Esta bem que podia ser uma indagação existencialista à la Sartre. Mas não! Trata-se, antes de qualquer coisa, de uma madura montagem teatral da Cia de Artes Fiasco, de Rondônia ─ agora com sede em Ji-Paraná ─ estreada no Teatro 1 do SESC Esplanada no último sábado, 09 de novembro de 2019, numa noite de forte e ruidosa tempestade.
Com encenação cuidadosa e delicada de Fabiano Barros, esse
espetáculo, cuja montagem foi contemplada pelo Prêmio Sesc de Incentivo às
Artes Cênicas (2019), conta ao espectador, sem palavras, e utilizando-se de
princípios estéticos do Teatro Imagem, a história de um homem solitário e
deprimido, quiçá portador de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC).
Tal homem repete, muitas vezes, por dias a perder de vista,
as mesmas ações: acordar, dar comida ao pássaro (aliás, inexistente na gaiola!),
mexer no despertador que não funciona, retirar e colocar a gravata no pescoço,
aguar uma planta sem vida ─ utilizando um regador sem água ─, se alimentar ─
sem ter nada no prato pra saborear ─, dar corda a um gramofone e ouvir dali um
ruído sem som, datilografar em uma máquina de escrever sem papel e voltar a
dormir novamente numa cadeira de balanço que não é cama. Essas ações absurdas e
repetitivas, e a repetição no espetáculo da Cia Fiasco é necessária, gera
ritornelos imagéticos e musicais. Aliás, a música é executada ao vivo pelo
competente Rinaldo Santos, que cria as atmosferas e climas os mais complexos e
psicodélicos possíveis para o desenrolar das ações cênicas. Inclusive, em dois
momentos, ele balbucia uma bela e triste melodia que acentua o exílio da
personagem, que aqui chamarei apenas de homem triste e solitário (sola et tristis homo). Por seu turno, os
raios, os trovões, as fortes ventanias e os densos pingos d’água sobre o teto
do teatro foi um ganho musical, um presente da natureza para uma já potente
dramaturgia sonora.
O homo,
competentemente representado por Nestor Neto, vive, por si só, em uma casa bela:
retrô. Faz do passado colorido o seu presente sem pigmento; dos formosos e
antigos objetos a sua melancólica companhia. A propósito, o cenário de Onde morrem os pássaros? é primoroso! Fabiano Barros
preocupou-se com os mínimos detalhes de cada móvel; com a semiótica de cada
objeto. Antiquário. Talvez seja esta a palavra mais oportuna para referir-se à
cenografia. E, quem sabe, também à indumentária, se assim pode ser chamada.
O vazio do protagonista é atravessado por uma
mulher (mulier): amante? Amiga? Parente?
Empregada? Não se sabe ao certo. Contudo, pela atuação eficiente e segura de
Laura Martins, nota-se que essa mulher é alguém que traz em sua bagagem a esperança.
E em sua mão um manuscrito, redigido em papel vermelho, a cor da paixão. A cor
do poeta Binho! Essa personagem se mete, como um fórceps, no cotidiano do depressivo.
Porém, a princípio, sua presença é ignorada pelo homo que está fechado, triste e ranzinza em seu paletó empoeirado. Todavia,
aos poucos a confiança é conformada, assim como se concilia a dor ao remédio.
Um pouco de vida é introjetada naquele cotidiano asfixiante, sofrido. Um
respiro feminino alivia a misantropia masculina. A música e a escrita, a arte
(sempre ela!), se tornam presentes para acalentar aquela alma que vagava
solitária pela morada.
Mas a melancholia,
como uma praga medieval, captura também a mulher. E esta, sem forças, é
contaminada ─ poeticamente ─ por essa maldita doença do século: a depressão. O
que fazer agora? Continuar a sofrer? Se matar? Não, acordar e viver, como os
deliciosos raios de sol que despontam a cada manhã de inverno.
Volta o ritornelo inicial. Porém, agora com uma
nova morte-vida: a da mulier. Quem
nunca se pegou perguntando acerca dos seus ritornelos semanais? Acordar, comer,
ir ao banheiro, tomar banho, enfrentar o trânsito, ir pro trabalho, enfrentar o
chefe, almoçar, ir ao banheiro, voltar a trabalhar, enfrentar novamente o
chefe, ir pra casa, enfrentar de novo o trânsito, comer, amar, dormir, acordar novamente,
ir pro trabalho, etc, etc, etc. Enfim, Onde morrem os pássaros? fala também
sobre isso: a vida que passa sem se dar conta. Sobre a presença da solidão:
quando uma pessoa tem alguém e continua a se sentir só. Sobre ritornelos
diários. Quod mors in omnes!