Esta bem que podia ser uma indagação existencialista à la Sartre. Mas não! Trata-se, antes de qualquer coisa, de uma madura montagem teatral da Cia de Artes Fiasco, de Rondônia ─ agora com sede em Ji-Paraná ─ estreada no Teatro 1 do SESC Esplanada no último sábado, 09 de novembro de 2019, numa noite de forte e ruidosa tempestade.
Com encenação cuidadosa e delicada de Fabiano Barros, esse
espetáculo, cuja montagem foi contemplada pelo Prêmio Sesc de Incentivo às
Artes Cênicas (2019), conta ao espectador, sem palavras, e utilizando-se de
princípios estéticos do Teatro Imagem, a história de um homem solitário e
deprimido, quiçá portador de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC).
Tal homem repete, muitas vezes, por dias a perder de vista,
as mesmas ações: acordar, dar comida ao pássaro (aliás, inexistente na gaiola!),
mexer no despertador que não funciona, retirar e colocar a gravata no pescoço,
aguar uma planta sem vida ─ utilizando um regador sem água ─, se alimentar ─
sem ter nada no prato pra saborear ─, dar corda a um gramofone e ouvir dali um
ruído sem som, datilografar em uma máquina de escrever sem papel e voltar a
dormir novamente numa cadeira de balanço que não é cama. Essas ações absurdas e
repetitivas, e a repetição no espetáculo da Cia Fiasco é necessária, gera
ritornelos imagéticos e musicais. Aliás, a música é executada ao vivo pelo
competente Rinaldo Santos, que cria as atmosferas e climas os mais complexos e
psicodélicos possíveis para o desenrolar das ações cênicas. Inclusive, em dois
momentos, ele balbucia uma bela e triste melodia que acentua o exílio da
personagem, que aqui chamarei apenas de homem triste e solitário (sola et tristis homo). Por seu turno, os
raios, os trovões, as fortes ventanias e os densos pingos d’água sobre o teto
do teatro foi um ganho musical, um presente da natureza para uma já potente
dramaturgia sonora.
O homo,
competentemente representado por Nestor Neto, vive, por si só, em uma casa bela:
retrô. Faz do passado colorido o seu presente sem pigmento; dos formosos e
antigos objetos a sua melancólica companhia. A propósito, o cenário de Onde morrem os pássaros? é primoroso! Fabiano Barros
preocupou-se com os mínimos detalhes de cada móvel; com a semiótica de cada
objeto. Antiquário. Talvez seja esta a palavra mais oportuna para referir-se à
cenografia. E, quem sabe, também à indumentária, se assim pode ser chamada.
O vazio do protagonista é atravessado por uma
mulher (mulier): amante? Amiga? Parente?
Empregada? Não se sabe ao certo. Contudo, pela atuação eficiente e segura de
Laura Martins, nota-se que essa mulher é alguém que traz em sua bagagem a esperança.
E em sua mão um manuscrito, redigido em papel vermelho, a cor da paixão. A cor
do poeta Binho! Essa personagem se mete, como um fórceps, no cotidiano do depressivo.
Porém, a princípio, sua presença é ignorada pelo homo que está fechado, triste e ranzinza em seu paletó empoeirado. Todavia,
aos poucos a confiança é conformada, assim como se concilia a dor ao remédio.
Um pouco de vida é introjetada naquele cotidiano asfixiante, sofrido. Um
respiro feminino alivia a misantropia masculina. A música e a escrita, a arte
(sempre ela!), se tornam presentes para acalentar aquela alma que vagava
solitária pela morada.
Mas a melancholia,
como uma praga medieval, captura também a mulher. E esta, sem forças, é
contaminada ─ poeticamente ─ por essa maldita doença do século: a depressão. O
que fazer agora? Continuar a sofrer? Se matar? Não, acordar e viver, como os
deliciosos raios de sol que despontam a cada manhã de inverno.
Volta o ritornelo inicial. Porém, agora com uma
nova morte-vida: a da mulier. Quem
nunca se pegou perguntando acerca dos seus ritornelos semanais? Acordar, comer,
ir ao banheiro, tomar banho, enfrentar o trânsito, ir pro trabalho, enfrentar o
chefe, almoçar, ir ao banheiro, voltar a trabalhar, enfrentar novamente o
chefe, ir pra casa, enfrentar de novo o trânsito, comer, amar, dormir, acordar novamente,
ir pro trabalho, etc, etc, etc. Enfim, Onde morrem os pássaros? fala também
sobre isso: a vida que passa sem se dar conta. Sobre a presença da solidão:
quando uma pessoa tem alguém e continua a se sentir só. Sobre ritornelos
diários. Quod mors in omnes!
Personagens de Mulheres do Aluá– Fotos de Leonardo Valério
Há quase três anos, próximo à data da minha chegada em Porto Velho, ocasião em que assumi o cargo de professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, tive a possibilidade de assistir ao espetáculo “As Mulheres do Aluá”, do Grupo Imaginário.
Lembro-me que ele tinha estreado fazia pouco tempo. Talvez eu tenha assistido à terceira ou quarta apresentação ocorrida no Teatro 1 do Sesc Esplanada. Mas não tenho certeza disso!
Muito bem, no frescor da estreia, recordo-me da potência estética do espetáculo, principalmente na visualidade (cenário, figurino, iluminação, maquiagem e penteado) e na trilha sonora. O Teatro 1 do SESC me pareceu muitíssimo aconchegante e propício ao desenvolvimento do realismo a que se propôs a direção do espetáculo, competentemente realizada por Chicão Santos.
O elenco da época contava com o delicioso trabalho de Zaine Diniz, Agrael Pereira, Jaqueline Luquesi e Amanara Brandão. A primeira atriz, bastante experiente, é uma das fundadoras do grupo, ao lado do esposo Chicão Santos. Já Agrael era aluna do curso de Teatro da UNIR e Jaqueline postulava ser discente desse curso, o que, mais tarde, se concretizou. Amanara Brandão, a caçula do grupo, almejava entrar no Curso de Artes Visuais da federal. Recordo-me que eu, Adailtom Alves e Alexandre Falcão, também professores de teatro na Unir, confabulávamos sobre a importância de convencê-la a bandear-se para o teatro. E isso, realmente, aconteceu.
No frescor e adrenalina da estreia, “As Mulheres do Aluá” demonstrou-se vibrante e fundamental na discussão dos papeis das mulheres na construção da cidade de Porto Velho, nos primeiros anos do século passado.
Depois de quase três anos pude assistir novamente, no último fim de semana, a esse agradável espetáculo. Mas agora com uma nova configuração espacial, teatro de arena, e com uma nova integrante, Flávia Diniz, que substituiu Jaqueline Luquesi que se licenciou do grupo para trazer à luz o pequeno Ulisses.
Entre uma e outra apresentação que assisti há ganhos e perdas. Mais ganhos, na verdade, devido a passagem do tempo e ao amadurecimento das atrizes. Como professor de duas integrantes e de uma ex-integrante do grupo, convém, didaticamente, analisá-las. Ainda mais em se tratando de alunas das disciplinas de Improvisação, Interpretação e Encenação Teatral. Nesta última, por exemplo, estamos operando com as categorias poética e estética. Grosso modo, a poética está ligada ao fazer, com os modos de produção de um espetáculo. Já a estética relaciona-se mais com a recepção (sensorial, intelectual, etc.), por parte do público, dos múltiplos elementos de uma encenação.
O primeiro ganho refere-se à experimentação do espetáculo em uma configuração de arena. Ele tinha sido concebido, inicialmente, para palco italiano. Com a apresentação ocorrida neste último sábado ficou claro que “As Mulheres do Aluá” pode acontecer tanto em palco italiano, quanto em semi-arena e até mesmo em arena (desde que em espaço fechado). Nesse sentido, o espetáculo é dinâmico. Porém, é preciso atenção das atrizes e do diretor em relação às especificidades das diferentes configurações espaciais pois, com a aproximação do público da cena por meio da arena, como a ocorrida no Tapiri, que é um espaço intimista, a quarta parede deixa de existir e realça ainda mais os elementos materiais e visuais da encenação. E as fragilidades ficam mais evidentes, como algumas falhas interpretativas, do mesmo modo que as qualidades saltam aos olhos, como a potência cenográfica. Contudo, neste primeiro ganho também há perdas, principalmente na iluminação, que é um dos pontos fortes do trabalho apresentado no SESC. O Imaginário ainda não conseguiu resolver os problemas técnicos do Tapiri no que tange aos equipamentos de luz e isso prejudicou a última apresentação.
Outro ponto a ser observado no âmbito desse novo espaço, mais especificamente sobre a apresentação do sábado, diz respeito à energia das atrizes. Não importa o número de espectadores, mas o elenco não pode deixar a peteca cair. Constantin Stanislávski, notável encenador pedagogo russo, dizia aos seus alunos sobre a importância de sempre se manter viva a energia de um espetáculo. Para ele, os atores precisavam constantemente trabalhar suas energias e emoções para que o espetáculo fosse sempre novo, independentemente se se tratasse da milésima ou da primeira apresentação. Nesse ínterim, o fazer e o descobrir deve ser diário. E tais descobertas, o novo, deve alimentar o velho.
Ainda em se tratando do visual, bem como das ações físicas e vocais das atrizes, há perdas no espetáculo atual. Uma delas pode ser notada na composição exterior da personagem “bruxa”, interpretada por Amanara Brandão. O penteado original, da estreia, é mais bonito e compõe melhor com a realidade psicológica da personagem. Porém, a atriz cortou os cabelos. Já nas ações físicas, as maiores questões encontram-se na personagem “cigana”, interpretada por Flávia Diniz. Uma substituição é sempre muito difícil porque, geralmente, quem cria a personagem primeiro dá a ela características conforme suas vivências e experiências. Jaqueline Luquesi, que interpretava inicialmente a “cigana”, conhece danças folclóricas e movimentos do flamenco, como os que foram utilizados na elaboração coreográfica dessa personagem. Ademais, fala o espanhol, pois nasceu em Guajará Mirim, cidade rondoniense localizada na fronteira entre Brasil e Bolívia. Importa observar que a “cigana” é uma espanhola que veio trabalhar em Porto Velho na época da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Logo, no contexto da encenação realista do grupo O Imaginário, a “cigana” fala o espanhol fluentemente e conhece bem a dança flamenca. Por mais que se trate de teatro, uma arte ficcional por natureza, a verossimilhança pode gerar no espectador o processo de identificação com a personagem (ainda mais no Brasil, império das telenovelas realistas!). Desta feita, um espanhol não tão bem articulado pode gerar um ruído, assim como a não execução precisa de determinados passos do flamenco. A sugestão que dou para Flávia Diniz, que carinhosamente chamo de Flavinha, atriz jovem com um futuro brilhante no teatro e no circo, é que busque a sua própria “cigana” a partir das experiências pelas quais passou.
No tocante às ações vocais, em determinadas passagens do espetáculo as falas ficam monótonas, no sentido de que apresentam continuamente o mesmo tom e que se repetem invariavelmente. Por isso, é preciso encontrar novas modulações, ritmos e coloridos vocais para as personagens a fim de valorizar ainda mais o excelente texto de Euler Lopes Teles. Por fim, as cantigas executadas ao vivo são muito bonitas e corroboram bastante para a paisagem sonora do espetáculo.
Para concluir, faz-se mister notar que o trabalho de criticar um espetáculo de teatro, assim como os artistas nele envolvidos, é muito delicado e difícil, ainda mais quando o crítico é tão próximo (amigo e professor) dos integrantes do grupo. Venho trabalhando com meus alunos, e em mim mesmo, a importância da crítica na construção do aprendizado da linguagem teatral, bem como enquanto ferramenta de reflexão estética sobre o espetáculo ou grupo ao qual ela se direciona. Desse modo, uma crítica configura-se como um olhar recortado ou ampliado, dos muitos olhares possíveis, de um dado fenômeno artístico realizado por determinado profissional. E ela varia de olho para olho. E como dizia o professor de Metodologia da Pesquisa Milton de Andrade, do Programa de Pós-graduação em Teatro da UDESC, a respeito da escrita e da pesquisa acadêmica, é preciso que se troquem os óculos constantemente. Isso serve bem para a crítica teatral!
Sábado, 16 de abril de 2016. São 21 h e 41 min. Eu, sujo, suado, fétido e descabelado estou nu, encarando com asco a tela deste computador.
Sexta-feira, 15 de abril de 2016. Eram 08 h e 08 min. Estava eu, limpo, perfumado e penteado. Na UNIR, recebo, no meu whatsApp, uma mensagema do diretor Fabiano Barros:
” – Bo dia
– Tudo bem, querido?
– Tudo
– Vamo confirmar sua apresentação no espetáculo pra amanhã às 20:30
?
– Vamos… Confirmado
Obrigado
– Pera (08:34)
Vamos lá: A Ópera do Beradeiro é um espetáculo construído sobre uma estrutura hiper realista, onde uma única pessoa participa da vivência … O espetáculo acontece em um garimpo dentro de uma Casa Draga REAL. O traslado até o local é feito de motocicleta, após isso, o partcipante terá que caminhar até o local. Há uma certa dificuldade em chegar ao local, por isso solicitamos dos participantes irem de tênis não derrapante, sem bolsas, jóias, celulares ou qualquer coisa de valor… Durante a vivência os intérpretes se dirigem de forma enfática ao espectador chegando em alguns momentos tocá-los… O retorno do espetáculo é feito da mesma maneira (de moto). Há alguma dúvida? Sendo o espetáculo feito para maiores de 18 solicito que nos mande um áudio falando seu nome completo sua idade dizendo que tem ciência de todas as etapas e características do espetáculos. e se está de acordo para que possamos confirmar sua apresentação.
– Sério que terei que andar de moto? Tenho pânico, pois quase morri num acidente. (08:41) Rs As demais questões, pra mim, sao tranquilas.
– Pois é… Vai conseguir?
– Será muito radical a moto? rs
– Não
Só o traslado
– Então eu vou, mas abraçarei firme o motoqueiro.
kkk (08:44)
– Ok
So manda o áudio
– (…………………………………………………………..).
– kkk
Amanhã às 20:30/ em frente ao palácio das artes
– Blz. (08:55)
Sábado, 16 de abril de 2016. Às 20 h e 25 min estava eu, limpo, perfumado e penteado em frente ao Palácio das Artes. Pontualmente chega o motoqueiro: de chinelo, bermuda e camisa de manga curta. Um capacete pendurado no braço direito, mochila preta nas costas. Eu pensei: “Que estranho!”. Sobre minha regata cinza, vesti uma jaqueta de couro comprada em Buenos Aires. Calça jeans de marca. Tênis Mizuno nos pés. Eu perfumado de Bulgari AqUa Amari, comprado em minha última viagem também à Argentina. (Coincidência).
O motoqueiro me dá uma encomenda para levar às costas. “Não tem drogas aqui dentro não, né?”. (Silêncio). “Fabiano te disse que eu tenho pânico de moto e que quase morri de acidente?”. “- Não”. – “Pois é, se você correr vou te abraçar!”. “- Pode abraçar se quiser!”.
Dou os meus óculos, também de marca, para o piloto segurar. Coloco o capacete suado na cabeça. Reponho meus óculos e ele dá a partida, muito lentamente. (Silêncio). O pânico toma conta de mim. Meu coração acelera. Percebo apenas um forte cheiro de cigarro. “Será este cara?”. Vamos reto, viramos à direita, depois à esquerda na Avenida dos Imigrantes. Seguimos reto. O caminho está um breu. À esquerda, um carro de polícia. Pessoas aglomeradas. Eu disse: “Aconteceu algo ali”. (Silêncio). Continuamos em linha reta até passar por debaixo da ponte que passa por cima do Rio Madeira. Cheiro insuportável de esgoto, de merda! Cruzamos alguns caminhões. Lugar escuro, triste, fétido e esburacado.
– “Chegamos”.
Um homem estranho, encostado numa pilastra de uma casa pobre, estava nos olhando. Será que vigiando? Eu, com medo, dou boa noite. Ele responde: “Boa noite!”. Entramos numa pequena mata enlameada. Um cachorro late e parte pra cima de mim. O motoqueiro o espanta. Meu coração acelera novamente. Ouvem-se ruídos de dragas sugando a riqueza do Rio Madeira.
– “Cuidado com o morro. Pise aqui para não escorregar. Desvie do ferro. Pule a corda e pise ali”.
Chegamos à draga.
– “Bata palma que você será recebido”.
Ô de casa!!! (pá-pá-pá). Surge então a primeira personagem: um menino-menina (ou um travesti?), interpretado pelo promissor Rafael Barros, me manda subir as escadas.
– “Você trouxe a encomenda?”. – “Sim”. – “E abriu pra ver o que era?” – “Não”. – “Que bom”. “-Pai, chegou o novato”. Eu era o novato que estava ali para não sei o que. Surge então, bêbado, maltrapilho, sujo e com uma garrafa de cachaça nas mãos o garimpeiro. “- Quem é você?” – “Sou o Luciano”. “Ah, sente-se aqui”. Aquele ébrio, interpretado magistralmente pelo ator Cláudio Zarco, fede: fede a cachaça, a vômito, a bosta, a cigarro, a suor, a sexo. Grotescamente ele baba, ele cospe, ele escarra, ele encara. Ele grita. Ele bate como um porco no chiqueiro. Violento, o protagonista “Beradeiro” agarra os cabelos do menino-menina (ou do travesti?) e o joga na parede de madeira. Ele, por sua vez, triste e desdenhoso, pega-me pela mão e me apresenta a “casa”. O chão estava imundo. Havia cigarros por todos os lados. De cima, vê-se o rio vermelho sendo dragado, explorado, sendo morto pelo mercúrio. Os ruídos das dragas são constantes. Será esta a ópera? Não pode ser. Mas o que tem de ópera na miséria, na imundície e na degradação humana? Ouvem-se cri-cris de grilos, coaxar de sapos. A paisagem auditiva é tão realista quanto a interpretação. Tão realista quanto a tensão que paira no ar. Meu coração acelera-se “again”. Ali eu sou o estrangeiro, o branquelo, o estranho, o novato. Naquele lugar eu sou o outro, o lado oposto da moeda de ouro. Eu sou o burguês. A pedra lapidada, o professor universitário. O funcionário público estável num espaço instável e inseguro. Espaço de morte. De palavrões. De gritos. De assédio sexual e moral. Bafo quente de mau hálito me é cuspido de ambos os lados do pescoço. Histórias violentas me são contadas ao pé do ouvido. Eu arrepio. O menino-menina gosta. Sente o meu corpo. Sorri. Me chama. Me convida pro sexo. Me pergunta se eu gosto de cu, de pau ou de boceta. Eu respondo. Ele também: “Eu também”!. “- Pai, conte pro novato a história da Iara”. “- Eu não sou seu pai. Meu filho morreu aos doze anos!”. Fala gritando. Grita falando. Incesto. Nojo. Que asco! O pai faz do menino a sua menina: sua mulher. O bronco e fétido assassino que matou a mulher e jogou no rio. Que mata os comparsas para roubar o ouro. O ouro da discórdia, que segundo o travesti (?) rende R$ 40.000, 00 por MÊS. Mais que o salário de um professor. Muito mais que o salário de um deputado. Será?
O bêbado bate os pés. Tropeça. Cai por cima de mim. Me cospe todo. Me suja. O filho me seduz, me chama pra cama. Seduz ainda o pai. Faz charme. Um charme escatológico, grotesco. Um charme bicha. Eu apanho. Camaradamente. Mas nem sempre, camarada! Os meus braços brancos ficam vermelhos, como o rosto do filho esbofeteado. Lastimável! Que vida é essa, companheiro? Que decisão faz de vocês aqui? Submundo das armas. Submundo do sexo. Submundo do ouro.
Calor insuportável. O meu suor lava meu perfume como o mercúrio amalgama o ouro. O meu suor se mistura ao cheiro de bafo, ao odor de sexo oral, ao gosto de fezes. A Ópera do Beradeiro canta em um rádio toca fitas. A agora mulher dança. Baila para seu pai. Que aplaude. Que ordena que eu faça o mesmo. E eu, obediente, faço. Surge, então, a Bernadete, a Maria do Carmo, a Cristiane, a Perpétua do Socorro. As pepitas têm nomes. Com orgulho são exibidas pelo explorador. Mas falta uma.” Cadê sua desgraçada?” Bate. Apanha. Arrasta. Eu apanho. A agora mulher apanha. É enforcada. É forçada, nua, a cagar o ouro. Cadê o ouro? Onde está o ouro? Pra onde foi o ouro? Apanha. Grita. Chora. As lágrimas se juntam poeticamente.
Eu sou expulso dali. O bêbado asqueroso e de pés sujos me empurra. Quase sou jogado pelas escadas.
Em baixo me espera: o motoqueiro. “-Me acompanhe!”. (Silêncio). Meu coração se acelera, “de nuevo”, “again”. As dragas dragam. Os sapos latem. O cachorro faz cri-cri. Confusão. Onde estou?
A fortíssima, suja, asquerosa, nojenta, poética, suja (“again”) “A Ópera do Beradeiro” continua na moto. (Ouvem-se apenas os ruídos do motor). Eu me excito. Tenho pânico. O mesmo caminho escuro ao contrário. O mesmo cheiro de cigarro. Mas agora misturado ao meu perfume de vômito, de cachaça, de esgoto. (Silêncio. Só são sentidos os cheiros de esgoto). O mesmo bar. “Again”. O caminho inverso. A vida está ao contrário, Fabiano, Madson, Cláudio Zarco, Rafael Barros. Meu coração lastima.
Volto ao meu carro 1.6. Decido não ligar o som em inglês. Quero continuar com as dragas que chupam o meu sangue.
Chego em casa. Sinal de wi-fi. Meu whatsApp toca: “A Cia de Artes Fiasco agradece sua participação na peça A Ópera do Beradeiro. Curta nossa página e nos deixe um comentário https://m.facebook.com/ciadeartesfiasco/
São 23 h e 17 min. Não farei correções, pois o espetáculo continua no meu corpo. As minhas roupas estão no chão e as letras apontam: “ópera canto de merda, gosto de esgoto, perfume de vômito!”. O grotesco e o sublime em Porto Velho.
Teresinhas, espetáculo de dança do Meme Grupo de Pesquisa do Movimento, de Porto Alegre, acabou de ser apresentado no Teatro Palácio das Artes de Porto Velho, Rondônia.
Pode-se dizer que, em termos de pesquisa artística, pouco acontece qualitativamente. O tema do espetáculo é muito particular: a história da mãe do diretor e coreógrafo Paulo Guimarães. Daí já reside um problema: assuntos particulares não são universais. Ok, homenagem mais que merecida pra mãe dele. Mas, o que Teresinhas tem haver com Marias, com Joanas, com Dulcinéias, com Rosemeires, etc? Onde está o pulo do gato? Nascer, crescer, ter TPM, casar, ter filhos, morrer… Isto já é, pouco acrescenta pra emoção do espectador. Vemos isto a torto e direito nas novelas. Trata-se de clichê, lugar comum e estereótipo. E para complicar ainda mais a narrativa, que já é frágil, as bailarinas se insurgem contra o texto. Parecem vociferar, inaudivelmente, palavras sem sentido. Faz muita falta um preparador ou preparadora vocal para as meninas e senhoras que muito se esforçam na tentativa de dizer algo.
O espetáculo tem muitas barrigas: dá sono e causa desinteresse nos espectadores. Muitos sairam, mais cedo, do teatro. Ritmicamente distancia-se da dança. Interpretativamente enclausura o teatro num calabouço da Idade Média. E que audácia do crítico de arte Antônio Hodhfeldt, do Jornal do Comércio, comparar “Teresinhas” com “Maria, Maria” do Grupo Corpo.
Mas nem tudo está perdido no mar da falta de criatividade: a trilha sonora ao vivo é muito bonita. A voz de Tiago Rinaldi é um alento para os desejosos de beleza e sensibilidade. Ademais, a iluminação acende uma bonita luz no fim do túnel do espírito da Dona Teresinha.
Conclusão: trabalho para encher de vazio as garrafas de Boticário e para queimar os bicos dos pombos dos Correios.
Aos 5 de agosto de 2012, assisti ao espetáculo “Um Sonho de Cordel”, do Grupo de Teatro Macacos Bêbados – Teatro Universitário da UFMG. O mesmo ocorreu na Praça dos Fundadores (ou praça das cabeças), no Parque Municipal de Belo Horizonte.
O parque estava repleto de pessoas felizes, principalmente pais com suas crianças serelepes. E foi no intuito de atraí-las para a apresentação, que ocorreu um cortejo muito animado dos personagens pelos principais caminhos do verde e iluminado parque. Não senti o tempo passar, haja vista o clima gostoso que foi instaurado pela trupe. Mas acredito que a passeata durou cerca de 40 minutos. Em hipótese nenhuma isto é um desmérito, muito pelo contrário.
Ao voltarmos à Praça dos Fundadores, uma plateia maior se formou. Nos dispusemos em círculo (teatro de arena). Aliás, esse tipo de disposição dita uma estética específica para um espetáculo teatral, em que os artistas devem jogar com todo o público que o cerca. Nesse sentido o trabalho foi um pouco falho! Talvez isso se deva à pouca idade dos atores e atrizes (lembro os leitores que são alunos do 1º Ano do Curso Técnico em Teatro do TU). Uma outra questão relevante para essa pequena falha foi a colocação de uma câmera filmadora na parte da frente das “cabeças dos fundadores”. O grupo estava gravando o trabalho para inscrevê-lo no FETO (Festival Estudantil de Teatro de BH). Isso condicionou a interpretação à frontalidade, ou seja, à estética do palco italiano. Assim, tomando o cordel como uma das mais importantes formas de manifestação cultural do Brasil, e que se passa junto ao povo, e que é feita pelo povo para o povo, faz-se importante uma reflexão sobre essa disposição frontal da cena. Ela foi proposital?
Fernando Limoeiro, o criativo diretor do trabalho, possui um trabalho muito forte e interessante com diversos tipos de manifestações artísticas populares, principalmente com o Mamulengo do nordeste brasileiro. Isso contribuiu em muito para as cores, para a alegria, para o jeito descontraído e para o ritmo gostoso do espetáculo. Os cordéis que são narrados e interpretados pelo grupo teatral são uma delícia para os ouvidos. Mas, é necessário cuidado com as palavras difíceis e velozes dos cordéis. Em certos momentos, principalmente no início da apresentação, alguns atores (estou falando dos meninos) falaram muito baixo e de forma não inteligível. Atenção, garotada!
As músicas também são deliciosas e contagiantes. A partir de diversos instrumentos musicais, alguns deles improvisados (como a metade de uma garrafa pet), a trupe fazia nascer o ritmo, como num passe de mágica, à nossa frente. Isso é muito difícil, ainda mais para artistas jovens, por isso alguns atravessamentos que ocorreram no ritmo são mais que perdoados.
As maquiagens, os figurinos e os adereços são lindos! Ah, tem também um mamulengo incrível no espetáculo: seria fantástico se ele aparecesse um pouco mais, hein!
Bem, já falei o quanto o espetáculo foi contagiante. Contudo, vale a pena ressaltar a imensa alegria das crianças que o assistiram nessa linda manhã de domingo na capital mineira. Olhos brilhantes, mãozinhas inquietas, sorrisos sem dentes, perninhas que dançavam felizes e carinhas assombradas pelo medo (por causa do capeta e do boi bravo), constituíram o maior prêmio para os atores, atrizes e diretor do trabalho, além dos aplausos intermináveis da plateia. “E óia que vi um sinhó colocá 50 real num charpéu nu final da peça”.
Tenho certeza que “Um Sonho de Cordel” brilhará no FETO desse ano.
Inicialmente, estranhei tudo: cenário, interpretação, música, luz e até mesmo os figurinos. Tive a sensação de não estar assistindo ao famoso Grupo Galpão de Belo Horizonte, que nos traz muita cor, alegria, despojamento e irreverência. Achei as primeiras cenas muito formais, frias e muito distantes, guardadas as diferenças estilísticas, de outros trabalhos do grupo como, por exemplo, “Till, A Saga de Um Herói Torto”, “Um Molière Imaginário”, “Romeu e Julieta”, “Um Homem é Homem”, “O Inspetor Geral”, dentre outros. Contudo, com o passar do tempo, fui “abduzido” para dentro da encenação. O drama, aristotelicamente falando, foi pegando-me com os seus fios, seduzindo-me e enganando-me. Quando olhei para mim, me dei conta que estava completamente imerso na linda e triste história de Tchékov. O cenário trocou de roupa, o figurino ganhou nova luz, a luz adquiriu nova roupagem, as interpretações não estavam mais frias e distantes e os rostos e os olhos dos atores iluminaram-se como noite de lua cheia e de fogos de artifícios. Por fim, sinto dizer-lhe, com todo o respeito, Bárbara Heliodora: a senhora “pesou a mão” na crítica ao brilhante Tio Vânia do Grupo Galpão!