Reabertas as inscrições para os (as) interessados (as) em participarem, gratuitamente, da Oficina de Introdução à Escrita Dramática Contemporânea: narrativas do real e depoimentos autobiográficos, com o prof. Dr. Luciano Oliveira, do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Projeto contemplado pelo Edital nº 83/2020/SEJUCEL-CODEC – 1° EDIÇÃO ALEJANDRO BEDOTTI DO EDITAL DE CHAMAMENTO PÚBLICO DE FOMENTO À CULTURA PARA PESQUISA E DESENVOLVIMENTO DE EXPRESSÕES CULTURAIS (Lei Federal 14.017/2020 – Lei Aldir Blanc).
Artigo publicado em: Urdimento, v.2, n.32, p. 364-383, Setembro 2018.
O lugar dos objetos cênicos nas encenações de Eid Ribeiro[1] junto ao Armatrux[2]
Resumo: Neste artigo apresento
parte do conteúdo do livro de artista desenvolvido ao longo do meu doutorado,
defendido em 2016 na UDESC, bem como do livro resultante deste, publicado em
2017. Durante a pesquisa analisei o lugar dos objetos cênicos em três processos
criativos e espetáculos teatrais do encenador mineiro Eid Ribeiro junto ao Armatrux: De Banda pra Lua, No Pirex e
Thácht. No presente texto trago, em
síntese, o conceito ampliado de objeto que desenvolvi naquela ocasião. Também
analiso, a partir de um recorte de cenas desses espetáculos, as quatorze
categorias dos objetos encontrados durante a pesquisa, estas resultantes do
estudo das relações entre os atores e objetos em tais encenações. Um estrato maior
da pesquisa que optei por reproduzir aqui foi a diferença entre Teatro de Objetos e Teatro com Objetos.
Palavras-chave: Encenação.Ação consciente. Imagens. Teatro com
Objetos. Teatro de Objetos.
The place of the scenic objects in
the spectacles of Eid Ribeiro with to the Armatrux
Abstract: In this article I present part of the content of the artist's book developed during my doctorate, defended in 2016 at UDESC, as well as the resulting book published in 2017. During the research I analyzed the place of the scenic objects in three creative processes and theatrical spectacles of the director Eid Ribeiro with the Armatrux: De Banda pra Lua, No Pirex and Thácht. In this text I summarizing the extended concept of object that I developed at that time. I also analyze, from a cut-out of scenes of these spectacles, the fourteen categories of objects found during the research, these resulting from the study of the relations between the actors and objects in such productions. A larger stratum of the research I chose to reproduce here was the difference between Theater of Objects and the Theater with Objects.
Keywords: Staging. Conscious
action. Images. Theater with Objects. Theater of Objects.
Tenho certa fascinação pelos objetos, sejam eles
decorativos, fetichistas e/ou artísticos, principalmente os de âmbito teatral.
Independentemente das linguagens e modalidades das quais integram, sempre os
vejo com olhos de águia. Tento apreendê-los em todas as suas multiplicidades de
sentidos, de formas e de utilidades, pois, a meu ver, os objetos são entes, são
carregados de memórias e de um universo muitas vezes desconhecido por nós.
Como encenador, professor e pesquisador de teatro entendo
que olhos atentos são necessários para o fazer criativo, visto ser bastante
complexo lidar com os múltiplos elementos e exigências da cena. Um problema que
detecto quando dou aulas de direção teatral é que pela falta de atenção, ou por
mero descuido, ou ainda pelo pouco conhecimento do valor dos objetos, estes são
relegados, por vezes, a um segundo plano, ou até mesmo são esquecidos. Foi
pensando sobre isto que optei por pesquisá-los no doutorado. E assim, por
apreciar tanto esses seres, desenvolvi a tese O
objeto flutuante na estética e na poética teatral nas produções de Eid Ribeiro
junto ao Armatrux como um objeto, mais precisamente como um livro de
artista.
Cursei o doutorado, entre 2013 e 2016, no Programa de
Pós-graduação em Teatro da UDESC, com orientação de Brígida Miranda e coorientação de Wagner
Cintra (da UNESP). Durante a redação desse livro de artista tive o auxílio
editorial de Gustavo Kaimoti, da Editora Scienza, de São Carlos. Logo, tal tese
foi defendida como um livro interativo, no qual links de músicas e vídeos dos espetáculos do Armatrux −De Banda pra Lua, No Pirex e Thácht − poderiam ser
acessados pela pessoa que lê por meio de um aplicativo leitor de QR_Code. Sustentei a hipótese de que o objeto teatral flutua entre
a poética e a estética artística desses três espetáculos.
De
Banda pra Lua, ou De
Banda, como é chamada pelos artistas do Armatrux,
é o único espetáculo infantil da amostragem selecionada para estudo. Nessa
montagem,Eid Ribeiro mesclou o
teatro de atores com o teatro de animação e com vídeos. Os objetos cênicos, em
tal trabalho, são poucos, mas muito potentes e interessantemente utilizados,
pois, esteticamente, são misturados com sombras, bonecos, projeções e com os
próprios atores. Já em No Pirex,
direcionado ao público adulto, Ribeiro começou a aprofundar as suas pesquisas
com os objetos, em especial com materiais de cozinha, chocando-os e
hibridizando-os com princípios estéticos de diferentes linguagens artísticas,
como o cinema mudo e o circo. E em Thácht,o encenador verticalizou as suas
investigações com os objetos de cena, uma vez que a encenação se estruturou a partir da
definição de cenas gags com três unidades
de objetos principais (bengalas, chapéus e lenços), bem como a
partir da relação direta e criativa dos atores com esses elementos cênicos.
Ao longo da minha pesquisa
destaquei como o objeto, nos processos criativos e na cena ribeiriana junto ao Armatrux, estabelece ligações com o
cenário, está no cenário e/ou é ele próprio o cenário; mantém estrita relação
com o figurino; com a iluminação; com a trilha sonora (por ocasiões ele mesmo
constituidor de sonoridades); com o ator (fundamental na sua manipulação e na
criação de signos, sentidos e correlações), com a plasticidade do espetáculo e
com o texto (podendo também ser texto ou referenciado no texto, por meio de
rubricas ou de didascálias internas). A tese defendida, e que se encontra
depositada na Biblioteca Central da UDESC, demonstra ainda como em algumas
situações cênicas desses três espetáculos
o
objeto é o elemento propulsor da criação, constituindo, assim, a espinha dorsal
do trabalho a ser levado ao público.
Após alguns meses do
encerramento do doutorado decidi dar continuidade à parceria com a Scienza e
publiquei o meu livro de artista sob o título Eid Ribeiro e o Armatrux em processo: o objeto flutuante entre a
poética e a estética teatral. Ademais
do nome, o
que diferencia o livro da tese é uma apresentação redigida por Rogério Oliveira,
professor da Universidade Federal de Ouro Preto, e a ausência dos anexos.
Voltemos ao conteúdo da tese e do livro publicado,
ambos livros de artista. No que concernem às especificidades dos objetos no
teatro, argumentei que eles dialogam e se encontram em estrita relação com os
demais elementos constituintes da encenação teatral.
Parti do pressuposto de que os objetos são componentes
materiais e visuais da cena, e de que são essenciais para a constituição
estética de um espetáculo. Ou seja, mesmo que isolados no espaço, eles se
relacionam de modo direto com os múltiplos elementos da encenação, constituindo
visualidades, atmosferas, climas e até mesmo paisagens sonoras. O texto que redigi
sustentou que os objetos teatrais produzem imagens e insertam dicotomias,
antíteses, paradoxos, metáforas, metonímias e poesias; criando sentidos. Eles
também geram presença, constituindo, por vezes, a própria presença. Os objetos
contêm histórias e as figura por meio de sua ligação com o espaço. Enfim, os
objetos de cena criam, ampliam e aprofundam espaços simbólicos e memoriais.
Argumentei ainda que, no ato
da realização teatral, sem a intencionalidade da ação do ator, o objeto
configura-se apenas como um elemento secundário. No entanto, se o ator, durante
suas ações, relaciona-se de modo consciente com um elemento material da cena −
seja ele o cenário, o adereço, o acessório, os instrumentos musicais, o
figurino e/ou os bonecos – esse elemento pode ser considerado como objeto
cênico. Este é, em suma, o conceito ampliado de objeto que apresentei.
Tanto a tese quanto o livro contém quatro capítulos.
Contudo, a introdução é uma espécie de prefácio, no qual consta uma pequena
biografia do encenador Eid Ribeiro, um apanhado histórico do Armatrux e um breve currículo artístico
dos atores e atrizes integrantes desse grupo[3].
No Capítulo I, intitulado Conceitos e Categorias Preliminares, para compreender melhor as especificidades dos objetos
cênicos, elaborei o já mencionado conceito ampliado de objeto, assim como propus
a divisão dos objetos cênicos em quatro níveis poéticos principais (ou quatro
camadas significantes): o primário, o secundário, o terciário e o quaternário. Ademais,
os distribuí e os classifiquei em quatorze categorias
de caráter técnico-analíticas. Estas não foram dadas a priori, mas surgiram da
observação e análise das três obras teatrais que Ribeiro encenou com o Armatrux e que foram estudadas por mim.
Tampouco as categorias se pretenderam estanques, pois, em dados momentos, elas
podem se imbricar, confundindo-se uma com a outra. Por serem dinâmicas, o
leitor/a leitora pode ler e vê-las com outros olhos. A organização em
categorias foi muito mais de cunho didático, a fim de sistematizar de modo mais
claro as análises e facilitar a leitura. São estas as categorias: bio-objeto,
objeto-adereço, objeto-cenário, objeto-figurino, objeto-instrumento, objeto-afetivo,
objeto-antropomórfico,
objeto-desviante, objeto-objeto, objeto-energético, objeto-extensão do
corpo, objeto-faltante,
objeto-imaginário e objeto-zoomórfico[4]. Contudo,
não sou o inventor dos nomes de todas as categorias. O conceito de bio-objeto é
uma expressão encontrada no livro No limiar do desconhecido – reflexões
acerca do objeto no teatro de Tadeusz Kantor do pesquisador e professor Wagner
Cintra. Já as categorias objeto-cenário e objeto-figurino foram cunhadas tendo
como base uma entrevista que realizei com o ator mineiro Odilon Esteves[5]. Para
discorrer sobre a categoria objeto-energético evoquei o conceito de sagrado
encontrado na obra O Sagrado e o Profano,
de Mircea Eliade. Por sua vez, o termo objeto-extensão do corpo encontra
reverberação na obra citada de Wagner Cintra. Finalmente, um exemplo da
categoria objeto-imaginário foi encontrado na obra O Ator no século XX: evolução da técnica/problema da ética de
Odette Aslan, que analisa os objetos invisíveis
de A Floresta, de Ostrovski, encenada
por Meyerhold.
Ainda
no primeiro capítulo, operei com algumas categorias conceituais,
dentre elas, poética e estética. Para sintetizar as categorias poética e
estética recorri, dentre outros livros e artigos, à obra Os problemas da estética, do filósofo italiano Luigi Pareyson, e às
seguintes obras do filósofo teatral portenho Jorge Dubatti: Filosofía del Teatro I, Poéticas, concepciones de teatro y bases
epistemológicas e Introducción a los
Estúdios Teatrales.
Em suma, esta é parte da definição de poética que consta no
meu livro:
A
palavra poética vem do grego poïein:
fazer, compor, criar. Diz respeito à obra por fazer (…). O artista, segundo Pareyson,
não consegue produzir arte sem uma poética declarada ou implícita. A poïein teatral, por sua vez,
relaciona-se tanto com os processos criativos dos espetáculos (que envolvem,
principalmente, o encenador e os atores) quanto à apresentação dos mesmos, em que
o fazer dos atores é constante nos atos de interpretarem suas personagens, de
improvisarem e de se relacionarem com os múltiplos elementos da cena e com o
público. (…) Já Jorge Dubatti diz que (a poética) está localizada tanto nos
processos de criação quanto na cena teatral propriamente dita. (…) Trata-se
do teatro produzido e do teatro que é (representação) e que acontece diante do
público a partir da ação corporal e vocal dos atores. Pensando no espetáculo De Banda pra Lua, a poiesis ribeiriana constituir-se-ia de todas as etapas dos
processos criativos de tal espetáculo, desde a elaboração do texto pelo
encenador/dramaturgo até as apresentações públicas do mesmo, em que as ações
físico-vocais dos atores estão − assim como as suas relações com os objetos de
cena – sujeitas a constantes alterações. Tais mudanças, por sua vez, devem-se
tanto pela relação convivial com a plateia como pelo desejo do encenador, que
pode surgir inclusive a partir da convivência com os atores[6].
Outra vertente da poética
apresentada relacionar-se-ia com a beleza, com o suspiro, com a interjeição do apreciador:
“Que poético é este espetáculo!”, “Lindíssimo este poema!”, “Quão maravilhoso é
este perfume!”. Desta feita, o apreciador parece manifestar-se sobre o belo abstrato
da obra (as sensações, os sentidos, as emoções evocadas e provocadas, o som que
arrepia a pele, o verso que acelera o coração, o soluço de um ator que faz
aumentar a respiração) e também sobre o belo concreto − perceptível aos olhos,
ao tato e ao paladar − que estaria mais ligado à forma da obra (as cores dos
figurinos, os ângulos e as texturas do cenário, a organização espacial dos
elementos cênicos, à página de um livro…).
E, agora, também sumariamente,
esta é a acepção de estética de acordo com Pareyson (2001, p. 2 apud OLIVEIRA, 2017, p. 59 e 60):
toda teoria
que, de qualquer modo, se refira à beleza ou à arte: seja qual for a maneira como se delineie
tal teoria − ou como metafísica que deduz uma doutrina particular de princípios sistemáticos, ou como fenomenologia que interroga e faz falar os dados concretos da experiência, ou como metodologia da leitura e crítica das obras de arte, e até como complexo
de observação técnica e de preceitos que possam interessar tanto a artistas
quanto a críticos ou historiadores −; onde quer que a beleza
se encontre,
no mundo sensível ou num mundo inteligível, objeto da sensibilidade ou também da inteligência, produto
da arte ou da natureza;
como quer que a arte se conceba,
seja como arte em geral, de modo a compreender toda técnica humana
ou até a técnica da natureza, seja especificamente como arte bela.
A partir desse excerto, parece-me que a estética, na arte, se
refere à sensibilidade e aos sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar),
mas também ao universo inteligível. As técnicas (o fazer, a poética) e os
sentimentos com as quais a arte é concebida também configurariam a estética.
Já a
estética teatral, para Pavis (1999), determina a ideia de experiência estética,
ou seja, de estética compartilhada entre público, produto e criador.
Os processos criativos são momentos de criação poética
e ao mesmo tempo de constituição estética de uma encenação, em que “o fazer
inventa o modo de fazer”[7]
(OLIVERAS, 2005, p. 152). A estética – que parece ser um dos
elementos resultantes da poética, que, por sua vez, funda a estética -, encontra-se mais evidente na cena, ainda que já
esboçada, tangenciada e trabalhada durante os processos criativos. Ela é
sentida e percebida pelo espectador, mas também por todos os artistas
envolvidos na encenação, em especial pelo encenador que a utiliza como
ferramenta para a construção da cena e para a propulsão de sentidos, de
experiências e de signos. Logo, em termos estéticos e poéticos, os objetos podem
construir narrativas, procedimentos, linguagens e sentidos.
Dito isto, entro no segundo capítulo: Eid Ribeiro: o cineasta da cena teatral
belorizontina – uma objetiva sobre de Banda pra Lua. Nesse capítulo argumentei
que é na relação com os objetos que os atores/atrizes arquitetam histórias,
ações e sentidos. O foco das análises foram as mutações semióticas sofridas
pelos objetos a partir das relações entre eles e os demais elementos da
encenação, que produziram estéticas e poéticas próprias e significativas.
O
espetáculo De Banda Pra Lua estreou
no Teatro Francisco Nunes, em Belo
Horizonte, em 30
de junho de 2007. Ele possui uma estética cênica bastante
cinematográfica, marcada pela fotografia, e
esteticamente apresenta um hibridismo de linguagens artísticas: teatro, teatro
de animação (sombras e bonecos), circo, cinema, cinema de animação e vídeo, que
gerou um trabalho com uma linguagem bastante peculiar.
De
Banda conta a história dos irmãos Tonico e Bié que montam
no lombo da mula Madrugada para ir a
uma festa na roça, no interior de Minas. Porém, durante a trajetória, vários
percalços acontecem, a exemplo da descida de São Jorge da lua em busca de ajuda
para combater o temido Dragão. À mulinha cabe a missão de ser o transporte
do santo, pois o seu cavalo fugiu do astro lunar. Uma assombração também
aparece no meio do caminho, mas isto não impede os irmãos de alcançarem o seu
objetivo. Por fim, a Lua minguante desce
dos céus para animar os corações das apaixonadas crianças e da encantada Madrugada.
Ao lermos o texto teatral
desse espetáculo, escrito em 2005, já notamos nele a sugestão de objetos
cênicos para a futura encenação. Daí
se deduz o forte interesse do encenador/dramaturgo pelos objetos, antes mesmo
do seu contato profissional com o Armatrux.
Passemos
agora a alguns estudos das relações entre atores e objetos de cena em De Banda pra Lua que podem ser
encontrados em meu livro. As categorias desses objetos também serão observadas.
Um objeto importante no início do espetáculo é o cachimbo do pai de Tonico e Bié. As constantes tragadas feitas por ele fazem com que a pequena chama do fumo aumente e diminua incessantemente. Visto no escuro, o cachimbo pisca como um vagalume. Se escutarmos com atenção o coaxar dos sapos e os cricris dos grilos da trilha sonora, a nossa imaginação é capaz de fisicalizar, no espaço, a bioluminescênciado inseto alado. Podemos dizer que essa é a primeira mutação objetal do espetáculo (um cachimbo que se desvia do seu nível primário – daquilo que ele é e para o qual se presta em termos de utilidade − e se converte em vagalume, ganhando característica de um objeto-desviante do seu sentido primeiro), ocorrida num nível mais metafórico que concreto.
Numa
outra cena, mesmo sendo achincalhados pelo pai, os meninos se recusam a ir para
cama, pois a lua não nasceu ainda, e continuam uma brincadeira com uma
lanterna, cujo foco se transforma em formigas[8] que sobem pelo corpo do
velho. Mais tarde, Bié faz nascer a Lua para o pai: primeiro com o foco da
lanterna, que sobe vagarosamente pelo tecido branco; depois com a projeção da Lua gorda e brilhante, em substituição
ao foco, cuja imagem vem de trás da tela (objeto-cenário[9])e dança gostoso da esquerda para a direita, de cima para baixo e
perpendicularmente à “janela”.
Nessas cenas observam-se dois
níveis poéticos dos objetos: a função
primária e a função terciária ou desviante. No primeiro, o cachimbo e a
lanterna são usados para os fins a que se prestam, constituindo objetos-objetos:
aqueles em estado primário,
enquanto materiais, sem sofrer mutações físicas nem metafóricas. Já no terceiro, os objetos
são colocados em posição de estranhamento, pois são desviados das suas funções
principais: metaforicamente, o cachimbo muta-se em vagalume e o foco de luz
torna-se formigas que passeiam pelo corpo do caipira e, depois, muda para uma Lua cheia. Desse modo, há um desvio de
sentido da lanterna. Em termos de níveis de apreensão, esses dois objetos não
são reduzidos a um único sentido. De utilitários, eles ganham em ludicidade e
simbologia, transformando-se em objetos-desviantes, ou seja, objetos que
desviam dos seus sentidos primários, adquirindo níveis poéticos terciários,
sem, no entanto, perder suas características básicas. Trata-se, exatamente, da função terciária do objeto.
Outros momentos interessantes são
os que aparecem a vara de pescar de Tonico,
que tem poderes especiais, pois ela toca e domina mula, serve de apoio para Tonico para cruzar pinguelas e de arma
contra fantasmas, corujas e para “lutar” contra São Jorge. Há um pequeno momento em que o meninousa tal objeto para acalmar Madrugada, que se assustou com a árvore
mal assombrada. Com batidas curtas
contra o solo e com a ajuda de assovios e estalidos de beijos, o menino
tranquiliza o animal até que ele se imobilize e o irmão Bié possa pegar a corda pendente em seu pescoço (objeto-extensão do
corpo[10]), dominando-o por
completo. Da utilidade à inutilidade, a vara não pesca nenhum peixe, por não
ter linha nem anzol, por isso é um objeto-faltante. Além da vara, nenhum outro
objeto de De Banda atinge o segundo
grau (ou nível) poético. Isto porque a função secundária do objeto ocorre
somente quando se trata de um material que deixa de ser utilizado em sua função
primária, porque algo em sua forma e/ou em seu conteúdo já não permite mais que
ele seja usado no primeiro nível. Alguma coisa está ausente nesseobjeto-faltante, no qual falta alguma
coisa para seu pleno funcionamento. Essa categoria está diretamente ligada ao
segundo nível de significação dos objetos: uma passagem entre o primeiro e o terceiro
níveis, ocorrendo, de maneira especial, em estéticas e/ou cenas realistas. Tal
objeto é uma potência, pois a qualquer momento está apto a ser transformado em
outra coisa. O objeto de cena de Tonico já
foi elaborado, esteticamente, sem os seus demais componentes. O que se vê é uma
vara de bambu nua e crua.
Outro
objeto importante do espetáculo é a sagrada espada Ascalon de São Jorge (objeto-energético).
Elaentra em cena quando o santo da
lua desce as escadas, por meio de sombras projetadas por trás da tela branca. Os
meninos assistem amedrontados ao “teatro de sombras” do santo guerreiro. No Brasil,
esse santo,segundo Câmara Cascudo
(1999), foi sincretizado com o Ogum
no Candomblé.
Na
encenação de sombras ribeiriana, com sua espada em riste, São Jorge, após descer da lua, golpeia, grita e movimenta-se,
inicialmente, como um guerreiro samurai[11]. Tonico e Bié não creem
que ele é uma entidade sagrada que perdeu o seu cavalo e que precisa de ajuda. Tonico o chama de Belzebu. Furioso, São Jorge
aparece, então, em “carne e osso”, à frente da tela. Em posição de combate, Tonico empunha sua vara de pescar e,
atrás dele, Bié prepara seu chicote.
Enquanto isso, Madrugada dorme,
despretensiosamente. Sob o ritmo de tambores de terreiro de candomblé, os três
caminham lateralmente em círculo, como se se preparassem para o entrechocar de
suas “armas”. São Jorge, com sua Ascalon sempreerguida e pronta para o ataque,faz uma dança com as matrizes corporais de Ogum. Desesperados, os irmãos fogem do agressivo guerreiro.
Madrugada, sem
saber do perigo, ronca como uma porca. As fortes batucadas persistem e o
impetuoso São Jorge continua dançando
como Ogum e faz uma densa coreografia
com sua espada e com seu elmo. Por meio de um acaso ensaiado, o elmo “cai” da
cabeça do santo, parando em sua mão esquerda. A dança agora é um dueto entre Ascalon e o elmo. A espada brilhante,
por um lado, espeta o inimigo invisível. O elmo, por outro, transforma-se em um
escudo (e torna-se um objeto-desviante), protegendo o guerreiro das investidas
das supostas “flechas voadoras” e das “estocadas” contra o peito. Com os
objetos imóveis, apontados para o céu, o santo olha, coreograficamente,
primeiro para a espada, depois para o “escudo”. Por fim, depois de terminada a
“possuída” música, em posição de samurai, com a ponta de Ascalon voltada para o alto, São
Jorge chama a mula, que desperta do seu sono profundo.
Ascalon
é
o objeto maior de São Jorge, o que
ele tem de mais forte e de masculino, de mais seu. Por isso, mantém-se, no
decorrer do espetáculo, em sua função primária (objeto-objeto): a de guerrear,
de lutar e de se defender. Importa observar que é a forma de manipulação do ator
Cristiano Araújo, que interpreta essa personagem, associada às suas ações
físico-vocais e a certos elementos da encenação – como à trilha sonora (em que ouvimos batuques
de tambores de terreiro de candomblé, bem como titilintares de temática
oriental) e à iluminação atmosférica – faz
com que tal objeto sagrado transforme a energia da personagem e,
consecutivamente, a altere em outra: seja uma energia de santo guerreiro, seja
a de um samurai nipônico, seja a do orixá Ogum
num terreiro. Observa-se que a espada não sofreu transformação alguma,
contudo agiu “magicamente” sobre a mutação da energia da personagem, quer
dizer, operou sobre o desvio de características da própria personagem. Esta é a
quarta função do objeto teatral (a energética), que possibilitou a criação da
categoria objeto-energético, que é o objeto sagrado, místico, que transforma a
energia da personagem, mudando-a em outra, mas sem que o objeto cambie sua
forma, física ou metaforicamente, e ainda sem que o ator troque de figurinos e
mude de maquiagem. Mesmo sendo mantido, ao longo de toda a encenação, em sua
função primária, o objeto provoca tal transformação.
Entra em cena, já quase no
final do espetáculo, o Dragão (objeto-zoomórfico:
que se refere
aos objetos que têm formas de animais, sejam aqueles figurados animalescamente
ou então os que não são representados de tal forma, mas que possuem traços de
bichos).O Dragão chega movimentando-se
misteriosamente a partir de um tema musical oriental. Ainda com o mesmo tema,
entra São Jorge montado num boneco da
mula Madrugada (outro
objeto-zoomórfico). Começa a luta.
Muda a música. Ao ritmo de batucadas, tipo de terreiro, o santo valente e o Dragão enfrentam-se ferozmente[12]. São Jorge defende-se com a sua espada, desferindo golpes rápidos e
violentos. Com dois golpes profundos no pescoço, o Dragão vai ao chão, mas não morre. Após várias outras tentativas
fracassadas, São Jorge dá o lance
fatal, cravando Ascalon bem fundo da
goela do monstro lunar, que balança suas pernas e morre em fração de segundos. Em
seguida, Madrugada e São Jorge voam para a Lua,deixando na Terra os tristonhos Bié e
Tonico. Mas, para alegrar os corações
dos irmãos, surge, bela e brilhante, a Lua
minguante. Ela gira em sua argola (objeto-objeto e também bio-objeto)e derrama seus véus brancos (braços
lunares – objetos-extensão do corpo) sobre as cabeças das crianças. A partitura
de ações da Lua, interpretada por
Tina Dias, aproxima-se bastante, imageticamente, de um número aéreo circense de
longos panos esvoaçantes, pois, além de explorar espacialmente todo o diâmetro
do aparelho, a extensão do vestido cria imagens de grandes tiras de tecido
branco dependuradas sobre o palco.
A lira,
ou argola, é um aparelho utilizado pelo acrobata em suas performances aéreas.
Apesar de pertencer ao vasto universo de aparelhos do circo, a lira utilizada
em De Banda pra Lua deve ser
considerada como mais um objeto cênico do espetáculo teatral. O arco aéreo é
apropriado por Ribeiro enquanto um rico objeto na criação da dinâmica estética
da cena: uma lua que desce dos céus girando em torno de si mesma, deixando cair
os seus véus. Ademais, é usada para produzir os efeitos visuais necessários às
cenas correlatas. A argola em questão é uma espécie de bio-objetode Kantor, utilizado em suas funções
primárias e terciárias, cuja relação entre ele e a atriz é feita de forma plena
e consciente. Primária porque cumpre o seu papel estético na cena como um
elemento circense. Terciária por causa das transformações poéticas, feitas
pelas ações cênicas da personagem, cujo corpo está ornamentado pela
indumentária branca, em lua minguante. Aqui o objeto é “vestido”, coberto, englobado,
morado e ocupado quase que completamente pela atriz Tina Dias, que forma os
órgãos internos do objeto, conformando um só corpo-personagem. Então, a lira é
mudada para astro lunar. Enfim, ausente do corpo da atriz que lhe dá vida, a
argola fica nua no palco, falecida.
Entremos agora no capítulo
três: “Em cena: No Pírex, Café, Peru e
Saliva! Teatro de Objetos ou Teatro com Objetos?”.
No
Pirex é um trabalho sem diálogosfortemente baseado na fisicalidade e no jogo dos atores com os
objetos –
principalmente por meio de técnicas circenses, como o malabares − montado pelo Armatrux ao longo de 2008 e 2009,
estreando em 11 de novembro de 2009 no Teatro Klauss Vianna, de Belo Horizonte. Ele narra o encontro de
cinco personagens grotescas (Boquélia, Bencrófilo, Bonita, Ubaldo e Alcebíades) em
torno de uma mesa macabra, na qual desenvolvem ações absurdas, escatológicas e
pornográficas. Dentre as temáticas abordadas pelo grupo encontramos o amor, o
ciúme, as relações de poder, o sexo e a morte. Trata-se também de uma espécie
de pesadelo tragicômico e de uma forma de versão gótica livremente inspirada em
Alice no País das Maravilhas, em
especial no
sétimo capítulo, obra de Lewis Carroll, no qual a protagonistaé convidada para um chá de loucos.
Para os processos poéticos de No Pirex, Ribeiro inspirou-se no cinema
expressionista alemão, em filmes mudos e em preto e branco de Charles Chaplin,
assim como em obras literárias e dramáticas, a exemplo de Na Pior em Paris e Londres, de George Orwell. Além disso,
recordações da sua infância, bem como as memórias dos espetáculos circenses
assistidos por ele, contribuíram, sobremaneira, para a criação dessa montagem e
para a seleção do amplo universo objetal nela constante.
Em No Pirex, o encenador concebeu um caldeirão estético-poético,
misturando múltiplos estilos, modalidades e linguagens artísticas como o teatro
de formas animadas, o teatro de atores propriamente dito, a música e o circo.
Saltou-nos aos olhos, no entanto, a visão muito particular que ele tinha a respeito
do Teatro de Objetos. Assim, precisei fazer a distinção entre essa linguagem e
o Teatro com Objetos, com o fito de dirimir possíveis dificuldades de
entendimento por parte do leitor.
Entre uma e outra categoria há diferenças importantes de
serem assinaladas. Grosso modo, o Teatro de Objetos é uma linguagem artística
e/ou um gênero do teatro de animação. Já o Teatro com Objetos parece-me mais um
artifício estético da cena. Ou seja, o espetáculo teatral em cuja encenação
pululam as relações poéticas dos atores com os objetos de cena. Assim, os
objetos – bem como os cenários, adereços, figurinos, trilha sonora, iluminação,
personagens, etc. – concorrem em força cênica. Em outras palavras, os objetos
constituem partes dos múltiplos elementos da encenação. Diferentemente do que
ocorre, por exemplo, no teatro de Kantor, em que o objeto está em cena na mesma
condição do ator, na estética teatral de Ribeiro o objeto é um acessório, visto
como essencial para o desenvolvimento do jogo do ator.
Já no Teatro de Objetos, os objetos são as próprias
personagens do espetáculo, são os sujeitos da ação. Eles concorrem com os
atores e devem ser o foco das atenções. Os objetos prontos são deslocados da
sua função original, a primária, e, por meio de metáforas e de metonímias,
transformam-se em uma sorte de coisas.
Aliás, a metáfora é muito
recorrente quando da manipulação de objetos cênicos, sendo notada,
principalmente, na terceira função poética dos objetos: a desviante. Em No Pirex,
há objetos primários que se desviam das suas funções originais e,
metaforicamente, adquirem, aos olhos dos espectadores, múltiplos sentidos.
Para Vargas (2010, p. 33-34), o
Teatro de Objetos
é
uma vertente do Teatro de Animação que se vale de objetos prontos, no lugar de
bonecos, deslocando-os da sua função e conferindo-lhes novos significados, sem
transformar, porém, a sua natureza, explorando uma dramaturgia que se vale de
figuras de linguagem, em detrimento da importância da manipulação propriamente
dita. (…) Novos significados podem ser dados aos objetos, sem transformar a
sua natureza, por meio de associações que se podem dar pela forma, pelo
movimento, pela cor, pela textura, pela função do objeto, etc. Todas estas
associações de ideias constituem figuras de linguagem e as mais utilizadas são
a metáfora, quando se emprega um termo com significado diferente do habitual,
com base numa relação de similaridade entre o sentido próprio e o sentido
figurado, e a metonímia, quando uma palavra é usada para designar alguma coisa
com a qual mantém uma relação de proximidade ou posse.
Desta feita, para essa diretora, um lenço de seda pode ser
utilizado, por exemplo, para retratar uma mulher bonita, pois a suavidade e a
maciez da seda são associadas à beleza dessa mulher. O espectador, por meio de
uma associação de ideias e de metáforas, transforma o objeto em algo além do
que ele é, sem que deixe de ser o que realmente é. Portanto, nesse caso, o
lenço de seda é metaforicamente transformado em uma bela mulher sem perder as
suas características primeiras: a forma de lenço, a sua densidade, a sua cor
inerente e o movimento que lhe é peculiar. Logo, o espectador vê uma mulher a
partir do objeto lenço.
A transformação metafórica dos objetos atua sobre os
sentidos dos atores e dos espectadores, principalmente sobre o olhar. O ator
(ou ator-manipulador, no caso do teatro de animação) age sobre a mecânica dos
objetos, explorando suas formas, volumes, movimentos, aparências e funções;
criando imagens. O público recebe e reage, sensorialmente e pela livre associação
de ideias, os/aos estímulos produzidos pela relação entre o ator e o objeto de
cena.
Entretanto, não são apenas as metáforas e as metonímias as
responsáveis para se categorizar um espetáculo como sendo Teatro de Objetos.
Vimos, em De Banda pra Lua, que certos
objetos cênicos da encenação passaram por mutações metafóricas sem, no entanto,
serem colocados dentro de tal gênero. Em No
Pirex ocorre algo semelhante com os objetos. Por que isso acontece?
Em No Pirex, a
maior parte dos objetos são utilizados, conscientemente, como tais, nos seus
sentidos denotativos e em suas funções primárias. Entretanto, diferentemente do
que ocorre no Teatro de Objetos, esse objeto não configura uma personagem.
Pelas claras relações entre as personagens-atores e os objetos, o espectador os
vê e os compreende como sendo eles mesmos. Assim, o objeto como personagem é
uma das chaves diferenciais entre uma e outra modalidade. No Teatro de Objetos
temos os objetos como personagens (os sujeitos das ações) que desenrolam uma
narrativa dramática. Já no Teatro com Objetos, os objetos cênicos fazem parte
da história contada, porém não são personagens dessa, haja vista as personagens
serem representadas pelos atores. Estes é que constituem os sujeitos das ações.
Logo, No Pirex caracteriza-se, antes
de qualquer coisa, como um Teatro com Objetos, mas que, em determinados
momentos, devido aos princípios de manipulação, dialoga com o Teatro de
Objetos.
Espacial e matematicamente, o amplo universo de objetos de No Pirex contém e está contido na cozinha
e na sala de jantar da casa de Boquélia.
São centenas de objetos distribuídos por esses espaços, bem como pelos
bastidores: bules, pirex pequenos, pirex grandes, xícaras de café, xícaras de
leite, pratos e pratos de sobremesa, panelas, lustre, tecidos, figurinos,
cadeiras, mesa, quarto de boi, portas, copos americanos pequenos, copos
americanos médios, copos americanos grandes, taças e taças pequenas. Enfim, sem
medo de exageros, essamontagemprecisa de mais de 700 objetos para
funcionar.
Cenas paralelas e simultâneas
ocorrem a todo o instante em No Pirex.
Enquanto um ator gira um minúsculo pirex em seu dedo num canto do cenário,
outro organiza − no lado oposto − uma pilha de pratos sobre a mesa; uma atriz
manipula panelas e talheres no centro e ao fundo do palco; e outra atriz
caminha sem rumo pelo espaço. Logo, para acompanhar a todos esses e outros
acontecimentos, criando uma teia coerente e coesa de sentidos, a plateia
precisa assisti-lo duas ou mais vezes. A cada ida ao teatro uma nova descoberta
é feita e um detalhe é percebido.
Muitas categorias dos objetos que encontramos em De Banda pra Lua são notadas em No Pirex e em Thácht. Contudo, os modos de uso, sejam pelas formas dos objetos ou
até mesmo pelas especificidades estéticas de cada um dos espetáculos, são
distintos. Para evitar repetições neste artigo, a partir de agora escreverei
apenas sobre aquelas categorias que ainda não apareceram e não foram analisadas.
Porém, algumas pequenas recorrências poderão ocorrer para que o sentido geral
da cena narrada não seja perdido.
Começa No Pirex.Luz em baixa resistência. O ancião Alcebíades, que se alimenta de pratos
quebrados ou dos restos abandonados pelos moradores da casa, está encerrado em
si mesmo, enrolado num “casulo” escuro (objeto-figurino), como um inseto
asqueroso congelado no centro do palco. Pela direita baixa, como um zumbi, entra
Bencrófilo. Cruzando a frente de Alcebíades, que continua imóvel e com o
rosto coberto pelo seu chapéu negro, Bencrófilo
para na esquerda baixa, em frente a uma cadeira preta e retira do bolso um
lenço também negro. O sacode de modo explosivo uma vez, despertando, de
imediato, o velho até então imóvel. Por fim, este caminha ruidosamente até a
cadeira, senta-se prostrado e recebe em seu pescoço o lenço do Copeiro, como se fora um babador de
criança e/ou um guardanapo de jantar.
O objeto-figurino é o figurino
utilizado pelo ator para além daquilo que ele se presta na cena: seja para
“vestir” a personagem ou para caracterizá-lo enquanto elemento identitário,
político, sociológico, ideológico, simbólico, estético etc.; seja para
“comunicar, estabelecer uma ligação com o público antes mesmo que o ator se
pronuncie. (…) [Ou indicando] ao público a época, o local e a razão da encenação”[13]; dentre tantas outras.
Sendo manipulado
criativamente, a partir de metáforas, o figurino ganha novas possibilidades de
uso na cena, além daquelas que já possui. Logo, adquire funções inéditas,
significados e poesias singulares, mas sem deixar de remeter a si mesmo
imageticamente. Isto que dizer que, apesar das transformações metafóricas pelas
quais passam o figurino, que são mudados pelo ator em uma sorte de coisas
(como, por exemplo, o “casulo” – paletó − escuro de Alcebíades), o espectador continua vendo o paletó como ele é
material e historicamente: sua forma, o tipo de corte do tecido, as cores, o
volume, o período histórico ao qual está ligado; ou seja, como paletó.
Em várias cenas de No
Pirex, Ubaldo e Bencrófilo (que se vestem e agem como Mordomo e Copeiro, respectivamente)agem
como uma dupla de clowns. Estão
sempre em uma rixa gostosa e disputando ações com os objetos. Para tanto,
utilizam-se de técnicas de prestidigitação, malabares, equilíbrio, lançamentos
e quebras. Ambos fazem aparecer objetos, como copos, pelas mangas das camisas.
Por assim dizer, o Mordomo é
“detentor” das garrafas, enquanto o Copeiro
é “proprietário” dos copos.
O ritmo de entrada e saída de personagens e objetos das
cenas é tão intenso que é quase impossível transcrever com precisão as
múltiplas e simultâneas sequências de ações. Em No Pirex,vê-se um balé
de objetos no espaço, que após se equilibrarem pelas distâncias, são dispostos
sobre uma mesa que mais parece uma maca de defuntos. Dentro e sobre os objetos
que estão sobre esta são despejadas “bebidas alcóolicas” (muitas vezes somente
fisicalizadas pelos atores, no sentido spoliano), café, chá e água; além de
desfilarem em cima dela alimentos, como um porquinho assado que foge em
desespero dos seus comensais.
A feia Bonita,
que tem uma relação maternal com os animais que cozinha, é vista em uma cenaninando tristemente o seu peru
desfalecido (objeto-afetivo).
Já em outra cena, ela depena uma ave branca (um peru), também infeliz e
bastante chateada por ter sido obrigada pela Patroa a fazer tal crueldade. Numa longa sequência de ações, que
dura quase quatro minutos, penas brancas são lançadas para cima por Bonita,enquanto outras caem do “céu” e se espalham pela cozinha – levadas
pelo vento produzido por um ventilador escondido sob o cenário[14]. Inicialmente, as penas
jogadas para o alto são poucas, e o ritmo da ação da Cozinheira é lento, acompanhado o andamento da música que toca.
Enquanto as que despencam das alturas mantêm um ritmo constante. Depois, ela
vai aumentando a quantidade e acelerando os movimentos, contrapondo-os ao
tempo-rítmico musical. As penas se parecem com flocos de neve despencando das
“alturas celestiais” ou até mesmo simbolizaria as lágrimas de Bonita, devido a seu grande apego aos
animais mortos. Tais penas, pelo jogo de manipulação da atriz, são mudadas,
pela força da metáfora, em neve e lágrimas.
Sobre o objeto afetivo[15], Pereira (1988) diz que
tal conceito liga-se à representação de algo que satisfaça as necessidades e
pulsões do bebê em fase de formação. Contudo, a categoria que aqui utilizo é
mais literal, pois ela se trata de um objeto pelo qual alguém (uma pessoa, um
ator ou uma personagem) tem forte relação afetiva ou emocional. Isso porque o
objeto-afetivo tem memórias, pois está intimamente ligado à experiência de vida
de quem o manuseia ou o preserva. Este pode ser, por exemplo, um presente
recebido em alguma ocasião especial. Ou, então, algo que tenha herdado de um
parente querido. Em algumas oficinas e disciplinas que ministro peço aos
participantes que tragam, para uma dinâmica de classificação dos objetos, um
objeto afetivo embrulhado em papel de presente. Explico que ele é carregado de
memória, porque está intimamente ligado à experiência de vida de quem o possui
e/ou de quem o presenteou. Assim, objetos como cartas de amor e de familiares,
adereços corporais, indumentárias, objetos religiosos (como terços e santinhos
de papel), animais de pelúcia, fotografias, brinquedos infanto-juvenis, joias,
vasilhames[16]
e até coleções (de selos e de moedas), dentre tantos outros, integram tal
categoria.
No teatro, ocorre algo parecido. Exemplos desse tipo de
objeto são o peru e o porquinho da Cozinheira
de No Pirex. Ela, antes de
cozinhá-los, acatando a ordem da Patroa tirana,
os nina e os mira tristemente. É muito difícil para essa personagem aferventar
os animais, visto que ela os trata como filhos. Mesmo estando mortos eles
precisam de muito carinho e cuidado. Como é possível uma mãe cozer e se
alimentar das suas amadas crianças? Os animais são dela. Afetiva e
emocionalmente, ela se mantém ligada a eles durante todo o espetáculo.
Mudança de cena e de parágrafo. Abrem-se as persianas da
parede (que separa a cozinha da sala de jantar) e os espectadores notam a
afetiva Bonita lançando pratos para o
Mordomo. Na realidade, o que se
observa é a Cozinheira, do centro do
cômodo ede costas para o público,
soltando pratos para o chão, enquanto outro ator ou atriz (não se sabe ao
certo), na escuridão da extrema direita alta da cozinha, cria uma “máquina
invisível” (soando: tchum, puuu, tuu) que os lança (tchum),
um a um, por cima da parede. O Mordomo recebe
cada prato, cospe nele (puuu) e o
coloca fortemente sobre o colo (tuu).
O jogo produz uma sensação de existência de um grande tubo, também invisível (objeto-imaginário)[17], aos pés de Bonita, que suga os pratos até a máquina
concretamente inexistente. Esta os projeta para o outro lado do cenário, indo
os pratos pararem exatamente nas mãos de
Ubaldo, que neles cospe ao recebê-los. A cena se encerra quando este selevanta da cadeira para pegar um prato
que achou que cairia próximo à mesa e, então, o último objeto “lançado” (tchum – pausa de 1, 2, 3, 4, 5 segundos)- que
de fato não é lançado, mas que cai de uma das varas penduradas no urdimento do
teatro – se
espatifa, propositalmente, no chão, provocando um grande estrondo (praaaa). E voam cacos para todos os
lados.
A Patroa Boquélia entra
triste na sala de jantar e senta-se a mesa. Ela usa uma manivela nela existente
para atrair uma taça vazia para si. Em seguida, Bonita surge com um porquinho enroscado em seu pescoço. Para
segurá-lo, ela insere um dedo no seu ânus, por um lado, e, por outro, o prende com
uma das mãos pelas patas dianteiras. Como de costume, ela leva o futuro jantar
para Boquélia aprovar – autorização esta não concedida,
ou melhor, ignorada, pois a Patroa se
recusou a inserir o dedo no orifício do suíno. Sua reação, que mais uma vez
demonstra agressividade e indiferença em relação a seus empregados, é a mesma:
expulsa a Cozinheira da sua presença.
Espantada, Bonita vai sentar-se numa
cadeira próximo ao proscênio. Como já fizera com o peru, a empregada também
nina o porquinho, mirando-o tristemente. Enquanto acalanta o pequeno animal, Boquélia se aproxima da empregada,
retira o seu toque blanc (touca
branca) e a açoita fortemente com esse objeto. A Cozinheira foge triste, no mesmo momento em que Boquélia joga a touca ao chão. Um pouco
mais tarde, o Copeiro, sujo de
vômito,entra em cena e apanha tal
objeto, colocando-o em sua cabeça e saindo em seguida. É interessante notar que
tal objeto-adereço, ao ser posto na cabeça do Copeiro, não sofre nenhum tipo de mutação, assim como não provoca
mudança de energia dessa personagem. Contudo, como o chapéu de Bié, do espetáculo De Banda pra Lua, ao ser utilizada pela Patroa para bater na empregada, a toque blanc transforma-se em uma espécie de chicote, passando do
nível primário de manipulação ao nível terciário, desviando-se da sua função
original.
A maior parte dos muitos objetos de No Pirex são manipulados em suas funções primárias, enquanto
objetos-objetos. Todavia, o modo pelo qual são manuseados em cena pode realçar
as características psicológicas das personagens, ajudar na construção dos
climas e das atmosferas propostas pelo encenador, pontuar os ritmos das ações,
colorir a luz, fazer bailar as músicas e dar suporte poético aos figurinos,
maquiagens e cenário da peça. Enfim, a estética das duas encenações de Eid
Ribeiro, analisadas até o presente momento, guardadas as especificidades de
cada trabalho, depende diretamente dos objetos cênicos e da vida que emana dos
seus usos criativos pelos atores.
Passemos agora ao capítulo quatro:
“Thácht, Thácht, Thácht!”
Thácht é um
espetáculo de variedades para o público adulto ensaiado em Nova Lima e estreado
na capital mineira em 14 de agosto de 2014, no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna. Tal trabalhoaborda passagens da vida de Rafa
e Rufo, artistas aposentados de
teatro de variedades, que vivem de suas memórias. Os dois palhaços, inspirados
em clowns como Charles Chaplin,
Buster Keaton e também em personagens circenses que Eid Ribeiro assistiu quando
criança, desenvolvem um diálogo que se aproxima do absurdo, gênero muito
apreciado por Ribeiro, usando de forma bastante peculiar a musicalidade das
palavras:
Conversas sobre médicos e outros
elementos da condição humana inerentes à velhice se misturam a vagas lembranças
do picadeiro. O espetáculo
conta também com a participação da diva transformista Siboney, uma cantora que ganha vida nas memórias da dupla, e a
curiosa presença da [Mulher do Atirador
de Facas][18].
Além dessas quatro
personagens, Thácht conta ainda com a
participação dos decrépitos cachorros Dentinho
e Magrelo, dois bonecos
ventríloquos (objetos-zoomórficos), e, a partir de 2015, com a presença mais
que especial da Patroa Boquélia, de No Pirex.
Com
forte caráter autobiográfico, as questões de saúde e físicas de Eid Ribeiro,
que passou por um câncer, bem como a de outros anciãos – como a fragilidade
muscular inerente à velhice, as dores nas juntas e nos ossos, a dificuldade de
memória, a flatulência, a incontinência urinária, etc. -, ocupam lugar de
relevância no texto do espetáculo. Logo, as personagens idosas de Thácht, incluindo os cães, têm
disposições físicas e mentais um pouco comprometidas.
Por
isso, parece-me que, por motivo das confusões da memória e do tempo, essas
personagens utilizam, em suas falas, muitos neologismos e grammelots. Nos diálogos entre Rafa
e Rufo, por exemplo, há uma mistura
divertida de sonoridades que se parecem com uma combinação entre o português, o
alemão, o francês e o russo: “RAFA – Sinto muito thix glub fun hip, danlilshspq
hip, thácht, hip…” (RIBEIRO, 2015, p. 4)[19].
No espetáculo Thácht, Ribeiro, em consonância com os
atores do Armatrux, aprofundou e
verticalizou suas investigações com os objetos, haja vista ter com estes
arquitetado os processos criativos da montagem. Desse modo, o texto que irrompeu
dos improvisos dos atores com os objetos, somado às interferências textuais do
encenador, que apresentou um pré-texto (chamado O Cachorro de Três Pernas) contendo imagens disparadoras para a
criação, foi alinhavado através de poéticas imagéticas originárias,
inicialmente, de chapéus, bengalas e lenços. Estas se somariam, mais tarde, às
dos instrumentos musicais: piano e violino. Em Thácht,os atores-personagens e os
objetos de cena encontram-se, em boa parte do trabalho, em níveis muito
parecidos de estado energético.
A música executada ao vivo – que é um diferencial em relação às outras duas
montagens – foi um
dos elementos chave para o entendimento das mutações sofridas pelos objetos de
cena desse espetáculo. Na realidade, algumas canções surgiram a partir do jogo
entre as personagens e seus objetos.
Quanto às categorias dos objetos, duas delas (objeto-antropomórfico
e objeto-instrumento), surgiram da análise dessa encenação, dadas as suas
características estético-poéticas. Assim sendo, entremos, neste instante, na
análise dessas categorias que faltam para completarmos o total de quatorze
apontadas no meu livro de artista. Elas se encontram na cena de abertura de Thácht.
Da plateia, vê-se borrada a imagem de dois baús pretos, sobre os quais Rufo está sentado de costas, mostrando sua cabeleira branca para o público. Ouvem-se passos: é o velho Rafa que caminha com partituras musicais em suas mãos. Ele pega uma folha e a prende sob o queixo. Assim faz com mais duas. Em seguida, toma os três papéis e os devolve à pequena resma, embaralhando-a. Para. Dá uma pequena passada ao proscênio. Vê o público. Logo depois, olha para a direita e nota seu “piano” (objeto-instrumento, que é um teclado eletrônico transformado cenograficamente em um piano). Tenta caminhar até ele, mas, no meio do caminho, uma folha vai ao chão. Ele para novamente. Mira Rufo, seu companheiro de cena, que não o vê. Desconcertado, observa o papel, caminha até ele e, com dificuldade dolorosa de idoso, abaixa-se para pegá-lo. Como um palhaço trapalhão e sem graça fita a plateia e volta ao “piano”. Senta-se em uma cadeira giratória e dá dois giros e meio, no sentido anti-horário, parando exatamente em frente ao seu instrumento. Cuidadosamente, abre a tampa do “piano”, separa uma partitura e a coloca no suporte da tampa. As outras partituras caem ao chão. Desanimadamente, Rafa as espia, dá um giro com a cadeira no sentido horário e para em frente a elas. Lentamente as apanha. Rufo continua imóvel sobre um baú. Rafa faz outro giro, “anti-horariamente”, e detêm-se novamente. Encara o público e joga o restante das partituras atrás do “piano”. Com o ruído das folhas batendo no chão, Rufo desperta. Depois, Rafa segura seu lenço amarelo, que se encontrava no bolso do paletó, enxuga a testa e limpa as teclas, executando uma escala cromática ascendente. Finaliza com uma nota musical. Minutos depois, após Rafa ensaiar algumas notas esparsas, Rufo, com um lenço vermelho no bolso do paletó,sai de sua imobilidade e, com sua bengala, caminha até o colega, como se quisesse esganá-lo pela péssima execução musical. Aproximando-se do companheiro bate com ela no chão, fazendo com que Rafa inicie, rapidamente,improvisações sobre a música Tascht: a princípio, num andamento muito rápido. Em seguida, Rufo, a partir de truques circenses,é dançado pela bengala (objeto-antropomórfico) − que se encontra em um nível mais elevado de tensão energética − como se esse objeto tivesse vida própria e comandasse os movimentos do seu dono[20]. Aqui, teatral e metaforicamente, é o objeto que ganha vida, tomando atitudes humanas, antropomorfizando-se, e executando a ação sobre a personagem, lançando-a de um lado ao outro e deslocando-a de sua posição quase letárgica. Rafa para de tocar e olha para Rufo, assustando-se. Rufo ameaça o colega, batendo o cajado no chão, e ele começa a tocar novamente o seu objeto-instrumento. Porém, agora, a música é uma variação da primeira, num andamento mais lento. Rufo volta a dançar, mas, nesse instante, é ele quem conduz a bengala (que agora é um objeto-objeto). Silêncio. Os dois ficam imóveis. Chateado, Rufo gira rapidamente o seu objeto, como se fosse uma hélice de helicóptero (objeto-desviante). É Rafa agora quem acompanha o ritmo ditado pelo objeto, mudando a música e o andamento. Por fim, Rufo, ainda aborrecido, puxa o pescoço de Rafa com a sua bengala e diz: “Desentrava a porra dessa música, Rafa!”. E o colega responde: “A porra dessa música. (Tempo). Rufo, uma vontade de fumar!”.
Rufo e Rafa usam
“o piano”, bem como o violino,de
modo não convencional para executar suas ações. Os instrumentos, de
forma parecida a outros objetos cênicos manipulados no espetáculo – tais como
as bengalas, chapéus e lenços −, são como que prolongamentos do corpo dessas
personagens. Mesmo estando, espacialmente, distante deles parece existir uma
espécie de conexão energética e de pensamento entre personagens, “piano” e
violino. Isto porque os atores, rítmica e musicalmente, referem-se de modo
constante – seja de forma verbal, seja com gestos ou com os olhares – a seus
objetos-instrumentos.
Enfim, um bom exemplo de uso
não convencional do instrumento musical, observado num dos três ensaios de Thácht que acompanhei em Nova Lima em
2014, foi quando Rafa tomou o violino
de Rufo e o “engoliu”, como faz um engolidor
de facas de circo. Percebe-se, então, que desde os processos criativos do
espetáculo os instrumentos musicais já estavam sendo explorados com denotações
objetais. Enfim, a manipulação não cotidiana de objetos é uma característica
dos artistas do Armatrux,utilizada de modo constante na cena
ribeiriana, inclusive com instrumentos musicais. Por isso, não hesito em
afirmar que elestambém são objetos
cênicos. Contudo, suas funções, como é o caso do “piano”, são intercambiáveis:
ora são instrumentos ora cenário e outrora objetos de cena.
Corolário: espetacularmente, o
objeto cênico foi se apresentando (na), se colocando (na) e colaborando para a
criação da poética e da estética dos três espetáculos mencionados. Com a
pesquisa realizada tentei
demonstrar que o objeto cênico nas encenações ribeirianas flutua entre a
poética e a estética artística de Eid Ribeiro.
Em se tratando do uso dos
objetos de cena, constatam-se certas diferenças entre os processos criativos de
Thácht, De Banda pra Lua e No Pirex.
O primeiro espetáculo estruturou-se e consolidou-se a
partir do trabalho improvisacional dos atores com os objetos cênicos. Já
no segundo, a dramaturgia textual foi de suma importância para o surgimento dos
objetos na cena. Ou seja, o texto de Ribeiro sugeriu imagens para a entrada de
tais elementos no espetáculo. No último trabalho, os jogos com os objetos
criaram a narrativa própria de No Pirex,
que é, antes de qualquer coisa, imagética e não textual/verbal.
Em Thácht há uma verticalização do uso dos objetos na cena do Armatrux. Parece-me que essa montagem,
em termos poéticos, mas guardadas as distinções processuais e estéticas, é a
continuidade das pesquisas de No Pirex e
também as de De Banda pra Lua. Logo,
poderíamos chamar esse conjunto de três espetáculos de Trilogia dos Objetos de Eid Ribeiro.
Ao todo, os objetos foram
divididos em quatro níveis poéticos principais – primário, secundário (objeto faltante),
terciário e quaternário (objetos energéticos) – e em quatorze categorias.
Por um lado, é interessante observar que um mesmo objeto pode
pertencer a diferentes funções ou níveis e distintas categorias conceituais.
Isso quer dizer que, conforme a cena e o contexto em que estão inseridos os
objetos – bem como o ponto de vista de cada espectador −, as suas categorias
flutuam e os seus signos se movimentam.
Por outro lado, as análises realizadas durante o doutorado
demonstraram que os objetos-energéticos não mudaram de nível e muito menos de
categoria conceitual.
Para tratar as categorias dos objetos em No Pirex, importou perguntar: sem os objetos cênicos, e na
ausência das consequentes relações entre eles e os atores, esse espetáculonão deixaria de existir? Sim, ele só
existe por causa dessas relações. As personagens dependem estritamente das
centenas de objetos com os quais No Pirex
foi montado. E o contrário também é verdade, pois os objetos submetem-se às
personagens – ou se
rebelam contra elas.
Em relação aos objetos terciários (objetos-desviantes), mesmo
que não sejam empregados dentro de um espetáculo num primeiro nível de
significação, eles podem VIR A SER empregados. Essas duas funções estão
diretamente ligadas e precisam uma da outra para existir, pois um objeto antes
de se desviar da sua função primária, tornando-se terciário, é visto pelo
espectador como sendo ele mesmo, ou seja, estando alocado dentro desse primeiro
nível funcional.
As bengalas de Thácht foram os únicos objetos
analisados na tese e no livro de artista que passaram por quatro categorias e
por duas funções distintas: objetos-objetos (função primária);
objetos-antropomórficos, objetos-desviantes e objetos-extensões do corpo
(funções terciárias).
Para concluir, na função primária encontram-se os
objetos-objetos, os objetos-figurinos, os objetos-cenários, os objetos-adereços
e os objetos-zoomórficos. Na função secundária situam-se os objetos-faltantes.
Já na terciária localizam-se os objetos-desviantes, os objetos-extensões do
corpo, os bio-objetos, os objetos-afetivos e os objetos-antropomórficos. E na
função quaternária, os objetos-energéticos. As categorias objeto-energético e
bio-objeto apareceram apenas em De Banda
pra Lua. As categorias objeto-imaginário e objeto-afetivo surgiram somente
em No Pirex.As categorias objetos-instrumentos e objetos-antropomórficos
constaram unicamente em Thácht. Já a
categoria objeto-zoomórfico foi comum a De
Banda pra Lua e a Thácht, enquanto
a objeto-faltante foi encontrada em De
Banda pra Lua e No Pirex. As
demais estão presentes nos três espetáculos.
Referências
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de Formas Animadas: máscaras, bonecos, objetos.São Paulo: Editora da USP, 1996.
CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore
Brasileiro. 10. Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
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convívio, experiencia, subjetividad. 1. ed. Buenos Aires: Colihue, 2007.
_____________ Introducción a los Estúdios Teatrales.
1. ed. Cuauhtémoc, México: Libros de
Godot, mayo de 2011.
_____________ Poéticas, concepciones de teatro y bases
epistemológicas. 1ª ed. Buenos Aires: Colihue, 2009.
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mineiro contemporâneo (Cia Luna Lunera).Belo Horizonte, 13 de
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processo: o objeto flutuante entre a poética e a estética teatral. 225 p.
São Carlos: Editora Scienza, 2017.
_________________________ O
objeto flutuante na poética e na estética teatral nas produções de Eid Ribeiro
junto ao Armatrux. Florianópolis, 2016. Tese (Doutorado) – Centro de
Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina.
OLIVERAS, Elena. Estética – La cuestión del arte. 1. ed.
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PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São
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PEREIRA, Maria de
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RIBEIRO,
Eid. Thácht – Teatro de Variedades.
Nova Lima: s.n., 18 jan. 2015. Texto cedido pelo Armatrux.
VARGAS,
Sandra. O Teatro de Objetos: histórias,
ideias e reflexões. MÓIN-MÓIN: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas
Animadas. Ano 6, v. 7. Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, p. 33-34, 2010.
[1] Eid Ribeiro nasceu em Caxambu, Minas Gerais, em 11 de março de 1943. Além de encenador, há mais de 50 anos, Ribeiro também é autor teatral, roteirista, ator e artista de cinema. Atualmente, aos 75 anos, ele vive na capital mineira. Junto ao Grupo de Teatro Armatrux, montou quatro espetáculos: De Banda pra Lua (2007), No Pirex (2009), Thácht (2014) e Nightvodka (2017). Os três primeiros foram analisados no livro ora apresentado.
[2] Desde sua
criação em 1991, em Belo Horizonte, o Armatrux
trabalha com o estudo de várias linguagens cênicas em suas montagens: do teatro
ao cinema, da dança ao circo e da performance
aos bonecos. No teatro, são inúmeras as montagens e diversas intervenções desse
grupo em espaços variados, dentro e fora do Brasil. Ao longo dos seus vinte e
sete anos de existência, o Armatrux
recebeu dezoito prêmios nacionais e um internacional, ademais de uma homenagem
internacional. Informações disponíveis em:
<http://grupoarmatrux.blogspot.com.br/>. Acesso em: 28 mai. 2018.
[3] Cristiano
Araújo, Rogério Araújo, Eduardo Machado, Paula Manata, Raquel Pedras e Tina
Dias.
[4] Todas essas categorias serão analisadas mais
adiante.
[5] ESTEVES, Odilon. Relações poéticas: atores/objetos de cena no teatro mineiro
contemporâneo (Cia Luna Lunera). Belo Horizonte, 13 de janeiro de 2016. Entrevista
inédita.
[15] A especialista em Teatro de Animação
Ana Maria Amaral aponta que Sarane Alexandrian apresenta essa categoria como
objetos manifestos, “que têm como função demonstrar sentimentos como, por
exemplo, presentes” (AMARAL, 1996, p. 207).
[16] Eu, por exemplo, possuía uma panela,
que foi da minha mãe, que tinha mais de quarenta anos.
[17] Objeto sem materialidade, fisicalizado
no espaço pelos atores. Tal como os objetos imaginários manipulados pelos
atores de Meyerhold.
No dia 31 de julho de 2017 saiu o meu segundo livro, fruto da minha pesquisa de doutorado realizada ao longo de quase cinco anos em distintas universidades brasileiras: Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na primeira universidade foi onde cursei a maior parte dos créditos e fui orientado brilhantemente pela professora Dra. Brígida de Miranda. Na UNESP cursei uma disciplina especial com o prof. Dr. Wagner Cintra, que se tornou meu coorientador e muito contribuiu para a minha pesquisa. Já na USP e na UFMG cursei outras duas disciplinas especiais, uma em cada universidade.
Meu objetivo inicial, ao ingressar no doutorado, era pesquisar o lugar dos objetos cênicos na poética teatral de três importantes encenadores mineiros: Eid Ribeiro, Kalluh Araújo e Ione de Medeiros. E assim foi até a qualificação de dois capítulos da tese. Contudo, devido à necessidade de recortes, e de acordo com apontamentos da banca, foi preciso cortar dois encenadores. Daí, optei por dar sequência às investigações com apenas Eid Ribeiro. Os espetáculos escolhidos vieram de uma trilogia montada com o Grupo de Teatro Armatrux: De Banda pra Lua, No Pirex e Thácht. A análise de cada um desses espetáculos constituiu um capítulo da tese: o segundo, o terceiro e o quarto, respectivamente. O primeiro capítulo ficou para discussões de caráter mais teóricas, em que analisei os conceitos de poética e de estética teatral e discorri sobre uma categoria ampliada de objetos cênicos. A partir desta cheguei a quatorze subcategorias dos objetos como, por exemplo, objeto-objeto, objeto-antropomórfico, objeto-faltante, etc. Por sua vez, na introdução, tracei um pequeno histórico da carreira de Eid Ribeiro e também do Armatrux. O livro, que foi lançado pela Editora Scienza, obedece exatamente a essa divisão. O que o diferencia da tese é uma apresentação redigida pelo prof. Dr. Rogério Santos de Oliveira, da Universidade Federal de Ouro Preto, e a ausência dos anexos.
Com o livro almejo alcançar o público da graduação, mais especificamente estudantes de cursos de teatro e artes cênicas. Contudo, pela simplicidade da linguagem, e dadas as especificidades da cena ribeiriana junto ao Armatrux, creio que a obra se presta também para artistas e estudantes de diversas linguagens artísticas: teatro, teatro de animação, cinema, cinema de animação, etc.
Enfim, trata-se de um livro de artista interativo. A partir de códigos de barra constantes ao longo de todo o trabalho, o leitor pode acessar, por meio de um leitor de QR Code instalado em celular ou tablet, vídeos e áudios citados nas análises. A obra pode ser adquirida no site da Editora Scienza: