Espetáculo “As Mulheres do Aluá” repaginado e amadurecido

Personagens de Mulheres do Aluá – Fotos de Leonardo Valério

Há quase três anos, próximo à data da minha chegada em Porto Velho, ocasião em que assumi o cargo de professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, tive a possibilidade de assistir ao espetáculo “As Mulheres do Aluá”, do Grupo Imaginário.

Lembro-me que ele tinha estreado fazia pouco tempo. Talvez eu tenha assistido à terceira ou quarta apresentação ocorrida no Teatro 1 do Sesc Esplanada. Mas não tenho certeza disso!

Muito bem, no frescor da estreia, recordo-me da potência estética do espetáculo, principalmente na visualidade (cenário, figurino, iluminação, maquiagem e penteado) e na trilha sonora. O Teatro 1 do SESC me pareceu muitíssimo aconchegante e propício ao desenvolvimento do realismo a que se propôs a direção do espetáculo, competentemente realizada por Chicão Santos.

O elenco da época contava com o delicioso trabalho de Zaine Diniz, Agrael Pereira, Jaqueline Luquesi e Amanara Brandão. A primeira atriz, bastante experiente, é uma das fundadoras do grupo, ao lado do esposo Chicão Santos. Já Agrael era aluna do curso de Teatro da UNIR e Jaqueline postulava ser discente desse curso, o que, mais tarde, se concretizou. Amanara Brandão, a caçula do grupo, almejava entrar no Curso de Artes Visuais da federal. Recordo-me que eu, Adailtom Alves e Alexandre Falcão, também professores de teatro na Unir, confabulávamos sobre a importância de convencê-la a bandear-se para o teatro. E isso, realmente, aconteceu.

No frescor e adrenalina da estreia, “As Mulheres do Aluá” demonstrou-se vibrante e fundamental na discussão dos papeis das mulheres na construção da cidade de Porto Velho, nos primeiros anos do século passado.

Depois de quase três anos pude assistir novamente, no último fim de semana,  a esse agradável espetáculo. Mas agora com uma nova configuração espacial, teatro de arena, e com uma nova integrante, Flávia Diniz, que substituiu Jaqueline Luquesi que se licenciou do grupo para trazer à luz o pequeno Ulisses.

Entre uma e outra apresentação que assisti há ganhos e perdas. Mais ganhos, na verdade, devido a passagem do tempo e ao amadurecimento das atrizes. Como professor de duas integrantes e de uma ex-integrante do grupo, convém, didaticamente, analisá-las. Ainda mais em se tratando de alunas das disciplinas de Improvisação, Interpretação e Encenação Teatral. Nesta última, por exemplo, estamos operando com as categorias poética e estética. Grosso modo, a poética está ligada ao fazer, com os modos de produção de um espetáculo. Já a estética relaciona-se mais com a recepção (sensorial, intelectual, etc.), por parte do público, dos múltiplos elementos de uma encenação.

O primeiro ganho refere-se à experimentação do espetáculo em uma configuração  de arena. Ele tinha sido concebido, inicialmente, para palco italiano. Com a apresentação ocorrida neste último sábado ficou claro que “As Mulheres do Aluá” pode acontecer tanto em palco italiano, quanto em semi-arena e até mesmo em arena (desde que em espaço fechado). Nesse sentido, o espetáculo é dinâmico. Porém, é preciso atenção das atrizes e do diretor em relação às especificidades das diferentes configurações espaciais pois, com a aproximação do público da cena por meio da arena, como a ocorrida no Tapiri, que é um espaço intimista, a quarta parede deixa de existir e realça ainda mais os elementos materiais e visuais da encenação. E as fragilidades ficam mais evidentes, como algumas falhas interpretativas, do mesmo modo que as qualidades saltam aos olhos, como a potência cenográfica. Contudo, neste primeiro ganho também há perdas, principalmente na iluminação, que é um dos pontos fortes do trabalho apresentado no SESC. O Imaginário ainda não conseguiu resolver os problemas técnicos do Tapiri no que tange aos equipamentos de luz e isso prejudicou a última apresentação.

Outro ponto a ser observado no âmbito desse novo espaço, mais especificamente sobre a apresentação do sábado, diz respeito à energia das atrizes. Não importa o número de espectadores, mas o elenco não pode deixar a peteca cair. Constantin Stanislávski, notável encenador pedagogo russo, dizia aos seus alunos sobre a importância de sempre se manter viva a energia de um espetáculo. Para ele, os atores precisavam constantemente trabalhar suas energias e emoções para que o espetáculo fosse sempre novo, independentemente se se tratasse da milésima ou da primeira apresentação. Nesse ínterim, o fazer e o descobrir deve ser diário. E tais descobertas, o novo, deve alimentar o velho.

Ainda em se tratando do visual, bem como das ações físicas e vocais das atrizes, há perdas no espetáculo atual. Uma delas pode ser notada na composição exterior da personagem “bruxa”, interpretada por Amanara Brandão. O penteado original, da estreia, é mais bonito e compõe melhor com a realidade psicológica da personagem. Porém, a atriz cortou os cabelos.  Já nas ações físicas, as maiores questões encontram-se na personagem “cigana”, interpretada por Flávia Diniz. Uma substituição é sempre muito difícil porque, geralmente, quem cria a personagem primeiro dá a ela características conforme suas vivências e experiências. Jaqueline Luquesi, que interpretava inicialmente a “cigana”, conhece danças folclóricas e movimentos do flamenco, como os que foram utilizados na elaboração coreográfica dessa personagem. Ademais, fala o espanhol, pois nasceu em Guajará Mirim, cidade rondoniense localizada na fronteira entre Brasil e Bolívia. Importa observar que a “cigana” é uma espanhola que veio trabalhar em Porto Velho na época da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Logo, no contexto da encenação realista do grupo O Imaginário, a “cigana” fala o espanhol fluentemente e conhece bem a dança flamenca. Por mais que se trate de teatro, uma arte ficcional por natureza, a verossimilhança pode gerar no espectador  o processo de identificação com a personagem (ainda mais no Brasil, império das telenovelas realistas!). Desta feita, um espanhol não tão bem articulado pode gerar um ruído, assim como a não execução precisa de determinados passos do flamenco. A sugestão que dou para Flávia Diniz, que carinhosamente chamo de Flavinha, atriz jovem com um futuro brilhante no teatro e no circo, é que busque a sua própria “cigana” a partir das experiências pelas quais passou.

No tocante às ações vocais, em determinadas passagens do espetáculo as falas ficam monótonas, no sentido de que apresentam continuamente o mesmo tom e que se repetem invariavelmente. Por isso, é preciso encontrar novas modulações, ritmos e coloridos vocais para as personagens a fim de valorizar ainda mais o excelente texto de Euler Lopes Teles. Por fim,  as cantigas executadas ao vivo são muito bonitas e corroboram bastante para a paisagem sonora do espetáculo.

Para concluir, faz-se mister notar que o trabalho de criticar um espetáculo de teatro, assim como os artistas nele envolvidos, é muito delicado e difícil, ainda mais quando o crítico é tão próximo (amigo e professor) dos integrantes do grupo. Venho trabalhando com meus alunos, e em mim mesmo,  a importância da crítica na construção do aprendizado da linguagem teatral, bem como enquanto ferramenta de reflexão estética sobre o espetáculo ou grupo ao qual ela se direciona. Desse modo, uma crítica configura-se como um olhar recortado ou ampliado, dos muitos olhares possíveis, de um dado fenômeno artístico realizado por determinado profissional. E ela varia de olho para olho. E como dizia o professor de Metodologia da Pesquisa Milton de Andrade, do Programa de Pós-graduação em Teatro da UDESC, a respeito da escrita e da pesquisa acadêmica, é preciso que se troquem os óculos constantemente. Isso serve bem para a crítica teatral!

 

 

 

 

 

Cidade Grande – João Ninguém

Cidade Grande, João Ninguém - Foto de Raíssa Dourado
Cidade Grande, João Ninguém – Foto de Raíssa Dourado

Sabe-se da dificuldade de se montar um espetáculo teatral. Ainda mais complexo é criar um trabalho com muitos artistas em cena. E é ainda mais difícil quando tais artistas são estudantes. Foi assim, com muitos percalços, que os professores do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia Adailtom Alves e Alexandre Falcão encenaram “Cidade Grande – João Ninguém”, trabalho de conclusão do belíssimo curso de extensão universitária “Processos em Criação em Grupo”, neste ano de 2016.

Uma turma grande, que se iniciou com 25 alunos, instalada em uma sala pequena na UNIR Centro, em Porto Velho. Um elenco volumoso ao longo do processo de criação, que durou cerca de 7 meses, que se encerrou com 18 atores-aprendizes: discentes de graduação em teatro, estudantes diversos da UNIR, comunidade em geral, adultos e adolescentes. Heterogeneidade! Multiplicidade! Um coro de muitas vozes, pensamentos e pontos de vista!  Está instalada a diversidade, inclusive de gênero, sexualidade e religiosidade.

Dadas as diferenças, iniciou-se, após alguns meses de atividades teatrais, como jogos e exercícios cênicos de improvisação, a construção de um espetáculo a partir do complexo texto teatral “Cala a boca já morreu”, de Luís Alberto de Abreu, um dos principais dramaturgos brasileiros. Pretenção deliciosa e corajosa! Uma mistura estético-poética entre o teatro épico de Brecht e o teatro de rua, ocorrida no interior e no exterior do belo edifício da Reitoria da Unir, no centro da capital rondoniense, os professores anteriormente mencionados foram dando a tônica do espetáculo. A despeito da pouca experiência com direção desses artistas-professores, “Cidade Grande – João Ninguém” foi se desenhando delicadamente nas palavras, escorregando nas escadas, equilibrando-se nos meandros da intuição e da competência artística. O corpo de elenco, também inexperiente, com exceção do aluno-ator Almício Fernandes, colaborou, sobremaneira, para a criação dessa difícil montagem.

Enfim, a estreia e uma pequena temporada, que com um grande e diverso elenco pode ser encarada como gigante, reuniu a multiplicidade e o esforço de muitos, como do competente cenógrafo Elcias Villar. O que se vê e se ouve, ao longo de pouco mais de 60 minutos, é muito agradável e surpreendente. Também é assustador ver, já de entrada, a força com que alunas iniciantes interpretam prostitutas. Aprendizes da dolorosa e prazerosa arte teatral levarem ao público de olhares curiosos os meandros psicológicos de personagens que muito se aproximam aos de Macunaíma, de Mário de Andrade. Ou até mesmo aos de Cobra Norato, de Raul Bopp, com as andanças de Honorato e do seu companheiro tatu-de-bunda-seca em busca da branca, europeia e civilizada de olhos azuis – em contraposição aos “atrasados” brasileiros, representados pelos “bárbaros” amazônicos – Filha da Rainha Luzia. Assim é “João Ninguém”, um “Jeca-Tatu” contemporâneo, que chega à cidade grande em busca de trabalho e de melhores condições de subsistência. Mas, pobre  João, as coisas não funcionam bem assim no explorador mundo capitalista! Por meio de diversos percalços e reviravoltas surpreendentes, os nós da trama espetacular vão se desatando, e/ou se complexificando, à medida que o público se desloca pelo misterioso prédio da reitoria da Unir. E quão agradável é perceber o esforço e o talento dos atores, atrizes e músicos no desenrolar da narrativa! Surpresas muito gratas ao ver novos talentos surgindo e a consolidação do aprendizado das atrizes Danny Moschini e Sheila de Souza, além do já mencionado Almício Fernandes, que interpreta o árduo Atílio, o parceiro de aventuras de “João Ninguém”. O curso de teatro da Unir está de braços e corações abertos a todos vocês!

Para concluir o espetáculo, já no interior da Sala do Piano, um coro lindíssimo de 18 vozes acompanhado ao vivo em piano. O meu espírito, e olha que sou ateu, foi arrebatado. Meus poros se dilataram, a minha voz embargou, meus olhos se encheram de lágrimas e meu coração palpitou de alegria ao ouvir o texto final de Abreu musicado tão belamente.

Parabéns aos alunos e muito obrigado aos professores por encerrarem com tamanha justeza a ação de extensão que integra o Programa IntegrArte do DArtes/Unir.

Hibridismo, mestiçagem e polifonia em Bê-a-bá Brasil e em As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras − Grupo Oficcina Multimédia

Artigo publicado na Revista Valise, v. 3, n. 6 (2013), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. http://seer.ufrgs.br/index.php/RevistaValise/article/view/41905

RESUMO: No presente artigo, inicialmente, apresento o compositor Rufo Herrera, a encenadora Ione de Medeiros e o Grupo Oficcina Multimédia (GOM), de Belo Horizonte. Em seguida, faço um recorte de dois, dos mais de vinte espetáculos encenados por essa diretora, para que eu possa analisar os conceitos de hibridismo, mestiçagem e polifonia, assim como os seus respectivos desdobramentos, a partir das montagens de Bê-a-bá Brasil e As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras.

Palavras-chave: teatro mineiro contemporâneo, multiplicidade de linguagens artísticas, multimeios, integração e intertextualidade.

 

ABSTRACT: In this paper, initially I present the composer Rufo Herrera, the theater director Ione de Medeiros and the “Grupo Oficcina Multimédia” (GOM), of Belo Horizonte city. Then, among the more than twenty staged shows by this director I do a selection of two, so that I can analyze the concepts of hybridism miscegenation and polyphony, and its own developments, from the stagings “Bê-a-bá Brasil” and “As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras”.

Keywords: contemporary theater of Minas Gerais state, multiplicity of artistic languages, multimedia, integration and intertextuality.

Rufo Herrera, compositor e especialista em bandoneón, nasceu em Córdoba, Argentina, em 1933. Desde 1963 está radicado no Brasil. Em 1969, convidado por um grupo de compositores da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, transferiu-se para Salvador e integrou o movimento emergente da música contemporânea brasileira. Em 1976, recebeu um convite para participar do VIII Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizado em Ouro Preto, no qual ministrou uma oficina de arte integrada, desenvolvendo, assim, um trabalho processual com diversas áreas de criação artística. Já no ano seguinte ministrou uma oficina semelhante, conhecendo, na ocasião, Ione de Medeiros, atual diretora do Grupo Oficcina Multimédia (G.O.M.). Do encontro entre os dois jovens artistas surgiu o G.O.M., que foi sediado na Fundação de Educação Artística (FEA) de Belo Horizonte. Desde então, Rufo vive, ao lado de Ione, na capital mineira.

Ione de Medeiros nasceu em 18 de junho de 1942, em Juiz de Fora. Nessa cidade formou-se em Francês, em Letras e em Piano. Em 1977 participou da criação do  Oficcina Multimédia. Em 1983, assumiu a direção definitiva do G.O.M. dando continuidade à proposta multimeios iniciada por Rufo Herrera, com o objetivo de fundir no palco múltiplas formas de linguagens artísticas, como o teatro, a música, as artes visuais, as artes plásticas, o cinema, a dança, etc.

O espetáculo Sinfonia em Ré-fazer, de 1978, inaugurou a linguagem multimeios do grupo. Desde que Ione assumiu a direção do G.O.M, o grupo mantém o processo de elaboração coletiva de seus espetáculos. Logo, os diversos trabalhos montados desde então, gradualmente, foram configurando o atual perfil do Multimédia que hoje se define, dentre outras características, pela consolidação da pesquisa multidisciplinar e pela elaboração não hierárquica entre os diversos elementos da linguagem.

Sobre a linguagem cênica do Multimédia, Ione diz o seguinte: “o que nos define como um grupo peculiar é o fato de que entramos no teatro pela porta da música” (Medeiros, 2007, p. 15). Dessa forma, a encenadora transpõe à encenação teatral o caráter abstrato da linguagem musical. Com essa visão de abstração, as referências para as encenações multimeios do grupo, segundo essa encenadora, seriam:

(…) as montagens não têm a função prioritária de contar uma história ou seguir um discurso linear; (…); e os atores não estão unicamente sob o jugo de um personagem, mas seguem um roteiro concebido como uma partitura polifônica em que as muitas vozes correspondem às diversas possibilidades sonoras, visuais e plásticas que integram a dramaturgia do espetáculo (Medeiros, 2007, p. 15).

Para concluir, observa-se, desde a fundação do Oficcina Multimédia, a preocupação dos seus criadores com a busca pela polifonia artística, por meio do hibridismo de linguagens e pelo dialogismo interdisciplinar entre artistas, cena, música, artes visuais, artes plásticas, dança, literatura, e assim por diante.

Bê-a-bá Brasil: memória, sonho e fantasia – Em busca de uma cultura nacional híbrida e mestiça

Os termos misturas, mesclas raciais e culturais, assim como as categorias hibridismo cultural e mestiçagem étnica aparecerão muitas vezes no decorrer deste item. Por isso, inicio com os conceitos mestiçagem e hibridismo, fazendo as suas devidas diferenciações, pois os termos são comumente confundidos e trazidos como sinônimos. Logo depois retomarei a análise do espetáculo Bê-a-bá Brasil. Começo pela mestiçagem.

Gruzinski (2001, p. 60) diz que essa categoria é ampla, de difícil apreensão, “complexa, imprecisa, mutável, flutuante, sempre em movimento, (…) como uma nuvem. [Esse] modelo da nuvem supõe que toda a realidade comporta algo de irreconhecível e sempre contém uma dose de incerteza e de aleatório”. E a presença do aleatório e da incerteza, segundo o autor, confere às mestiçagens seu caráter impalpável e paralisa nossos esforços de compreensão. Assim, complexidade, imprevisibilidade e aleatoriedade parecem, pois, inerentes às misturas e às mestiçagens.

O sentido da palavra mestiçagem vem do passado, da Idade Média ao presente. Entretanto, as mestiçagens aparecem na América no século XVI, na junção de distintas temporalidades, as do Ocidente cristão e dos mundos ameríndios. Assim, elas as colocam brutalmente em contato e as imbricam umas nas outras. Desta feita, o enfoque dado às mestiçagens, por Gruzinski (2001), é a Europa do Renascimento e a América da Conquista, mais especificamente o México espanhol.

Sobre os termos mestiçagem e hibridação, resume Gruzinski (2001, p. 62):

Empregaremos a palavra “mestiçagem” para designar as misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos, imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes — América, Europa, África e Ásia. Quanto ao termo “hibridação”, aplicaremos às misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de um mesmo conjunto histórico — a Europa cristã, a Mesoamérica — e entre tradições que, muitas vezes, coexistem há séculos.

Misturar, interpenetrar, fundir, juntar, justapor, sobrepor, cruzar, mesclar, amalgamar e inventar são algumas das palavras que se aplicam à mestiçagem. Por fim, ainda conforme Gruzinski (2001), nas Américas do século XVI, fragmentos de culturas indo-afro-europeias se mesclaram, se adaptaram umas às outras, se improvisaram, se deduziram, se inventaram, se aprenderam. Por isso, não é possível pensar em purezas culturais, mas sim em culturas mestiças e híbridas.

Já para Canclini (2008, p. XXVII), a palavra mestiçagem pode designar as fusões étnicas de um indivíduo ou de uma cultura:

A mistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de ingleses, com indígenas americanos, à qual se acrescentaram escravos trasladados da África, tornou a mestiçagem um processo fundacional nas sociedades do chamado Novo Mundo. […] Mas a importante história de fusões entre uns e outros requer utilizar a noção de mestiçagem tanto no sentido biológico — produção de fenótipos a partir de cruzamentos genéticos — como cultural: mistura de hábitos, crenças e formas de pensamento europeus com os originários das sociedades americanas.

Canclini (2008) também se refere às palavras hibridação e híbrido. Para ele, o último termo, recorrente na biologia, de sentido de “mistura genética”, pode ser aplicado à cultura no sentido de “misturas culturais”, ou seja, uma cultura que se origina da mescla de várias outras culturas. Já por hibridação ele entende “os processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos ou práticas” (Canclini, 2008, p. XIX).

Tanto Gruzinski quanto Canclini referem-se às mestiçagens como misturas ocorridas no Novo Mundo entre diferentes indivíduos (etnias) e entre diferentes culturas. Contudo, Gruzinski nos pede cuidado e atenção ao utilizarmos as palavras mestiçagem, hibridação e mistura, principalmente em caso de pressuposição de misturas e mestiçagem cultural, mestiçagem biológica e mestiçagem de crenças e ritos (sincretismo religioso). Isso porque nem todos os aspectos culturais são miscíveis. Ademais, Gruzinski (2001, p.43) diz ainda que as relações entre mestiçagem biológica e mestiçagem cultural são pouco claras: “[…] Ao pormos o assunto nesses termos, eliminamos a questão das relações entre o biológico e o cultural com o social e o político”.

Em síntese, mesmo que os termos mestiçagem e hibridismo dão mostras de serem sinônimos, não devemos tratá-los assim. Parece-nos que, antes de ser cultural, a mestiçagem é primeiro biológica. Isso quer dizer que o cruzamento genético ocorreria antes da mistura cultural. Assim, o termo mestiçagem, para Canclini (2008), é melhor utilizado quando aplicado às misturas genéticas, no sentido de mestiçagens étnicas (que, conceitualmente, não deixam de ser culturais). Por conseguinte, ainda conforme esse autor, o termo hibridismo seria mais apropriado ao choque (misturas) entre diferentes culturas, que produziria um novo elemento cultural: híbrido. Finalmente, o hibridismo é útil ainda para tratarmos as misturas de linguagens artísticas, como será feito a seguir.

Dados esses conceitos, entremos agora no espetáculo Bê-a-bá Brasil: Memória, sonho e fantasia, dirigido por Ione de Medeiros, em 2007, e estreado no mesmo ano no Galpão Cine Horto, de Belo Horizonte. As artes plásticas, as visuais e a literatura foram referências fundamentais para a montagem, sendo escolhida como suporte inicial do trabalho a obra Abaporu Homem que Come (1928), pintura de Tarsila do Amaral; e, como referências conceituais posteriores, obras da literatura de Oswald de Andrade, principalmente do Manifesto Antropofágico. Segundo Medeiros (2007, p. 201), o objetivo do espetáculo era, a partir dessas referências, “esboçar cenicamente o perfil de um Brasil moderno, cheio de contornos e mesclas raciais e culturais, compondo um mosaico social complexo, sempre em movimento”. Com esse espetáculo, o objetivo do grupo era revisitar valores relacionados à contínua formação da identidade cultural do Brasil, discorrendo livremente sobre o tempo, desde o século XVI ao XXI. Para tanto, levantou-se uma pergunta: existe um Brasil brasileiro?

Em síntese, o roteiro de Bê-a-bá Brasil, que foi elaborado sobre um rap musical, é não linear e se dá por meio de saltos temporais e espaciais. Além disso, é repleto de anacronismos e de citações, possui referências constantes à globalização, ao hibridismo cultural, à mestiçagem étnica, à modernidade e, também, à pós-modernidade. Ademais, é inspirado nos quatro elementos da natureza e tem como ponto inicial as naus portuguesas rumando a um novo continente, com a globalização iniciada no século XVI. Foram reunidos, num mesmo espaço-tempo, o passado, o presente e o futuro, em que o grupo saltou das caravelas de antigos navegadores para o planeta Terra, representado por um balão gigantesco, simbolizando o surgimento de uma nova configuração na identidade cultural de todos os povos. Como num anacronismo para o futuro, os navios são carregados de ícones da modernidade, como a televisão, e da pós-modernidade, como os computadores, que foram hibridizados a elementos toscos e rudimentares, e também às cruzes, que suscitam a religiosidade dominante, o cristianismo católico, durante a colonização do nosso país (fig. 1).

Ao elemento terra corresponde à chegada dos portugueses no Brasil, com imagens em vídeo projetadas sobre a riqueza cultural do país e fundidas com a representação cênica do quadro Abaporu. A presença de um índio mestiço na cena, vestido com uma camisa da seleção brasileira de futebol (fig. 2), satiriza, atemporalmente, o embate entre os nativos e os colonizadores. Aqui, ocorre um hibridismo entre o sagrado e o profano, que está presente também no elemento fogo, representado por um fogareiro a gás no qual ocorre um ritual antropofágico ao contrário, em que o branco devora o índio. O elemento ar, por sua vez, é uma homenagem a Santos Dumont, com o seu anseio de céu e de modernidade tecnológica, e sustenta a inserção de um globo terrestre na cena, símbolo de um mundo sem fronteiras. Além disso, placas de metal são manipuladas como um grande pássaro. Chamadas por Ione de fênix moderna, as placas estariam gerando um ovo colossal, originando um mundo virtual que aponta novos caminhos na construção da identidade e na comunicação entre os povos: inicialmente, entre europeus e indígenas; mais tarde, entre estes e os povos africanos.

Cenicamente, observamos que o espetáculo propõe um discurso dialógico não verbal, valendo-se, portanto, de imagens, sons e movimentos; retratando o Brasil em uma linguagem primordialmente sonora e imagética. Quanto aos elementos do espetáculo, nota-se um cenário móvel – constituído por uma série de cubos superpostos, passarelas, escadas, etc. −, aliado a tecidos e bandeiras que servem também de telas de projeção; um palco saturado de objetos de cena, como carrinhos de supermercado e monitor de computador; e uma trilha repleta de mixagens de paisagens auditivas e de sonoridades extraídas de materiais não convencionais − como cadeiras e portas − que enaltecem o caráter alegórico da encenação. Além do mais, o figurino alude aos parangolés de Hélio Oiticica, importante artista performático da vanguarda brasileira.

Os vídeos, elementos fundamentais para essa encenação, já que criam paralelos e simultaneidades entre o passado e o presente, entre o real e o ficcional, possuem motivos que, na perspectiva de Ione, valorizam o Brasil, a partir de um resgate de imagens belas da nossa natureza, além de matrizes da nossa cultura.

A trilha sonora dialoga, cenicamente, com a coreografia, com os cantos e as falas dos atores. É importante notar que são pouquíssimos os textos das figuras cênicas (como o grito “Brasil!”), e, por serem dados em formas corais, e às vezes tribais, dificultam bastante a compreensão. Em meio a uma profusão de sonoridades, e de uma multiplicidade de vozes e de ruídos, como sons de tribos indígenas, torções de mastros e sirenes de navios, notamos também toques de berimbau, de agogô e de atabaque, de sambas instrumentais, a canção de abertura do I Ato da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, comumente ouvida no início do programa de rádio A Voz do Brasil, de um “rap indígena”, dentre outras cantigas.

Bê-a-bá Brasil
Bê-a-bá Brasil: Hibridismo entre a modernidade e a pós-modernidade .
Índio mestiço da “Santa Ceia” do Multimédia
Índio mestiço da “Santa Ceia” do Multimédia

Figs 1 e 2. Bê-a-bá Brasil: Hibridismo entre a modernidade e a pós-modernidade e o índio mestiço da “Santa Ceia” do Multimédia. Fotos: sem referências a autoria. Fonte: Acervo do grupo.

Por fim, a relação complexa e constante entre música, artes visuais, artes plásticas, literatura, expressão corporal, uso não cotidiano da voz, iluminação, cenário, figurinos e, enfim, da construção criativa de figuras cênicas e de monstros; assim como das múltiplas referências culturais, de pensamentos e de crenças religiosas; produz, desde o início dos processos de criação de Bê-a-Bá Brasil, um entrelaçamento de linguagens e vozes artísticas que gera um espetáculo híbrido e polifônico. De tanta mistura, como feita numa máquina mestiça de sons, movimentos e imagens, torna-se complexo distinguir a homogeneidade das distintas camadas heterogêneas desse espetáculo.

 

Multiplicidade de vozes e discursos em As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras

 

O espetáculo Bê-a-bá Brasil também poderia ser analisado à luz do conceito de polifonia, assim como As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras pode ser observado sob a ótica do hibridismo. Isso porque, acima de qualquer fato, a forte característica multimídia do G.O.M., e a ampla e distinta formação artística dos membros do grupo, possibilita ambas as análises. Então, essa divisão do artigo em duas partes é, antes de tudo, metodológica. Discutir esses conceitos a partir dos dois espetáculos extrapolaria as dimensões deste artigo. Passemos, assim, à polifonia.

Ernani Maletta, professor de teatro da UFMG, em depoimento sobre o G.O.M, pondera sobre a polifonia do grupo:

Qualquer processo criativo relacionado ao Teatro – arte polifônica por natureza – deve contar, desde o início, com a presença de todos os discursos provenientes das múltiplas dimensões artísticas que o fenômeno teatral compreende e que se referem à Música, às Artes Plásticas, às Artes Corporais e à Literatura. Nesse sentido, o [G.O.M.], em toda a sua trajetória, é um dos exemplos mais evidentes de formação e criação artística fundamentada no conceito de atuação polifônica (Maletta, apud Medeiros, 2007, p. 202).

Dada essa colocação, coloco duas perguntas: o que é, realmente, a polifonia? E de que maneira ela pode ser notada em As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras?

Vejamos o que Sadie (2001, p. 74) diz sobre o termo em seu dicionário de música:

(…) música em mais de uma parte, e o estilo em que todas ou algumas das partes musicais movem-se, em certa medida, de forma independente. Polyphonos (‘muitas vozes’) e Polyphonia ocorrem na Grécia antiga, sem qualquer conotação de técnica musical. (…) formas do adjetivo começaram a ser usadas em línguas modernas, ambas designando fenômenos não musicais, como cantos de aves, linguagem humana e ecos múltiplos; e os fenômenos musicais, como faixa instrumental e variedades tonais, bem como as músicas variadas que podem ser reproduzidas em um dispositivo musical automático.[1] (Tradução minha).

Dessa definição destaco: “todas ou algumas partes podem se mover de forma independente”. Isso parece nos dizer que, mesmo que as vozes soem de maneiras simultâneas, elas resguardam as suas individualidades e especificidades. Logo, podem-se identificar, num coro de vozes aparentemente homogêneo, as partes que a constituem. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

O conceito de polifonia, surgido na música, foi aplicado, mais tarde, à literatura por Mikhail Bakhtin, principalmente em se tratando dos romances de Dostoiévski.

Para Bakhtin (2002, p. 04),

Dostoiévski não cria escravos mudos, mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele. A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve em seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. (Itálicos do autor).

 

 Por vozes plenivalentes entendem-se aquelas que são

plenas de valor, que mantêm com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo” [E por equipolentes, as vozes e consciências] que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu SER enquanto vozes e consciências autônomas (Bezerra apud Bakhtin, 2002, p. 04).

As vozes múltiplas as quais Bakhtin se refere estão em oposição à voz única, monológica, do autor onisciente e onipresente. Assim, o que caracterizaria a polifonia seria, então, a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico.

Já em relação à polifonia teatral, trago, mais uma vez, a contribuição de Maletta (2005), que diz que o teatro é, em si, uma arte expressa por múltiplas linguagens, cujo discurso é constituído por diversos outros discursos delas provenientes. Ou seja, este seria, sem dúvida, um discurso polifônico.

Por último, esse autor traz para sua reflexão Barthes (1964, p. 50), que se refere ao teatro como uma “verdadeira polifonia informacional”. Ele aponta que o teatro seria uma máquina cibernética emissora de diversas mensagens simultâneas, algumas das quais permanecem – como, por exemplo, o cenário – enquanto outras mudam constantemente – a palavra, as imagens, os gestos.

Muito bem, dadas essas definições e características da polifonia, retomaremos a segunda questão: “de que maneira ela pode ser notada em As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras?”. Analisaremos essa pergunta juntamente com alguns dados desse espetáculo, estreado, em 2010, no Galpão Cine Horto de Belo Horizonte, sob direção de Ione de Medeiros.

Em suma, trata-se de um trabalho imagético, de criação coletiva − em que agem múltiplas vozes e discursos −, livremente inspirado na obra O Jardim das Cerejeiras (1904), de Anton Tchekhov, cujo tema gira em torno dos conflitos sociais que marcaram a Rússia do final do século XIX, confrontados com os problemas recentes de muitas metrópoles mundiais, principalmente brasileiras: violência, pobreza, poluição, etc. A partir do dialogismo entre elementos plásticos, visuais e sonoros, e entre atores e espectadores, o espetáculo aborda também, de maneira subliminar, momentos históricos desencadeados a partir desses conflitos, como a revolução russa de 1917.

O eixo central da encenação multimediana é um labirinto transparente (fig. 3) que simbolicamente representa um espaço de difícil saída e abriga o Minotauro, monstro híbrido e devorador que se alimenta de suas vítimas. As diversas paredes feitas de telas finas, além de servirem à projeção de imagens e vídeos, permitem a visibilidade das cenas externas e internas. Os atores são vistos à distância, esfumaçados, como que cobertos por uma neblina. Ademais, esse labirinto/cenário desloca, cenicamente, a relação dos atores com a plateia, e em relação a ela mesma, pois, para acompanhar as evoluções cênicas, as ações das figuras dramáticas e algumas das projeções, os espectadores precisam caminhar pelos corredores. Assim, assumem vozes ativas diante do que é mostrado, podendo selecionar o que mais lhes convém, conforme os seus múltiplos pontos de vista, inclusive participando, de maneira performativa, da composição estética da montagem, ao assistirem e serem assistidos, tanto pelos outros espectadores quanto pelos atores e técnicos do espetáculo. Dentro do espaço não há cadeiras ou assentos, por isso, os espectadores podem ficar de pé, se sentarem no chão ou até mesmo se deitarem (fig. 4), visto que há uma cena que ocorre no alto do cenário, em passarelas, espécies de hanamichi − “Caminho das Flores” − do teatro Kabuki japonês, dispostas sobre o labirinto, que trazem Gueixas que flutuam sobre eles.

Antes de entrarem no labirinto e se depararem com os Minotauros, figuras síntese da morte que se alastra por todos os lados, nós, o público, passamos por uma espécie de sala ritual, em que devemos tirar os sapatos. Aliás, a morte nos é colocada a todo momento pela encenação: morrem as cerejeiras em flor; morrem, violentamente, adultos e crianças; morrem a natureza e as cidades.

Labirinto do Minotauro
Plateia no interior do labirinto
Plateia no interior do labirinto

Figs 3 e 4. Labirinto do Minotauro com hanamichi ao centro (parte alta) e plateia no interior do labirinto. Fotos de Guto Muniz e Marco Aurélio Prates, respectivamente. Fonte: Acervo do grupo.

O espetáculo não possui nenhum texto pronunciado pelos atores. Contudo, além das músicas, ouvem-se gritos, choros, implosões, passos e ruídos provocados pelo atrito entre diferentes objetos cênicos manipulados pelos atores, como facões. Em seu roteiro, que é dividido em três cenas, somente em momentos muito específicos, como a entrada de um boneco que representa Liubov, é notada a presença da voz tchekhoviana.

A primeira cena é intitulada “Uma viagem no tempo”: é o momento da entrada ritualística dos espectadores no labirinto e do corte das cerejeiras pelos Minotauros.  Lá dentro, perdidos ou conscientes dos seus lugares, os espectadores se tornam “performatives voices” (vozes performativas), espécies de “Teseus” que tecem as difíceis linhas diretivas da encenação. Confrontados com um cortejo fúnebre de Carpideiras, podem emprestar suas vozes para a composição de um grande coro de lamentações, que, por sua vez, é colocado em um diálogo empírico com o Antigo Testamento.

Os corpos e vozes dos atores duplicam e espelham, sistematicamente, as figuras cênicas dos Minotauros e das Carpideiras. Em todas as direções do labirinto, que é ampliado com o espelhamento, os espectadores, perdidos, são colocados diante de uma profusão de discursos − imagens, formas, cores e sons − que ocorrem de maneiras simultâneas, superpõem-se e não se anulam. Isso exige deles disposição para acompanhar o espetáculo, pois, uma carpideira que é vista aqui, também é vista acolá; um mesmo vídeo que é projetado de um lado do labirinto, é percebido na direção contrária; e, por fim, um mesmo som que o público ouve avançando de trás de suas costas é escutado desde a sua fronte.

Já a cena II é “O enigma do labirinto”. Como encontrar a saída em meio à multiplicidade de caminhos? Aqui, o público se depara com Liubov, bonecos brancos de manipulação direta (fig. 5), manipulados por dois atores vestidos de preto, mas que não escondem suas mãos e rostos, escancarando a teatralidade do jogo duplo do contato entre animadores e objeto animado. Liubov, personagem aristocrata de O Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov, mesmo utilizando o Fio de Ariadne, perde-se em um labirinto de emoções e se vê obrigada a lutar com o Minotauro. Em um duelo de facões, muito próximo ao Maculelê brasileiro, Liubov/Ariadne derruba o mito e muda o curso de sua própria história. Mais uma vez, os espectadores são colocados diante de uma simultaneidade e duplicidade imagético-visual, dado que toda a Cena II ocorre em dois pontos distintos do labirinto.

Liubov e o Fio de Ariadne
Gueixas japonesas
Gueixas japonesas

Figs. 5 e 6. Liubov e o Fio de Ariadne e Gueixas japonesas. Fotos de Marco Aurélio Prates. Fonte: Acervo do grupo.

Por último, a Cena III: “No jardim das cerejeiras”. A transição entre a segunda e a terceira cena se dá com a passagem por um trecho central do labirinto que se encontrava interditado. Por meio de um portal de tecido, espaço liminar, a plateia adentra num mundo ainda desconhecido, adquirindo novas experiências sensoriais. Conduzidos por ruídos quase ensurdecedores de sinos de trens, os espectadores contemplarão um pé de cerejeiras brancas em flor. Descalços, pisoteando plásticos bolhas, como se amassassem uvas, mais uma vez participam da encenação, produzindo pequenos ruídos que remetem à chuva que rega o pequeno cerejal de Liubov. Além disso, paralelamente, são bombardeados por vídeos com cenas de implosões de prédios, que aludem à falência das metrópoles e reportam, poeticamente, aos estrondos de uma tempestade. Para fechar essa última cena, ocorre a entrada de Gueixas japonesas (fig. 6), que, segundo Ione, no programa do espetáculo, é um apelo estético contra a barbárie do mundo materialista. Ao som de uma interessante colagem musical, com temas orientais e do leste europeu, as Gueixas mascaradas, que surgem de todos os lados, desfilam lentamente pelos corredores do labirinto, rumando ao hanamichi localizado no alto do cenário.

 

Considerações finais

 

No Breve Histórico apresentado inicialmente observei a formação artística dos fundadores do G.O.M., cujas trajetórias constituem vozes fundamentais na construção da linguagem do grupo, assim como dos seus espetáculos. Somadas ao coro de discursos constituidores da cena multimediana e à linguagem multimídia com a qual o grupo trabalha, o Grupo Oficcina Multimédia constitui-se, como apontado por Maletta, como um grupo polifônico. Logo, conclui-se, a partir das questões apresentadas, que As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras também se caracteriza como um espetáculo polifônico. E essa característica pode ser estendida ao Bê-a-bá Brasil, da mesma forma que o hibridismo pode ser encontrado em ambos os trabalhos.

É importante observar que apesar de Maletta dizer que o teatro é uma arte polifônica por natureza, a polifonia só ocorre no teatro se se contar, desde o princípio dos processos criativos, com a presença de todos os discursos provenientes das múltiplas dimensões artísticas do fenômeno teatral. Isso quer dizer que nem todo espetáculo teatral é polifônico, pois algumas estéticas teatrais não contemplam em seus processos os diálogos necessários para se criar a polifonia.

Além do mais, faz-se mister notar a necessidade de separar, para melhor compreensão, as camadas e estruturas dos variados elementos que constituem a polifonia e o hibridismo de um espetáculo. Assim, um discurso não deve omitir o outro, uma voz não pode silenciar a outra e uma linguagem artística não se obriga a suplantar a seguinte. Além disso, a proposta polifônica do Multimédia, que claramente é notada nas duas encenações neste artigo analisadas, permite que as monofonias dialoguem, resguardem as suas individualidades e especificidades e que sejam colocadas lado a lado, constituindo vozes plenivalentes.

Quanto ao hibridismo e à mestiçagem em Bê-a-bá Brasil, percebemos o interesse de Ione de Medeiros em representar as culturas nacionais a partir de referências às nossas artes visuais (Abaporu e Parangolé), nossa literatura (Oswald de Andrade), nossa música (samba, ópera e um suposto rap indígena), nossos ritmos, etc., que se encontram em diálogo constante com formas artísticas internacionais, como com a pintura A Última Ceia, de Leonardo da Vinci − aludida por meio de uma imagem poética mestiça, na qual é apresentado um índio vestido com uma camisa da seleção brasileira de futebol. Esse espetáculo celebra também as múltiplas trocas de hábitos, crenças e imaginários ocorridas entre diferentes povos (como os europeus, indígenas e africanos) que se encontraram em solo brasileiro, conformando um país com um tipo de miscigenação étnico-cultural bastante peculiar.

Por último, é relevante considerar o lugar dos espectadores nos espetáculos do Multimédia. Por não possuir uma linguagem teatral pautada no drama, o público precisa sair de sua zona de conforto, assumindo vozes ativas diante do que é mostrado e, em alguns casos, como na obra inspirada em O Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov, participar e colaborar na criação da estética teatral.

 

Referências bibliográficas

 

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. 3. ed.  RJ: Forense Universitária, 2002.

BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, l964.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. 4. ed. 4. reimpr. SP: EDUSP, 2008.

GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. Trad. Rosa Freire d’Aguiar – SP: Companhia das Letras, 2001.

MALETTA, Ernani de Castro. A Formação do Ator para uma Atuação Polifônica: princípios e práticas. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. BH: Faculdade de Educação da UFMG, 2005.

MEDEIROS, Ione de. Grupo Oficcina Multimédia: 30 anos de integração das artes no teatro. BH: I.T. Medeiros, 2007.

SADIE, Stanley. The new Grove Dictionary of Music and Musicians. London: Macmillan Publishers Limited, 2001.

DVDs, Programas e Vídeos

 

AS ÚLTIMAS Flores do Jardim das Cerejeiras (DVD e Programa). Pesquisa de Campo do autor. BH: Grupo Oficcina Multimédia, 30 e 31 de maio de 2013.

BÊ-A-BÁ Brasil (Programa e Vídeo). Pesquisa de Campo do autor. BH: Grupo Oficcina Multimédia, 30 e 31 de maio de 2013.

Sites consultados:

 

http://oficcinamultimedia.com.br

http://vimeo.com/16248811 (Vídeo Bê-a-bá Brasil).

http://vimeo.com/28222083 (Vídeo As Últimas Flores do Jardim das Cerejeiras)

http://www.spescoladeteatro.org.br/enciclopedia/index.php/Grupo_Oficcina_Multim%C3%A9dia

http://www.spescoladeteatro.org.br/enciclopedia/index.php/Ione_de_Medeiros

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[1] “(…) music in more than one part, and the style in which all or several of the musical parts move to some extent independently. Polyphonos (‘many-voiced’) and polyphonia occur in ancient Greek without any connotations of musical technique. (…) forms of the adjective came into use in modern languages, designating both non-musical phenomena such as birdcalls, human speech and multiple echoes, and musical phenomena such as instrumental range and tonal variety, as well as the various tunes playable on an automatic musical device”.

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