A Ópera do Beradeiro: cantos de merda, gosto de esgoto, perfume de vômito!

 

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A Ópera do Beradeiro – Foto de Marcela Bonfim

Sábado, 16 de abril de 2016. São 21 h e 41 min. Eu, sujo, suado, fétido e descabelado estou nu, encarando com asco a tela deste computador.

 

Sexta-feira, 15 de abril de 2016. Eram 08 h e 08 min. Estava eu, limpo, perfumado e penteado. Na UNIR, recebo, no meu whatsApp, uma mensagema do diretor Fabiano Barros:

” – Bo dia

–  Tudo bem, querido?

– Tudo

– Vamo confirmar sua apresentação no espetáculo pra amanhã às 20:30

?

– Vamos… Confirmado

Obrigado

– Pera (08:34)

Vamos lá: A Ópera do Beradeiro é um espetáculo construído sobre uma estrutura hiper realista, onde uma única pessoa participa da vivência … O espetáculo acontece em um garimpo dentro de uma Casa Draga REAL. O traslado até o local é feito de motocicleta, após isso, o partcipante terá que caminhar até o local. Há uma certa dificuldade em chegar ao local, por isso solicitamos dos participantes irem de tênis não derrapante, sem bolsas, jóias, celulares ou qualquer coisa de valor… Durante a vivência os intérpretes se dirigem de forma enfática ao espectador chegando em alguns momentos tocá-los… O retorno do espetáculo é feito da mesma maneira (de moto). Há alguma dúvida? Sendo o espetáculo feito para maiores de 18 solicito que nos mande um áudio falando seu nome completo sua idade dizendo que tem ciência de todas as etapas e características do espetáculos. e se está de acordo para que possamos confirmar sua apresentação.

 

– Sério que terei que andar de moto? Tenho pânico, pois quase morri                                                num  acidente. (08:41)                                                                                                                                                                          Rs                                                                                                                                                    As demais questões, pra mim, sao tranquilas.

– Pois é… Vai conseguir?

                                      – Será muito radical a moto? rs

– Não

Só o traslado

 

                                 – Então eu vou, mas abraçarei firme o motoqueiro.

                                                                                                         kkk (08:44)

– Ok

So manda o áudio

– (…………………………………………………………..).

– kkk

Amanhã às 20:30/ em frente ao palácio das artes

– Blz. (08:55)

 

Sábado, 16 de abril de 2016. Às 20 h e 25 min estava eu, limpo, perfumado e penteado em frente ao Palácio das Artes. Pontualmente chega o motoqueiro: de chinelo, bermuda e camisa de manga curta. Um capacete pendurado no braço direito, mochila preta nas costas. Eu pensei: “Que estranho!”. Sobre minha regata cinza, vesti uma jaqueta de couro comprada em Buenos Aires. Calça jeans de marca. Tênis Mizuno nos pés. Eu perfumado de Bulgari AqUa Amari, comprado em minha última viagem também à Argentina. (Coincidência).

 

O motoqueiro me dá uma encomenda para levar às costas. “Não tem drogas aqui dentro não, né?”. (Silêncio). “Fabiano te disse que eu tenho pânico de moto e que quase morri de acidente?”. “- Não”. – “Pois é, se você correr vou te abraçar!”. “- Pode abraçar se quiser!”.

Dou os meus óculos, também de marca, para o piloto segurar. Coloco o capacete suado na cabeça. Reponho meus óculos e ele dá a partida, muito lentamente. (Silêncio). O pânico toma conta de mim. Meu coração acelera. Percebo apenas um forte cheiro de cigarro. “Será este cara?”. Vamos reto, viramos à direita, depois à esquerda na Avenida dos Imigrantes. Seguimos reto. O caminho está um breu. À esquerda, um carro de polícia. Pessoas aglomeradas. Eu disse: “Aconteceu algo ali”. (Silêncio). Continuamos em linha reta até passar por debaixo da ponte que passa por cima do Rio Madeira. Cheiro insuportável de esgoto, de merda! Cruzamos alguns caminhões. Lugar escuro, triste, fétido e esburacado.

– “Chegamos”.

Um homem estranho, encostado numa pilastra de uma casa pobre, estava nos olhando. Será que vigiando? Eu, com medo, dou boa noite. Ele responde: “Boa noite!”. Entramos numa pequena mata enlameada. Um cachorro late e parte pra cima de mim. O motoqueiro o espanta. Meu coração acelera novamente. Ouvem-se ruídos de dragas sugando a riqueza do Rio Madeira.

– “Cuidado com o morro. Pise aqui para não escorregar. Desvie do ferro. Pule a corda e pise ali”.

 

Chegamos à draga.

– “Bata palma que você será recebido”.

 

Ô de casa!!! (pá-pá-pá). Surge então a primeira personagem: um menino-menina (ou um travesti?), interpretado pelo promissor Rafael Barros, me manda subir as escadas.

– “Você trouxe a encomenda?”. – “Sim”. – “E abriu pra ver o que era?” – “Não”. – “Que bom”. “-Pai, chegou o novato”. Eu era o novato que estava ali para não sei o que. Surge então, bêbado, maltrapilho, sujo e com uma garrafa de cachaça nas mãos o garimpeiro. “- Quem é você?” – “Sou o Luciano”. “Ah, sente-se aqui”. Aquele ébrio, interpretado magistralmente pelo ator Cláudio Zarco, fede: fede a cachaça, a vômito, a bosta, a cigarro, a suor, a sexo. Grotescamente ele baba, ele cospe, ele escarra, ele encara. Ele grita. Ele bate como um porco no chiqueiro. Violento, o protagonista “Beradeiro” agarra os cabelos do menino-menina (ou do travesti?) e o joga na parede de madeira. Ele, por sua vez, triste e desdenhoso, pega-me pela mão e me apresenta a “casa”. O chão estava imundo. Havia cigarros por todos os lados. De cima, vê-se o rio vermelho sendo dragado, explorado, sendo morto pelo mercúrio. Os ruídos das dragas são constantes. Será esta a ópera? Não pode ser. Mas o que tem de ópera na miséria, na imundície e na degradação humana? Ouvem-se cri-cris de grilos, coaxar de sapos. A paisagem auditiva é tão realista quanto a interpretação. Tão realista quanto a tensão que paira no ar. Meu coração acelera-se “again”. Ali eu sou o estrangeiro, o branquelo, o estranho, o novato. Naquele lugar eu sou o outro, o lado oposto da moeda de ouro. Eu sou o burguês. A pedra lapidada, o professor universitário. O funcionário público estável num espaço instável e inseguro. Espaço de morte. De palavrões. De gritos. De assédio sexual e moral. Bafo quente de mau hálito me é cuspido de ambos os lados do pescoço. Histórias violentas me são contadas ao pé do ouvido. Eu arrepio. O menino-menina gosta. Sente o meu corpo. Sorri. Me chama. Me convida pro sexo. Me pergunta se eu gosto de cu, de pau ou de boceta. Eu respondo. Ele também: “Eu também”!. “- Pai, conte pro novato a história da Iara”. “- Eu não sou seu pai. Meu filho morreu aos doze anos!”. Fala gritando. Grita falando. Incesto. Nojo. Que asco! O pai faz do menino a sua menina: sua mulher. O bronco e fétido assassino que matou a mulher e jogou no rio. Que mata os comparsas para roubar o ouro. O ouro da discórdia, que segundo o travesti (?) rende R$ 40.000, 00 por MÊS. Mais que o salário de um professor. Muito mais que o salário de um deputado. Será?

O bêbado bate os pés. Tropeça. Cai por cima de mim. Me cospe todo. Me suja. O filho me seduz, me chama pra cama. Seduz ainda o pai. Faz charme. Um charme escatológico, grotesco. Um charme bicha. Eu apanho. Camaradamente. Mas nem sempre, camarada! Os meus braços brancos ficam vermelhos, como o rosto do filho esbofeteado. Lastimável! Que vida é essa, companheiro? Que decisão faz de vocês aqui? Submundo das armas. Submundo do sexo. Submundo do ouro.

Calor insuportável. O meu suor lava meu perfume como o mercúrio amalgama o ouro. O meu suor se mistura ao cheiro de bafo, ao odor de sexo oral, ao gosto de fezes. A Ópera do Beradeiro canta em um rádio toca fitas. A agora mulher dança. Baila para seu pai. Que aplaude. Que ordena que eu faça o mesmo. E eu, obediente, faço. Surge, então, a Bernadete, a Maria do Carmo, a Cristiane, a Perpétua do Socorro. As pepitas têm nomes. Com orgulho são exibidas pelo explorador. Mas falta uma.” Cadê sua desgraçada?” Bate. Apanha. Arrasta. Eu apanho. A agora mulher apanha. É enforcada. É forçada, nua, a cagar o ouro. Cadê o ouro? Onde está o ouro? Pra onde foi o ouro? Apanha. Grita. Chora. As lágrimas se juntam poeticamente.

Eu sou expulso dali. O bêbado asqueroso e de pés sujos me empurra. Quase sou jogado pelas escadas.

Em baixo me espera: o motoqueiro. “-Me acompanhe!”. (Silêncio). Meu coração se acelera, “de nuevo”, “again”. As dragas dragam. Os sapos latem. O cachorro faz cri-cri. Confusão. Onde estou?

A fortíssima, suja, asquerosa, nojenta, poética, suja (“again”) “A Ópera do Beradeiro” continua na moto. (Ouvem-se apenas os ruídos do motor). Eu me excito. Tenho pânico. O mesmo caminho escuro ao contrário. O mesmo cheiro de cigarro. Mas agora misturado ao meu perfume de vômito, de cachaça, de esgoto. (Silêncio. Só são sentidos os cheiros de esgoto). O mesmo bar. “Again”. O caminho inverso. A vida está ao contrário, Fabiano, Madson, Cláudio Zarco, Rafael Barros. Meu coração lastima.

Volto ao meu carro 1.6. Decido não ligar o som em inglês. Quero continuar com as dragas que chupam o meu sangue.

Chego em casa. Sinal de wi-fi. Meu whatsApp toca: “A Cia de Artes Fiasco agradece sua participação na peça A Ópera do Beradeiro. Curta nossa página e nos deixe um comentário https://m.facebook.com/ciadeartesfiasco/

São 23 h e 17 min. Não farei correções, pois o espetáculo continua no meu corpo. As minhas roupas estão no chão e as letras apontam: “ópera canto de merda, gosto de esgoto, perfume de vômito!”. O grotesco e o sublime em Porto Velho.

 

 

 

 

 

 

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