar sempre pedindo as coisas), para os paulistas; ‘até curi’ (até logo), para os amazonenses; ‘damo’ (homem solteirão que gosta de farra), para alguns nordestinos; ‘lê com lê, cré com cré’ (cada um igual ao outro), no Centro-Oeste; e, por fim, ‘caráter’ (rosto, fisionomia), para os catarinenses”.

[13] Neste caso, a referência de Câmara Cascudo ao sul do Brasil parece incluir os estados das regiões Sudeste, Centro-oeste e Sul.

[14] Conforme Cascudo (2002:133), o Saci em sua subida para o norte do Brasil, foi assimilando os elementos que pertenciam ao Curupira, como, por exemplo, parar a perseguição a alguém para desatar nós.

[15] O mito do Saci aparece figurado em mais quatro espetáculos do grupo mineiro. A saber: “Saci Pererê” (1973), A Redenção pelo Sonho (1998), Os Orixás (2001) e O Aprendiz Natural (2002).

Multiplicidade de vozes e discursos na obra Pinocchio do Giramundo Teatro de Bonecos

Artigo apresentado no VI Colóquio Internacional de Etnocenologia da UFMG (2009) – GT Enredos e Rodas.

Autor: Luciano Oliveira — Mestrando em Teatro pela UDESC; Especialista em História da Cultura e da Arte pela FAFICH/UFMG e Bacharel em Direção Teatral pela UFOP.

Palavras-chave: Pinocchio, Giramundo, Polifonia, Bakhtin, Teatro de Animação (bonecos, sombras, objetos, máscaras e formas).

INTRODUÇÃO

Este artigo busca identificar as múltiplas vozes artísticas e discursos presentes no espetáculo de formas animadas Pinocchio, do grupo belo-horizontino Giramundo Teatro de Bonecos, montagem de 2005 dirigida a três vozes: por Beatriz Apocalypse, por Marcos Malafaia e por Ulisses Tavares.

O exame pressupõe que a categoria vozes artísticas refere-se às sombras, aos objetos, às projeções de vídeos e de imagens, e, ademais, ao cinema de animação.  Assim, o sentido do termo vozes vai mais além de um conjunto de sons emitidos pelo aparelho fonador humano.

Em outra perspectiva, a categoria discursos ― ou “instâncias discursivas” (MALETTA, 2005, p. 25) ―, aludiria, neste artigo, às distintas técnicas de manipulação utilizadas pelo grupo em Pinocchio, a saber: luva, fio, balcão, tringle[i], vara, pantins[ii], sombra e boneco gigante. Obviamente, poderiam ser examinados outros discursos, como a iluminação, a cenografia e os pontos de vista da direção. Não constituem, porém, objeto de estudo deste trabalho. Em suma, pretende-se, como foi mencionado, identificar as vozes e discursos presentes em Pinocchio, observando-se como se dão as interconexões entre estes e aqueles. Além disso, apontaremos em que pontos tais interconexões aparecem de forma mais objetiva.

Para concluir, objetivando-se tornar mais clara a utilização das categorias referidas, traremos o conceito de polifonia conforme Bakhtin (2002, p. 04): uma multiplicidade de vozes e discursos e consciências eqüipolentes[iii], plenivalentes[iv], independentes e imiscíveis. É importante salientar ainda que esse conceito extrapola o discurso verbal, podendo ser aplicado às diversas linguagens, como ao Teatro de Animação ― gênero teatral que inclui bonecos, máscaras, objetos, formas e sombras.

 

PINOCCHIO: VOZES, DISCURSOS E INTERCONEXÕES

Profundamente humanista, Pinocchio estabelece uma metáfora sobre o destino e a condição do homem. O espetáculo foi montado utilizando o processo colaborativo, no qual as vozes artísticas e os discursos, desde o princípio, possivelmente foram se interconectando. O trabalho contou com a participação de importantes artistas e grupos de Minas Gerais, que, de certa forma, também emprestaram, para a criação, os seus discursos e as suas vozes: os atores do Galpão dublaram a maioria das personagens, o duo de música contemporânea O Grivo foi responsável pela criação da trilha sonora e pelo design do som, e, por fim, a bailarina e coreógrafa Thembi Rosa realizou a coreografia[v].

Nesta montagem, o Giramundo recorreu a oito diferentes discursos para dar vida aos seres inanimados: luva, fio, balcão, tringle, vara, pantins, sombra e boneco gigante. Além disso, recorreu às vozes: projeção de vídeos e cinema de animação. Somados aos outros elementos visuais e sonoros do espetáculo e aos diferentes pontos de vista dos artistas envolvidos no processo criativo, foram utilizados de maneira que conformassem uma obra com uma intrincada rede de conexões.

Em primeiro lugar, quanto à personagem Pinóquio, encontra-se, sozinha, representada por cinco discursos — que sugerem diferentes caracteres para o boneco de pau. São eles: luva, fio, balcão, pantin e sombra.

O Pinóquio de luva[vi] é falastrão, esperto e mentiroso. Ele pertence à linhagem dos tradicionais tipos europeus Punch, Guignol e Pulcinela, que também se encontram figurados na obra do grupo mineiro.

Outra forma de representação dessa personagem se dá pelo discurso fio[vii]. Aqui o narigudo de pau parece ser lânguido e inconstante. Além dele, outras personagens também são animadas por meio de fios, como a Raposa, o Gato e o Pinóquio Burro.

Mais adiante, o boneco de madeira, que quer transformar-se num humano, é trazido pelo discurso Pantin.

Quanto ao discurso balcão, no qual os bonecos ganham vida e agem numa superfície plana ou balcão, não só o melodramático e elástico Pinóquio é animado por esse meio, mas também outras personagens tagarelas como o Grilo Falante, a Fadinha, a Raposa, o Gato e o Papagaio.

Ademais, outras instâncias discursivas podem ser notadas na obra do Giramundo, como o boneco gigante e os bonecos de vara: peixinhos no fundo do mar, uma cobra grande e assustadora no caminho, uma ave que ajuda o nosso herói a atravessar o oceano, e o próprio Pinóquio fugindo de seu pai Gepeto, são algumas das personagens manipuladas por varas. Já o amedrontador Senhor Cospe Fogo é o único boneco gigante da peça.

Dois personagens ganham vida por meio do discurso tringle: Pavio e Pavio Burro[viii]. Este, assim como o Pinóquio, é transformado em burro por ter ido para o País dos Brinquedos, ao invés de se dirigir para a escola.

Na fortíssima cena do enforcamento[ix] de Pinóquio, nota-se a utilização da voz artística sombra, que parece ser a conectora do mundo dos vivos com o mundo dos mortos. Nela, como numa colagem, ocorre uma grande profusão de imagens e de sons (como a voz de uma mulher e os latidos de um cão), os quais parecem representar a confusão mental, o vazio e a solidão de um boneco, preso por uma corda num grande carvalho. Paralelamente vão surgindo sombras e projeções que se conectam explicitamente à cena, como, por exemplo, a imagem de um relógio que, indelével, marca o devir do tempo e o esvair da vida. Outras imagens também vão nascendo: o último piscar de um olho; o menino que continua balançando, como um pêndulo, numa árvore; a lua cheia, gorda e clara iluminando a noite; uma ave solitária que passa; nuvens escuras que entram e saem sem nenhuma pressa; e, por fim, o céu avermelhado pelo terror. Saliente-se, para concluir, outro momento que utiliza sombras: é o da fuga[x] de Pinóquio, a cena de abertura do espetáculo. Logo após seu nascimento, repleto de energia e de vontade de conhecer o mundo, o serelepe boneco foge a toda força de Gepeto, o seu velho e cansado pai. Nesta cena ocorre também uma justaposição de imagens projetadas, como portas e geringonças, com as sombras de Gepeto correndo atrás do filho.

Das vozes enumeradas até aqui, pode-se elucidar ainda o teatro de objetos: Gepeto é construído a partir de peças de mobília; uma árvore é feita de cabideiros; a Sombra do Grilo Falante é dada por uma lata de sardinha com uma vela acesa dentro; um blusão num cabide representa a personagem que vende os burros Pinóquio e Pavio para o circo; etc.

Mais uma voz artística seria o teatro de mãos, no qual, pelas patas da Raposa e do Gato, nosso herói é capturado e enforcado. Aqui, as mãos de dois atores são maquiadas para que se criem imagens de patas de felinos famintos que perseguem e capturam a sua presa.

Por último, é importante ressaltar ainda a força dramática conseguida no espetáculo pela conexão entre o cinema de animação, a projeção de vídeos e os diferentes discursos do Teatro de Animação. Destacam-se as cenas da morte da Fadinha; a viagem de Pinóquio sobre uma ave em busca do pai; a saga de Pavio e de seu amigo narigudo até o País dos Brinquedos; o mergulho do menino de pau até o fundo do mar, onde é engolido por um tubarão; e, finalmente, a já citada cena de enforcamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dizer que o teatro é uma arte que dialoga com outras artes não é afirmação nova. Entretanto, perceber, mesmo que sucintamente, de que forma Pinocchio se conecta com outras vozes e discursos artísticos, e com eles se comunica, é o que nos entusiasma. No entanto, o perigo da empreitada reside numa análise superficial do objeto apresentado. O risco de omissões é enorme. Sendo assim, que sejam perdoadas ao autor as vozes e os discursos esquecidos.

Em suma, Pinocchio pode ser caracterizada como uma obra polifônica, “onde dialogam os múltiplos discursos provenientes das muitas vozes criadoras do espetáculo” (MALETTA, ibid., loc.cit.). Percebemos melhor essa polifonia quando explícita na encenação. Não deixemos, porém, de notar as vozes e os discursos subjetivos, deixados num canto da sala (de teatro) ou escondidos atrás dos bonecos, como são os pontos de vista e as impressões trazidas pelos diretores, pelos atores-manipuladores, pelo cenógrafo, pelos dubladores, pelo iluminador, pelos editores de vídeo, pelos músicos e por aí afora.

Logo, essa polifonia em Pinocchio em muito contribui para que Cupido, poeta alado que se julga um Adônis — tornando-se ridiculamente amado —, atinja com suas flechas radiantes os barulhentos e palpitantes corações dos espectadores que viram, sentiram e ouviram as vozes e os discursos que vibraram no interior de tão belo espetáculo.

NOTAS


[i] Do inglês tringle: vara. Boneco que tem o corpo sustentado por uma haste metálica fixada na cabeça. (GIRAMUNDO, [198-?], p. 66).

[ii] Do francês pantin: fantoche ou marionete. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/escolar/frances/index.php?lingua=frances-portugues&palavra=pantin&gt;. Acesso em 24 jun. de 2009.  Entretanto, essa tradução não é satisfatória, porque, assim, é fácil confundir essa técnica com a de luva (ou fantoche) e com a de fios (marionetes).

[iii] “Eqüipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu SER [sic] enquanto vozes e consciências autônomas” (BAKHTIN, 2002, p. 04. Nota do tradutor.).

[iv] “Isto é, plenas de valor, que mantêm com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo” (Id., loc. cit. Nota do tradutor).

[v] V. a ficha técnica do espetáculo no site: www.giramundo.org/teatro/pinocchio.htm.

[vi] Os bonecos de luva são os que se encaixam como uma luva na mão do manipulador.

[vii] Bonecos presos em fios e manipulados através de uma cruz ou cruzeta.

[viii] O Pavio à tringle possui uma haste metálica presa à cabeça que propicia um giro de 360º e fios presos ao corpo que possibilitam movimentos laterais do tronco e das pernas. Já o Pavio Burro à tringle possui a haste presa em seu dorso, que ajuda a sustentá-lo.

[ix] V. um vídeo da cena no site mencionado.

[x] Idem.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

GIRAMUNDO (Teatro de Bonecos). Construção Artesanal de Bonecos. Projeto “Manual do Marionetista” ― apoio de Pesquisa VITAE. [S.l.], [s.n.], [198-?].

MALETTA, Ernani de Castro. A Formação do Ator para uma Atuação Polifônica: Princípios e Práticas. 2005. 367 p. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.

Sites pesquisados:

www.giramundo.org/teatro/pinocchio.htm

www.michaelis.uol.com.br/escolar/frances/index.php?lingua=frances-portugues&palavra=pantin

Vídeo pesquisado: Pinocchio (2005). Giramundo Teatro de Bonecos. Direção de Ulisses Tavares. Belo Horizonte: Departamento de Artes Gráficas do Museu Giramundo.

Giramundo: representações culturais, imaginário e mitologia nacional a partir do Saci-Pererê

Artigo apresentado na II Jornada Latino-Americana de Estudos Teatrais (Experimentalismos e identidades) da UDESC

Autor: Luciano Flávio de Oliveira[1]

RESUMO: O objetivo deste artigo é demonstrar como o Giramundo Teatro de Bonecos de Belo Horizonte apropriou-se de representações culturais e de personagens que povoam o imaginário social brasileiro e como o grupo participou da (re)criação de uma mitologia no Brasil, a partir do mito do Saci-Pererê. Para tanto, serão analisadas as representações deste mito nos seguintes espetáculos: Saci Pererê (1973), Cobra Norato (1979), A Redenção pelo Sonho (1998), Os Orixás (2001) e O Aprendiz Natural (2002).

PALAVRAS-CHAVE: Giramundo, Mitologia Nacional, Saci-Pererê.

ABSTRACT:  The goal of this article is to demonstrate how the “Giramundo Teatro de Bonecos” from Belo Horizonte city, incorporated cultural representations from characters that habitate the brazilian social imagination, concurrently, the group’s participation in the recreation of a brazilian mythology, starting with the myth of “Saci-Pererê”, will be emphasized. Thus representations about the mentioned myth will be analized on the following plays:  “Saci Pererê” (1973), “Cobra Norato” (1979), “A Redenção pelo Sonho” (1998), “Os Orixás” (2001) and “O Aprendiz Natural” (2002).

KEY WORDS: “Giramundo”, National mythology, “Saci-Pererê”.

 

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento da imprensa e dos processos de edição gráfica nos séculos XIX e XX propiciou a multiplicação de reproduções em livros, revistas, jornais, etc., e a reprodução maciça de ícones, emblemas, lendas, símbolos e mitos que habitavam o imaginário social dos povos e comunidades há muito tempo. O cinema, a televisão e – bem mais tarde – o vídeo e a internet também ajudaram a propagar e a figurar uma infinidade de imagens. Contudo, no Brasil, o teatro – particularmente o Teatro de Formas Animadas – tornou-se um veículo ímpar para a propagação dessas indicações visuais. Nesse universo, o Giramundo Teatro de Bonecos, companhia mineira fundada em 1970 pelos artistas plásticos Álvaro Apocalypse, Terezinha Veloso e Maria do Carmo Vivacqua Martins, a Madu, vem constituindo-se como uma das referências de representações de lendas e mitos do nosso país. Dentre essas, merece especial atenção o Saci-Pererê.

No início do século XX, talvez tenha ocorrido a primeira figuração do Saci-Pererê no Brasil. Trata-se da realização de uma exposição de artes plásticas promovida pelo jornal O Estado de São Paulo, em 18 de outubro de 1917, tendo como um dos membros da comissão julgadora o escritor e intelectual Monteiro Lobato, que contribuiu sobremaneira para que o mito do Saci ganhasse status literário. Em 1918, Lobato publicou seu livro de estréia: O Saci-Pererê: resultado de um inquérito, conseqüência de uma pesquisa de opinião pública sobre o Saci, intitulada Mitologia brasílica, e, em abril de 1921, o mesmo autor lançou a obra infanto-juvenil O Saci. No ano de 1960, foi a vez de Ziraldo valer-se dessa figura em sua obra. O cartunista mineiro publicou a revista Turma do Pererê, representando o negrinho astuto em cores.

Na televisão brasileira, o Saci é figurado por quase trinta anos: a TV Tupi exibiu de 1952 a 1962 o programa infantil Sítio do Pica-pau Amarelo, baseado na obra de Monteiro Lobato, em que o Saci era um dos seus principais personagens. Depois, a TV Cultura no ano de 1964, a Rede Bandeirantes em 1967 e a Rede Globo de 1977 a 1986 também exibiram o programa. A TV Globo retomou sua exibição em 12 de outubro de 2001, fazendo isso até os dias atuais. Em 1980, esta última mostrou uma adaptação para televisão da revista de Ziraldo, e, em 1998, a Turma do Pererê foi filmada em 16 mm, tornando-se uma série de 20 episódios mostrada pela TVE. Atualmente, essa turma é exibida também na TV Cultura.

Aproveitando-se do turbilhão de representações desse mito ocorridas no século XX, o Giramundo montou e estreou, em 1973, o espetáculo Saci Pererê. Mais tarde, o negrinho malandro figuraria em mais quatro produções da companhia: Cobra Norato (1979), A Redenção pelo Sonho (1998), Os Orixás (2001) e O Aprendiz Natural (2002).

Enfim, neste artigo analisarei iconológica e iconograficamente o mito do Saci-Pererê e das representações deste nas cinco montagens referidas. Com tais descrições, pretendo evidenciar que a companhia mineira representa um mito figurado e difundido unicamente no Brasil e que este ser mestiço pertence ao panteão mitológico do nosso país.

ORIGENS E FIGURAÇÕES DO MITO DO SACI-PERERÊ

Mito não é o mesmo que lenda. Muitos autores confundem esses termos, trazendo-os, erroneamente, como sinônimos. Para Megale (2003, p. 50), as lendas são inspiradas em fatos históricos, transformados pelo imaginário social, e referem-se geralmente a fatos reais, em torno dos quais a imaginação cria uma série de coisas irreais e até inverossímeis. Já para Câmara Cascudo (2000, p. 511) a lenda é localizável no espaço e no tempo e está ligada a um local ou à vida de um herói. Sendo assim, diferentemente da lenda, o mito atingiria uma área geográfica mais ampla e não seria necessariamente fixado no tempo e no espaço. Logo, as lendas de Barba Ruiva, de Santo Antônio, dos cangaceiros, do pacto com o demônio e dos tesouros escondidos, diferenciam-se dos mitos de Édipo, de Aquiles e de Medusa.

Novamente para Megale (2003, p. 05), os mitos seriam narrativas fantásticas ou fabulosas, relacionadas a uma determinada cultura, crença ou religião, transmitidos por gerações dentro de uma estrutura tradicional. Eles teriam por finalidade fornecer uma explicação plausível para a origem e para o motivo das coisas, como para os fenômenos naturais e cósmicos: ciclos das estações do ano, do dia e da noite, da vegetação, da vida e da morte … e para os fenômenos históricos. Portanto, encontramos mitos relacionados às origens do homem, da flora e da fauna; mitos de destruição; mitos aquáticos, zoológicos e florestais; mitos de heróis e de salvadores; e assim por diante. Alguns deles, como o do Saci, que é conhecido no nosso país e em outras regiões do mundo, têm funções morais e didáticas.

O mito do Saci-Pererê parece ter nascido no final do século XVIII ou meados do século XIX: “Os cronistas do Brasil colonial não o mencionam” (CASCUDO, 2000, p. 794). Durante a escravidão, as amas-secas e os caboclos velhos assustavam as crianças com os relatos das travessuras do negrinho fumador de cachimbo. Desde então, ele encontra-se profundamente enraizado no imaginário dos brasileiros. Sua história foi propagada por todo o país e pode ser notada em diversas regiões.

Existem muitas lendas em torno do Saci. Algumas tentam explicar a existência de uma só perna no pequeno ligeiro. Uma das mais interessantes diz que, antes de se tornar um Saci, um escravo teria perdido o membro lutando capoeira. Sobre o mesmo assunto, Anastasia (2002. p. 382) cita o escritor Olívio Jekupé, afirmando que uma entidade indígena foi transformada no Saci-Pererê pelos africanos que a mesclaram com Ossaim, negro de uma perna só, filho pequenino de Oxalá e Iemanjá, orixá das folhas, da magia e da cura.

Na língua guarani, o pequeno travesso recebe o nome de Kambaí e, em tupi, de Yací. O nome Saci – “o olho doente” (CASCUDO, 2002. p.127) ­– é encontrado desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul, porém o mito não é o mesmo em todas as regiões brasileiras. No Mato Grosso, existe uma variante do Saci chamado de Kilaino. Em São Paulo, ele usa um boné vermelho no lugar da carapuça e habita os brejos. Entretanto, o Saci-Pererê pequenino, de uma perna só, de pele e cabelos pretos, usando na cabeça um barrete vermelho e mágico e fumando um cachimbo, seria mais comum no folclore do Sul[1] do Brasil, não havendo, portanto, o Saci-Pererê no Norte nem no Nordeste. Já Anastasia (2002, p. 380) percebe o Saci como uma criação original do sertanejo, principalmente os de São Paulo e Minas Gerais.

O Saci brasileiro possui características parecidas com alguns mitos de outros países. Chamado de Yacy Yateré (ANASTASIA, 2002, p. 128) no Paraguai e na Argentina, é, muitas vezes, encontrado como um anãozinho vermelho de duas pernas, nu, de cabelos dourados (em alguns momentos com barba), usando um chapéu de palha na cabeça e trazendo uma varinha mágica ou bastão de ouro em suas mãos.

Em muito estas representações lembram o nosso Saci, porém nenhuma delas é tão parecida quanto a do Fradinho da Mão Furada português, que, além da carapuça vermelha e a mão furada, tem um jeito peculiar de invadir os quartos: ele entra pelo buraco da fechadura da porta e escarrancha-se em cima das pessoas que dormem com a barriga para cima, provocando nelas enormes pesadelos. O Saci do Brasil, além de causar pesadelos nos dorminhocos, adora revirar as gavetas dos armários e guarda-roupas. Por fim, Cascudo (2002, p. 131) refere-se a Elfos, Gobelins, Lamias, Pulpicans, Trolls, etc., todos eles seres míticos europeus que possuem características ou comportamentos semelhantes ao esperto e misterioso Saci-Pererê.

Ser mestiço habitante das florestas, dos redemoinhos e das margens dos rios, nascido em “sacizeiros” (LOBATO, 2005, p. 18), inimigo do sol e filho das trevas, originário de lendas indígenas, principalmente dos Tupis-Guaranis, misturadas com crendices e superstições africanas e mitos europeus, o Saci não é bom, nem mau. O mito pode ser interpretado também como o senhor das matas, principalmente do Sertão, como curandeiro e como símbolo da liberdade, por portar uma carapuça vermelha semelhante ao Pileus romano, que, na Roma Antiga, identificava os escravos livres.

Não há nada impossível para os Sacis. Conforme ele mesmo nos conta, eles são gerados por sete anos dentro de gomos de taquaraçus e, lá dentro, já estão de pitinho aceso na boca e carapucinha na cabeça. Já nascem sabendo e têm o instinto de tudo. Vivem justos setenta e sete anos. “Alcançando essa idade, viramos cogumelos venenosos, ou orelhas-de-pau” (LOBATO, 2005, p. 20). Ainda não bastando, o Saci também se acha adivinho, “enxergador” e “escutador” de tudo, como é o caso do espetáculo A Redenção pelo Sonho.

Finalmente, para o Tio Barnabé do Sítio do Pica-pau Amarelo exéste [sic] Saci. Ele,

“é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. (…) [Ele] azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Não contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles” (LOBATO, 2005, p. 14).

 REPRESENTAÇÕES DO SACI PELO GIRAMUNDO TEATRO DE BONECOS

 Descritas as representações do Saci-Pererê que mais se difundiram, cabe agora discutir as questões propriamente relacionadas às figurações desse mito concebidas pelo Giramundo.

Todos os Sacis figurados nos espetáculos deste grupo são pequeninos, negros, só têm a perna esquerda, estão nus e adoram pitar fumo num cachimbinho. Quatro deles trazem uma carapuça vermelha e nenhum tem as mãos furadas como o Fradinho português. As dimensões dos bonecos, as suas expressões faciais e as suas técnicas de manipulação podem variar de acordo com a finalidade da personagem nas peças. Na encenação de O Aprendiz Natural, por exemplo, o Saci é uma marionete[2] e tem cerca de quinze centímetros. Já em Cobra Norato e em Os Orixás, os Sacis medem entre 45 e 50 centímetros e são bonecos de balcão[3].

Raimundo Bento, marionetista e manipulador do Giramundo desde 2001, afirma que “as técnicas de fios e de balcão propiciam agilidade e rapidez de movimento aos personagens Sacis”[4], fazendo com que suas figurações aproximem-se da representação do Saci-Pererê imaginada popularmente, ou seja, moleque, rápido e super ativo.

Por outro lado, haja vista uma das filosofias de trabalho do grupo ser a valorização e preservação das culturas populares e do folclore brasileiro — como nas montagens que trazem figurações das cerâmicas Marajoaras do Norte do Brasil, do teatro de bonecos do Vale do Jequitinhonha de Minas Gerais e dos Mamulengos de Pernambuco — nota-se que Álvaro Apocalypse sempre tentou buscou inserir estes elementos na concepção artística dos espetáculos, na dramaturgia e nas formas dos bonecos do Giramundo. Ele, assim como os modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922, buscava as cores brasileiras, ou seja, a “brasilidade”, e o que seria uma manifestação cultural “genuína” do nosso país.

Nesse sentido, Apocalypse e Madu escreveram, em 1973, o texto Pedro Malasartes e o Saci, obra que gerou, no mesmo ano, a montagem teatral Saci Pererê. Este espetáculo narra, mais ou menos assim, por meio de mineiridades[5], uma história do sertão mineiro: um casal de fazendeiros idosos – Dona Filó e Seu Quim – levava uma vida boa e humilde, um modo de viver “típico” das cidades e vilas do interior de Minas. Eles tinham um burrinho chamado Mimoso, uma cabra — Branca de Neve —, e uma galinha botadeira. Tinham também queijo de leite de cabra, que era levado junto aos ovos para serem vendidos na feira. Até que um dia aparece o Saci exigindo coisas:

“Saci (pulando):  Saci pererê qué comê

 Saci pererê qué pulá

 Saci pererê qué bebê

 Saci pererê que fumá

Saci pererê qué café

(bate na porta) Dona Filó, Saci qué comê

Filó: Cruz credo. É o saci, Quim. (…) Sai moleque à-toa, não tem café não. Vai embora.

Saci: Tem não? Filomena, seu sobrenome é Filó unha de fome

Filomena seu sobrenome é Filó unha de fome” (APOCALYPSE, 1973, p.04).

O danadinho do Saci insiste em pedir: ele quer pinga, quer brasa para acender seu pito, quer fumo de rolo. Ele inferniza a vida do senhor Quim e da dona Filó, que se recusam a lhe dar o que pede, deixando-o do lado de fora. Então o Saci vinga-se dos dois, gritando e assoviando nos ouvidos dos bichos, afugentando-os. O casal, sem os seus preciosos animais, fica triste e arruinado. Aparece, então, o esperto e guloso Pedro Malasartes que engana o Saci, prendendo-o numa garrafa. Depois de muita negociação, o negrinho faz voltar os bichos e é libertado; Malasartes, porém, o obriga a carregar sua bagagem, sob pena de batismo pelo padre da cidade.

Saci Pererê foi a terceira montagem do Giramundo e a primeira a abordar temas brasileiros. Aqui, O Saci tem sotaque e expressões lingüísticas mineiros e um largo sorriso sem dentes, como que para expressar os qüiproquós cômicos que ele gosta de aprontar. De acordo com Angelita Angélica[6], ele tem mais ou menos 60 cm de altura e é manipulado pela técnica de vara.                                                           

Ainda fiel à intenção de recriar uma arte de cunho nacionalista, Apocalypse recorre mais uma vez ao Movimento Modernista de 1922 e cria Cobra Norato (1979), espetáculo baseado no homônimo de Raul Bopp. Esta é a encenação mais renomada do Giramundo, a mais premiada e considerada um marco na história do teatro de bonecos do Brasil, ocorrendo nela a introdução de motivos africanos e indígenas. Assim, são várias as intenções da peça: produzir um espetáculo de bonecos essencialmente brasileiro, comemorar os 50 anos do Manifesto Antropofágico[7] e homenagear o autor do Rio Grande do Sul. O grupo, segundo Apocalypse[8], trabalhou com uma “forma nacional”, ou seja, formas simples e indígenas, com bonecos de origens brasileiras. O ritmo do espetáculo, segundo ele, possui uma “brasilidade”, e a manipulação dos bonecos é quase perfeita.

Herói e narrador, Honorato é um boneco índio e representa o próprio poeta, que, vestido de pele de cobra, sai correndo pelo mundo em busca da Filha da Rainha Luzia, que é um boneco de traços europeus. Honorato sai do Fundo da Floresta Amazônica, com seu companheiro de andanças, o Tatu[9] e se dirige a Belém do Pará. O sentido dessa viagem parece ser a suas saídas da selva (da barbárie) para a entrada na civilização. Enfim, notamos também a confluência das três etnias que dão origem à mestiçagem dos brasileiros: o índio, o europeu e o africano.

Mestiço, o Saci aparece bem rapidamente neste espetáculo. Ele não tem falas. Sua função na peça seria a de representar o mito dentro do folclore da região norte do Brasil e a mistura de etnias, como podemos notar na composição do boneco: ele utiliza um lenço vermelho (europeu?) no lugar do tradicional barrete e traz, no pescoço, um denso colar amarelo (africano?). Honorato, em sua saga, necessitando atravessar a floresta, pede licença ao Curupira[10], deixando-lhe um pedaço de fumo. Então, quem surge rapidinho para pegar a oferenda é o esperto do Saci-Pererê. Em Cobra Norato, o Saci é robusto, lembrando um adulto baixinho. Suas características físicas parecem fazer dele o mais africano de todos os Sacis do Giramundo. O seu rosto possui traços semelhantes a algumas máscaras ritualísticas africanas[11].

Outra montagem do grupo mineiro é A Redenção pelo Sonho, ópera de câmara em um ato produzida em 1998 por Sérgio Escamilla. A música, libreto e regência é do compositor, pianista, arranjador e autor teatral Tim Rescala. A narrativa se passa no dia da morte de Monteiro Lobato, 4 de julho de 1948, e é uma homenagem a ele. A história narra partes da vida do escritor modernista e nacionalista, que recuperou costumes da roça, lendas e mitos do nosso folclore, criando personagens ligados à cultura popular brasileira: Visconde de Sabugosa, Emília, Dona Benta, Tia Nastácia, Marquês de Rabicó, Quindim, Rinoceronte, Jeca Tatu e, claro, o Saci-Pererê.

Vamos à narrativa: em sua mesa de trabalho, Monteiro Lobato responde a uma carta de um amigo. Como que voltando no tempo, ele passa sua história a limpo, travando com os demais personagens as discussões que promoveu em vida com tanto empenho e paixão, tendo o Brasil como principal referência. Suas criações, como o Saci, quando se consideram injustiçadas pelos casos contados por seu criador, brigam com ele, apresentando-lhe outro ponto de vista sobre a sua obra e a sua vida. Nessa, o ficcional, a cultura popular e o imaginário contemporâneo confundem-se a todo o momento.

Esperto, convencido e sem modéstia, o Saci-Pererê aparece para seu patrãozinho —dessa maneira referia-se àquele que o criou — para lembrá-lo do quanto o patrão o ama, e também para dizer-lhe que ele é uma das suas mais importantes invenções.  Daí surge o Visconde de Sabugosa, para pegar o desaforado com uma rede:

 “Visconde de Sabugosa: Chega, Saci, sai já daí.  Deixa o mestre em paz. 

 Saci: Esse espigão não larga do meu pé. Ainda bem que eu só tenho um.

Visconde: Essa assombração vive só pra perturbar, sempre espalhando a desordem em qualquer lugar que vá.

(…) Saci: Mentira, é só intriga. Esse sabugo invejoso não suporta que o patrão goste mais de mim (…)” (RESCALA, 1998, p.16).

Sabugosa continua a perseguir o desordeiro “gorador de editoras”. Saci havia gorado nada menos que quatro editoras do seu patrão. Lobato incentiva o sabugo de milho a retirar a carapuça do moleque, que, assim, iria fraquejar. Sem medir esforços, o Visconde consegue prender o danadinho numa peneira.

Essa mini-ópera sugere um Saci representante da “desordem” brasileira. Ele possui apenas quatro dedos nas mãos e dois dentinhos à mostra. Seus olhos, estilizados, são quase que orientais. Lábios grandes e grossos caracterizam um grande falador. Suas orelhas pontiagudas, parecidas com as dos Gnomos dos contos europeus, remetem-nos à figura de um personagem atento, astuto, pronto à prática filosófica.

Em Os Orixás — montagem de 2001 com texto, cenografia e concepção original de Álvaro Apocalypse —, o Giramundo leva para a cena questões religiosas e mitológicas da cultura ioruba: lendas, ritos e mitos que vieram com os negros africanos para o Brasil e a contribuição religiosa dos escravos para a formação da cultura brasileira – miscigenação cultural. Conforme Angelita Angélica[12], esta seria uma das preocupações do grupo: trabalhar sempre com a questão da nossa formação cultural.

Para essa montagem, Apocalypse apropriou-se de alguns orixás do panteão africano, como Exu, Iemanjá, Katendé, Iogum Edé, Oxalá, Oxóssi e Xangô. A obra não objetiva a retratação do mito do Saci e, cenicamente, ele não representa nenhuma entidade religiosa. Nesta, ele funciona como um simples ajudante de um orixá que trabalha com ervas; é portanto, apenas um auxiliar que surge para buscar e entregar algumas folhas e chás para a entidade. Seu aparecimento é muito rápido, inclusive não tendo nenhuma fala. Seu nome é Aroní, de origem ioruba, talvez por representar alguma aproximação de um ente africano com o mito brasileiro. Daí poderíamos fazer uma analogia de sua figura com o Exu, orixá de grande importância na trama do Giramundo. Conforme Anastasia (2002, p. 383) o Saci-Pererê tem muito do senhor dos caminhos africano, que, na África, era associado por algumas tribos à imagem de um menino irresponsável que se divertia aprontando toda sorte de confusões. No Brasil, essa entidade protetora das encruzilhadas foi demonizada pelos jesuítas. Daí, muitas vezes advém o fato do perneta ser adjetivado como um demônio cheirando a enxofre.

Nesse espetáculo, além do Aroní, são figurados diversos personagens: entidades religiosas, dançarinas, baianas, crianças, adultos, animais aquáticos e terrestres. O Saci aparenta ser um adulto baixinho e gordinho, espécie de Peter Pan que se recusa a crescer, sendo, pois, menor que os outros bonecos da montagem. Por fim, sua expressão facial recorda a figura de um bêbado melancólico em busca do seu ponto de equilíbrio; seu rosto fino, pontiagudo e maquiado traz uma boca com lábios vermelhos e carnudos e alguns dentes estragados.

Por último, em O Aprendiz Natural (2002), o Saci é um ser mágico, guardião da floresta, com fins didáticos, educativos e moralista. Raimundo Bento, na dublagem deste personagem, tentou não demonstrar nenhuma expressão regional por meio da partitura vocal do molequinho, buscando uma neutralidade de espaço e tempo para a criação do mesmo. O Saci é uma personagem do bem, que dá uma lição no Homem Mau, destruidor das florestas e do meio ambiente. Ele faz uma espécie de mágica, mudando o caráter do antagonista e os rumos da história, fazendo com que a figura sombria e temível do malvado passe a defender a natureza. Tudo que ele destruiu será mais tarde reconstruído: o perverso devasta as plantas, corta as árvores e, depois da lição do negrinho, resolve plantar tudo novamente.

Nesta montagem, a bicharada da floresta revolta-se contra as destruições do sujeito mal-intencionado. Então, o Tatu tem um plano. O devastador das matas e desestabilizador da harmonia entre os bichos recebe uma lembrança com os seguintes dizeres: “Este presente é para o Homem Mau, que pensa que estragar é coisa normal. Receba esta linda lembrança da mamãe Natureza e dos bichos daqui, bastante pó-de-mico e um lindo Saci” (TAVARES, s.d., p. 40). De repente, surge um grande redemoinho levantando as folhas que estavam no chão:

“Homem Mau: Pelo amor de Deus, quem tá aí?

Saci: Sou eu, o seu Saci. Vim te dar uma lição!

(…) E a rodear numa perna só, o negrinho com cachimbo e chapéu vermelho, cantava uma canção hipnótica que deixou o Homem Mau estirado no chão, duro feito um pau” (Id., ibid. p. 45).

Então, o Saci faz um encantamento:

“Primeiro o pó-de-mico e boa educação. Com pozinho eu enfeitiço e te mudo a direção! De hoje em diante conserte o que estragou, os bichos machucados e as flores que arrancou. Desfazer esta lambança será sua obrigação, porque lixo espalhado é contra a evolução(Id., ibid. p. 46. Grifo meu.).

 Em resumo, o Saci foi colocado em O Aprendiz Natural como um ente mágico da floresta que promove o equilíbrio do ecossistema, ajudando os animais a resolverem os seus problemas. Podemos interpretá-lo também como um ser gentil e “evoluído”, residente num bosque de uma “nação civilizada” e rica em recursos e belezas naturais. Fisicamente, essa entidade não se difere muito das outras representações do mito nos espetáculos do Giramundo: ele é só um pouco menor, mais leve e mais frágil. Sua iconografia pode ser assim descrita: olhos pretos e arredondados, nariz grande e retangular, braços finos, mãos com apenas quatro dedos e perna única bastante forte. Aliás, esta é uma característica recorrente em suas figurações pela companhia mineira, haja vista a necessidade de sustentação de um corpo dinâmico e pronto ao movimento. As bochechas rosadas sugerem um garoto saudável, resistente e vistoso. Este nos recorda um cidadão brasileiro civilizado, nobre, sensato, cuidadoso, sagaz, feliz, desenvolvido física, intelectual e moralmente, e que luta pela liberdade e pela democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 O mito do Saci-Pererê viaja, com o Giramundo, por vários estados, cidades, distritos e vilas do país. Com isso, pode-se dizer que o grupo mineiro auxilia na sua divulgação, na sua recriação e, também, na consolidação de sua imagem.

            Por outro lado, pretendendo valorizar e difundir a nossa cultura, principalmente a popular, esta companhia sempre tentou traduzir para os espectadores valores e categorias como nacionalismo, organização, civilidade, identidade cultural, brasilidade, e o que seria uma manifestação cultural genuinamente mineira e brasileira. Ademais, passados mais de três décadas da origem do grupo e a encenação de mais de 30 espetáculos, podemos dizer que os artistas sucessores de Álvaro, Terezinha e Madu ainda zelam por esses objetivos.

Em relação ao mito em questão, muitas vezes socialmente interpretado como sendo um demônio cheirando a enxofre, um vampiro ou um ser assustador de crianças e de tropeiros, o pequeno mestiço senhor das matas se assemelha mais a uma criança ingênua e brincalhona ou a um pequeno adulto improvisador de situações. O que sabemos ao certo é que não existe nada impossível para ele: fazer curas; adivinhar coisas; andar livremente pelas matas, rotas e estradas; transformar-se em pássaros; ficar invisível; pitar um cachimbo; e até mesmo proteger os bichos ou as pessoas. Tudo depende dele e tão somente dele, dos seus desejos e interesses, evidentemente. Intelectual, filósofo, mágico ou misterioso, figurado em livros, cinema ou teatro, o Saci, com a iconografia que foi descrita neste artigo, parece ser única e exclusivamente — resguardadas as suas influências — fruto da criação e do riquíssimo poder imaginativo dos brasileiros.

Enfim, no sentido figurado, podemos também interpretar os Sacis do Giramundo como representantes e organizadores dos conflitos gerados pelas instabilidades dos ecossistemas, pelas dificuldades econômicas, políticas e sociais em que vivem as personagens que com eles se relacionam — fazendo-se aí um paralelo com a situação brasileira contemporânea —, e como habitantes de um Brasil vasto, belo, livre, democrático e civilizado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas: Máscaras, Bonecos, Objetos. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

ANASTASIA, Carla Maria Junho. Saci-Pererê: uma alegoria mestiça do sertão. In: PAIVA, E. F. ANASTASIA; C. M. J. (orgs.) O Trabalho Mestiço: Maneiras de Pensar e Formas de Viver – Séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002.

APOCALYPSE, Álvaro; MARTINS, Maria do Carmo Vivacqua. Pedro Malasartes e o Saci. (Texto datilografado). Giramundo Teatro de Bonecos. Belo Horizonte: Arquivos do Museu Giramundo, 1973.

BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi. Antropos-Homem. (trad. port.) Vila da Maia, Portugal: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, v.5.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

_________________________ Geografia dos Mitos Brasileiros. 2. ed. São Paulo: Global, 2002.

_________________________ Superstição no Brasil. São Paulo­: Global, 2002.

CAPRETINI, G.P. Imagem. In: Enciclopédia Einaudi. Vila da Maia, Portugal: Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 19–, v. 31. Signo. p. 177-199.

JULIEN, Nadia. Dicionário Rideel de Mitologia. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2005.

LOBATO, Monteiro. O Saci. 56. ed. São Paulo: Brasiliense, 2005.

MEGALE, Nilza Botelho. Folclore Brasileiro. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. Coleção História &… Reflexões. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

RESCALA, Tim. A Redenção pelo Sonho. Giramundo Teatro de Bonecos. São Paulo, 1998. Obra datilografada disponível nos arquivos do Museu Giramundo, 2007. 27 p.

REVISTA de Antropofagia. Reedição da Revista Literária publicada em São Paulo – 1ª e 2ª “Dentições” – 1928-1929. São Paulo: CLY – Cia. Lithographica Ypiranga, 1976.

TAVARES, Ulisses. In: Coleção Mini Teatro Ecológico: O Aprendiz Natural. Belo Horizonte: Editora Giramundo, s.d.

 

Site pesquisado: http://www.giramundo.org/teatro/saci.htm


NOTAS

[1] Neste caso, a referência de Câmara Cascudo ao sul do Brasil parece incluir os estados das regiões Sudeste, Centro-oeste e Sul.

4 Marionetes são bonecos articulados manipulados por fios.

5 Bonecos de balcão são manipulados sobre uma superfície plana. No Giramundo, eles geralmente são manipulados através de uma vara no braço esquerdo e de uma alavanca nas costas que propicia movimentos de cabeça, boca e olhos.

6 BENTO, Raimundo. Raimundo Bento: inédito. Belo Horizonte: Escola Giramundo, 04 out. 2007. 1 fita MINI-DV (45 min). Entrevista oral concedida a Luciano Flávio de Oliveira.

[5] Megale (2003, p. 152) diz que a mineiridade seria a maneira especial de pensar, sentir e agir da população das “Alterosas” (Minas Gerais).

[6] TEIXEIRA, Angelita Angélica Matos. Angelita Angélica Matos Teixeira: inédito. Belo Horizonte, Museu Giramundo. 04 out. 2007. 1 fita MINI-DV (45 min). Entrevista oral concedida a Luciano Flávio de Oliveira. Angelita, na época, era monitora do Museu Giramundo, auxiliar de restauração de bonecos e do arquivo de Álvaro Apocalypse.

[7] O Manifesto Antropofágico foi escrito por Oswald de Andrade e publicado em maio de 1928 no 1º número da Revista de Antropofagia.

[8] Cf. o depoimento de Álvaro Apocalypse no site http://www.giramundo.org/teatro/cobra.html.

[9] Quando o Tatu deixa o seu casco, representa um boneco africano.

[10] Conforme Câmara Cascudo, o Saci, em sua subida para o norte do Brasil, foi assimilando os elementos que pertenciam ao Curupira, como, por exemplo, parar a perseguição a alguém para desatar nós. (CASCUDO, 2002, p. 133).

[11] Aliás, essa característica aparece também nos rostos dos Sacis de A Redenção pelo Sonho e Os Orixás.

[12] TEIXEIRA, Angelita Angélica Matos. Angelita Angélica Matos Teixeira: inédito. Belo Horizonte, Museu Giramundo. 04 out. 2007. 1 fita MINI-DV (45 min). Entrevista concedida a Luciano Flávio de Oliveira. Angelita, na época, era monitora do Museu Giramundo, auxiliar de restauração de bonecos e do arquivo de Álvaro Apocalypse.

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